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A Globo não chora, a Globo lucra: o feminismo liberal da indústria cultural

Patricia Galvão

A Globo não chora, a Globo lucra: o feminismo liberal da indústria cultural

Patricia Galvão

A cantora Shakira compôs uma música que verbaliza sua revolta depois de uma traição amorosa. Um dos versos chama bastante a atenção:
Las mujeres ya no lloran, las mujeres facturan [1]
(As mulheres não choram, as mulheres lucram)

Mas, afinal, quais mulheres lucram?

De Shakira a Luísa Sonza, as desventuras amorosas foram temas de músicas, minisséries, documentários, programas de auditório e de fofoca. Por meses a fio, mulheres empoderadas e proclamadas feministas davam relatos sem fim sobre como seu companheiro foi infiel. Misturavam questões sobre como as mulheres sofrem com a opressão, como o patriarcado lhes impõe a submissão, a miséria das relações etc., e com isso ganhavam mais e mais seguidores, contratos, visibilidade. Nenhum problema em expressar na arte as desilusões amorosas, artistas o fazem por séculos. Nenhum problema em fazer sucesso com músicas ou livros com essa temática. De Machado de Assis a Marília Mendonça, a infidelidade foi tema fértil de obras primas. O problema não é esse. A monogamia, imposta às mulheres, principalmente, e a miséria sexual dos nossos tempos que disciplina os corpos limitando o prazer e relegando às relações a superficialidade da dependência emocional e ou financeira, são expressões do patriarcado. O problema está nas porta-vozes do feminismo da Rede Globo resumirem a opressão às mulheres a um “par de chifres” e oferecerem como resposta o empoderamento empreendedor, o pink money. Faturem, dizem elas? Mas às custas da exploração do trabalho de outras mulheres .

A indústria cultural movimenta bilhões de dólares todos os anos. Ser detentor de uma rede de comunicação em massa não é apenas mais um negócio, é um grande negócio! De acordo com dados do IBGE de 2022, 71 milhões dos lares brasileiros possuem um ou mais televisores. É o principal meio de comunicação, seguido pela internet. A Rede Globo da família Marinho, o SBT de Silvio Santos, a Record do bispo Edir Macedo, a Band da família Saad e a Rede TV! são os principais canais da transmissão televisiva aberta e responsáveis por uma fatia considerável dos lucros da indústria cultural. Eles disputam a audiência do grande público com seus programas, pois os intervalos da programação resultam em cotas comerciais que são compradas por marcas interessadas em vender seus produtos em rede nacional. Quanto mais popular um programa, mais caro é ter um produto anunciado nos intervalos.

A Globo hoje é a principal emissora do país, sendo assistida por cerca de 25% dos telespectadores, de acordo com o Kantar Ibope [2]. Sua criação e posterior ascensão se deu a partir de acordos com as ditaduras do Estado Novo e a Ditadura Militar. Embora se mantenha no topo desde o final da década de 1970 e início da de 1980, a emissora passa por diversas crises financeiras que a fez rever seu quadro de artistas, jornalistas e a buscar novos patrocinadores.

A disputa acirrada entre as emissoras no Brasil impôs à Rede Globo dar saltos mais audazes na sua programação, buscando uma fatia ainda maior entre o público. Emissoras como SBT, RedeTV, Record, Band, entre outras, costumam produzir programas de gosto duvidoso que utilizam do senso comum, do sensacionalismo, do tabu em relação ao sexo e da “desestruturação” da família tradicional para espetacularizar o sofrimento, a pobreza e a repressão sexual. O sucesso de alguns desses programas pode ser explicado porque conseguem dar vazão a um justificável sentimento popular de ver a vida como ela é, sem uma artificialidade estéril que alguns programas globais carregam. Obviamente, essas emissoras buscam com isso canalizar a revolta para um entretenimento barato e com pouca crítica social. Os barracos televisionados por esses canais garantem aos seus participantes 15 minutos de fama, apresentam caricaturas dos mais pobres, reforçando entre os oprimidos o preconceito de classe. Como desenvolveu Iuri Tonelo:

