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A arte, a guerra, a chave e a pedra

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A arte, a guerra, a chave e a pedra

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Há muito a ser dito sobre a arte e a guerra, ou melhor, sobre a arte e a luta de classes. Tanto a arte produzida durante a guerra, bem como os impactos que a luta de classes tem na arte que surge após um processo de luta. Para parte dos futuristas italianos, em sua concepção proto-fascista, a guerra era a forma mais avançada de arte. Na antípoda dessa concepção, Trótski defendia que a arte, na época de reação convulsiva e declínio cultural, só pode ser revolucionária. [1] Justamente porque não pode não buscar uma saída para o sufocamento social. E essa saída vai ser buscada de formas próprias a cada artista.

A arte e a luta de classes

Já muito se falou e se fala sobre respostas da arte à luta de classes. Em outro momento, abordamos aqui o impacto que a Comuna de Paris gerou sobre poetas como o jovem Rimbaud. Anos depois, os horrores da primeira guerra mundial foram incrustados na arte das vanguardas como no caso do Expressionismo. A modo de exemplo, em 1914 o expressionista alemão Georg Trakl, profundamente traumatizado pelos horrores que viveu nos primeiros meses da guerra, escreveu antes de se suicidar:

Aos Emudecidos

Oh, a loucura da cidade grande, quando ao entardecer
Árvores atrofiadas fitam inertes ao longo do muro negro
Que o espírito do mal observa com máscara prateada;
A luz, com açoite magnético, expulsa a noite pétrea.
Oh, o repicar perdido dos sinos da tarde.

A puta, em gélidos calafrios, pare uma criança morta.
A cólera de deus chicoteia enfurecida a fronte do possesso,
Epidemia purpúrea, fome que despedaça olhos verdes.
Oh, o terrífico riso do ouro.

Mas quieta em caverna escura sangra muda a humanidade,
Constrói de duros metais a cabeça redentora. [2]

Estes são dois exemplos, mas há tantos outros: as canções da guerra civil espanhola foram revividas em diversos países hispanohablantes nos anos 70 em meio às ditaduras no cone-sul, junto ao nascimento da Nueva Cancion Latinoamericana; no Brasil, o surgimento da Tropicália, do Cinema Novo, do Teatro do Oprimido em meio à ditadura empresarial-militar. O período dos anos 60 e 70 não se passa também sem discutir as muitas expressões artísticas em resposta à guerra do Vietnam, de “For What It’s Worth” do Buffalo Springfield a “El derecho de vivir en paz” de Victor Jara, passando pelos bailes blacks e a explosão da contracultura a partir do maio de 68 francês. Mas há outros exemplos que podem passar despercebidos.

Palestina, Iran, Egito

Esses dias esbarrei com um breve depoimento de uma professora de música que leciona na Palestina sob um projeto que leva aulas de música para ambientes de guerra.

Ela diz

Estou ensinando uma nova música que soa meio como Jazz. ’Você conhece Jazz?’ pergunto ao meu aluno de violoncelo de 9 anos de idade da antiga cidade de Jerusalém. Ele me olha com olhos grandes e acena com a cabeça “Sim eu conheço o Jazz”. Estamos falando em árabe juntos e percebo que ele me entendeu errado. Ele não estava falando de música Jazz - ele nunca ouviu falar de Jazz. Mas a palavra “Jazz” soa muito como outra palavra em árabe, então a resposta dele para mim foi “Sim, eu conheço o exército”

Conheci o Jazz de outra forma, por um nome que também é parecido. Em 2019 Yazz Ahmed lançou seu terceiro disco, Polyhymnia. Nome da deusa grega da poesia sagrada, da dança e da eloquência. Yazz explora o jazz-fusion em sua mistura com música árabe de forma simultaneamente delicada e violenta.

Em uma das músicas chamada "One Girl Among Many" sob uma base linda, um coral recita:

"Então aqui eu estou
Uma menina entre muitas
[...]
Eles têm medo das mulheres
[...]
Chamamos às nossas irmãs
Ao redor do mundo
Para serem corajosas"

A música de Yazz, mesmo quando sem palavras, é um grito contra a opressão de gênero ecoado nas formas de uma música nascida contra a opressão racial. Como parte dessa mesma luta, alguns anos depois, em 2022, jovens iranianas foram às ruas queimar seus hijabs contra o estado teocrático e sua misoginia.

Em 2011, estourou a Primavera Árabe e a classe trabalhadora egípcia esteve na linha de frente, com protestos massivos na praça Tahrir e greves massivas que em um momento revolucionário derrubaram o governo Mubarak, bem como o governo de Mohammed Morsi. Desde o primeiro momento desse processo centenas e centenas de egípcios cantavam à voz e violão de Ramy Essam, compositor tido como “a voz da revolução” no Egito, a canção “Irhal” [Saia!]:

Somos todos uma só mão
Pedimos uma coisa
Saia! Saia! Saia!
Somos todos uma só mão
Pedimos uma coisa
Saia! Saia! Saia!
Abaixo, abaixo, Hosni Mubarak
Abaixo, abaixo, Hosni Mubarak
Abaixo, abaixo, Hosni Mubarak
Abaixo, abaixo, Hosni Mubarak
O povo quer derrubar o regime
O povo quer derrubar o regime
O povo quer derrubar o regime
Ele anda, nós não vamos andar
Ok, ele anda, não vamos andar
Ele anda, nós não vamos andar
Ok, ele anda, não vamos andar

Na própria dinâmica da luta de classes no egito, a canção se metamorfoseava para apontar contra os militares após a queda de Mubarak e contra Mohamed Morsi após sua eleição.

A luta no egito junto ao conjunto da Primavera Árabe foram determinantes para estabelecer as bases de novas possibilidades artísticas no Egito e no restante do norte da África e do Oriente Médio. Essa mesma afirmação é defendida pelo compositor e instrumentista Tamer Abu Ghazaleh, membro do trio-projeto Lekhfa. Tamer diz sobre a cena artística alternativa no Egito:

A música alternativa – que inclui muita coisa diferente, desde o pop-rock à electrónica, à música psicodélica, ao indie e a tudo o que não seja tradicional ou pop mainstream – está a tornar-se uma tendência muito forte no país. [3]