Convivem com o “triunfo” da sociedade capitalista as formas mais bárbaras da exploração do trabalho (incluindo formas de escravidão no mundo moderno) e uma massa que ultrapassa a casa do bilhão que continuam na linha da pobreza; sob a máscara da igualdade de possibilidades se esconde a desigualdade inigualável que combina prédios luxuosos e favelas nos centros urbanos; sob o véu da liberdade dos indivíduos se escondem os mais duros ataques às liberdades democráticas da existência na classe trabalhadora; ao rico é reservada a heroína de luxo, ao pobre, o fuzil que mata e a discriminação que humilha. Por isso a sociedade burguesa precisa criar seus herois e se reinventar na sua arte toda especial de reafirmar o principal padrão que ela cria e recria: a sociedade burguesa como espetáculo. [3]

Já a Globo, igualmente representante dos interesses da classe dominante e produtora de caricaturas próprias das classes oprimidas, apostou em outra estratégia de entretenimento e difusão dos ideais burgueses.

A primavera feminista e o feminismo liberal – monetizar a opressão é preciso!

De 2015 para cá muita coisa mudou no mundo e no Brasil. A chamada “primavera feminista”, impulsionada pelo Movimento de Mulheres internacionalmente, representou um grito entalado na garganta de metade da humanidade. Nenhuma a menos! Os escandalosos feminicídios e os estupros coletivos que ganhavam as páginas dos principais jornais foram a gota d’água para levar milhões de mulheres às ruas no mundo todo. A gigantesca marcha de mulheres contra Trump em Washington, no coração do imperialismo, assinalava que as mulheres não aceitariam caladas as imposições do patriarcado. No Brasil, o crescimento da extrema direita misógina, expressa na figura de Bolsonaro, a partir do golpe institucional de 2016, se deu em resposta à potência dessas lutas internacionalmente. Um alerta de PERIGO acendeu na mente da burguesia mundial.

Essa extrema direita em ascensão apegou-se a antigos “mitos” anti-comunistas alentados pela própria Globo no período imediatamente posterior à ditadura militar. As fake news bolsonaristas não eram um fenômeno propriamente novo. Para afastar as ideias comunistas do imaginário das massas, a rede de Roberto Marinho cumpriu um papel importante criando mentiras absurdas sobre o comunismo, o movimento sem-terra e as feministas. Até hoje!

Mas, por certa ironia do destino, o bolsonarismo passou a ver na Globo um ataque à moral e aos bons costumes da família tradicional brasileira. Longe de ser uma conclusão “pela esquerda”, essa extrema direita ataca a Globo não pelo seu apoio à ditadura militar ou por causa das manobras e favorecimentos a figuras asquerosas como Sérgio Moro, à Lava-Jato ou ao golpe de 2016. Ao contrário, a chamavam de “Globolixo” por causa de programas com conteúdos mais progressistas. Afinal, fruto da pressão que os movimentos feministas e antirracistas exerciam no mundo todo, a Rede Globo precisou se adequar aos novos fenômenos da realidade e rever uma série de condutas e conteúdos que já não correspondem mais a uma época na qual as mulheres lutam fortemente pelos seus direitos. Obviamente, essas mudanças não significam que os comunistas haviam ocupado o controle da emissora. A Globo precisou se adequar aos novos tempos para manter a velha dominação.

Essa readequação faz parte de um esforço da burguesia de afastar as pautas mais sensíveis das mulheres da luta nas ruas. “Façamos a revolução antes que o povo a faça”. O feminismo liberal é o produto acabado desse desejo da burguesia de conter a fúria das mulheres contra o patriarcado, oferecendo em seu lugar saídas estéreis, que nada tem a ver com o fim da violência e da divisão sexual do trabalho.

Podemos dizer que essa operação burguesa de cooptação produziu resultados contraditórios. Se por um lado “domestica e transforma em produto” a luta das mulheres e fortalece a institucionalização dos movimentos sociais, por outro, difunde para as massas os ideais gerais de igualdade de gênero. O impacto que o movimento de mulheres criou foi tamanho que até mesmo a extrema direita conservadora precisou dialogar com ele. Não basta ser bela, recatada e do lar, as figuras anti-feministas precisaram ser empoderadas: Joice Hasselmann, Damares Alves e Michele Bolsonaro são, atualmente, algumas dessa espécie.

Não sejamos ingênuas, nem a Globo, nem a burguesia se educaram e avançaram rumo a ideia de igualdade dos gêneros e libertação das mulheres. Foram pressionadas pelas lutas dos oprimidos nas ruas. A grande mídia foi obrigada a mudar seu discurso, mas não a abrir mão do seu caráter de classe e de seus objetivos mais intrínsecos como meio de difusão da ideologia burguesa. Se não é mais possível vender o corpo da mulher como antes, operam na lógica do cooptemos as lutas e transformemos ela em produto. O pink money é a expressão mais escancarada dessa iniciativa.

Profissão ex-BBB: corpo e desejo como mercadorias

O reality show Big Brother Brasil, exibido há 24 anos pela Globo, estabeleceu uma nova categoria de celebridade, o ex-BBB. Para quem não ganhou o atrativo prêmio milionário, a emissora proporciona a possibilidade de uma ascensão rápida ao Olimpo ou, pelo menos, ao panteão de outras mitologias dos canais menores da TV fechada. Esses ex-BBBs rendem mais em lucros do que nos meses em que permaneceram no programa expondo suas entranhas.

Isso vale especialmente para as sisters que se encaixam no padrão de beleza global. Nos anos 2000, suas carreiras começavam nas revistas masculinas como a Playboy e podiam terminar em novelas ou algum outro programa de auditório. E aqui não se trata de nenhum moralismo. Longe de representar qualquer subversão frente ao conservadorismo relacionada ao sexo, revistas como Playboy, Vip, Sexy reafirmam os papeis da sociedade patriarcal: a mulher como objeto e o homem como um garanhão. Essas revistas utilizam do corpo feminino para vender a promessa de sexo divino no mundo das ideias. Em duras palavras, o talento dessas mulheres, que poderiam contribuir para a arte, é medido a partir do quanto seu corpo pode ser monetizado. A moralista Globo nunca pensou duas vezes ao exibir o corpo feminino para que este pudesse ser disputado em um leilão de revistas masculinas ou, atualmente, em plataformas como a OnlyFans. O “prêmio” para as mulheres participantes do BBB sempre foi outro. O teto das aspirações das mulheres é bastante rebaixado pela Globo.

A normatização da opressão é parte intrínseca da ideologia dominante. Como bem colocou Marx: “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes” [4]. Ignorar isso seria justificar o machismo que, se por um lado não surgiu nem com a Globo, ou, tampouco, com o BBB, por outro é perpetuado pelas mídias burguesas que lucram com a opressão às mulheres. O Big Brother Brasil é apenas uma gota nesse oceano do patriarcado no sistema capitalista.

O gênero nos une?

As mocinhas de novelas denunciando a violência doméstica, os programas de TV com convidadas que são mulheres trans debatendo sexualidade, reality shows com participantes falando do empoderamento feminino, e todo esse espaço conquistado na programação da TV aberta são expressões da potência que carrega a luta dos oprimidos a cada levante nas ruas. Corpos gordos, pessoas negras, trans, LGBTQIAP+ e tudo que puder se tornar produto cabe na diversidade pregada pela Globo.

Porém, em troca desse espaço cedido pela mídia para as mulheres ocuparem, a propaganda comercial e ideológica quer transformar as pautas das mulheres em produtos a serem vendidos. Assim, as feministas liberais da Globo conseguem garantir o lucro com o pink money ao mesmo tempo que se colocam como porta-vozes das mulheres para calar a maioria das trabalhadoras que são privadas do acesso a direitos, mesmo aqueles que o próprio Estado reconhece. Mas como disciplinar toda a potência que carregam as lutas dos oprimidos?

A cooptação da luta anti-opressão se tornou crucial para a burguesia dado o potencial subversivo dessa luta ao redor do mundo. A indústria cultural além de atender a demanda por representatividade, buscou fortalecer os ideais burgueses de meritocracia à sua maneira, expressando através dos seus meios grandes elogios às CEOs, às presidentas, às parlamentares mulheres, isso independente do que essas mulheres burguesas defendam ou se exploram outras mulheres. Filmes, minisséries, especiais, documentários sobre mulheres burguesas que venceram, de Coco Chanel a Michele Obama, podem ser encontrados em um clique. Antes, a história de grandes homens eram dignas de Oscar, mas agora é a vez delas. Até filme da boneca Barbie como um ícone feminista foi produzido! [5]

Para a burguesia o teto das aspirações dos oprimidos precisa estar entre os limites da própria sociedade capitalista. Por isso, é necessário convencer as mulheres do proletariado que elas partilham da mesma sorte, estão unidas por um vínculo único e inquebrantável às mulheres da burguesia através do gênero. Todas as mulheres precisam almejar o teto de cristal se espelhando naquelas que conseguiram quebrá-lo, que “venceram”. A Globo, e a indústria cultural em geral, com o passar dos anos, entendeu bem como o feminismo pode ser lucrativo e, se usado corretamente, inofensivo para o patriarcado.

É preciso ter a certeza de que tudo o que a Globo e indústria cultural buscam, afinal, é neutralizar a potência do ódio dos oprimidos. A forte propaganda de “empoderamento” e “direitos das mulheres” nas mãos da Globo são inofensivas ao patriarcado. Porém, se esse empoderamento individual se preenche de conteúdo de classe, de luta coletiva contra a violência de gênero, contra as reformas que sugam a força vital das mulheres trabalhadoras, organizando a potência que a luta dos oprimidos carregam, essa luta é imparável e não será limitada por nenhuma programação de TV e seus patrocinadores. Se tomamos das mãos do feminismo liberal as pautas legítimas das mulheres e unificamos a junto à luta dos negros, LGBTQIAP+, indígenas e de toda a classe trabalhadora podemos criar uma força transformadora, que vá muito além dos limites das instituições burguesas. As greves dos trabalhadores de Hollywood demonstraram que nem mesmo os trabalhadores da indústria cultural se deixaram convencer a abandonarem a luta de classes. Não vamos apenas estraçalhar o teto de cristal, vamos ao céu! O futuro pertence às mulheres trabalhadoras e sua classe, que tudo produz e que à ela tudo pertence!


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FOOTNOTES

[2Audiência de TV PNT TOP 10 | 12/02 a 18/02/24, 22 fev. 2024; disponível em: <https://kantaribopemedia.com/conteu...> .

[3TONELO, Iuri. “Indústria cultural: alma de uma situação sem alma”, Esquerda Diário, 22 fev. 2016; disponível em: <https://www.esquerdadiario.com.br/I...> .

[4MARX, Karl,; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã, Hucitec, São Paulo, 1984, 4ª ed., p. 73.

[5GALVÃO, Patrícia. “O feminismo cor-de-rosa da Barbie: algumas reflexões e um pouco de spoilers”, Esquerda Diário, 29 jul. 2023; disponível em: <https://www.esquerdadiario.com.br/O...> .
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Patricia Galvão

Diretora do Sintusp e coordenadora da Secretaria de Mulheres. Pão e Rosas Brasil
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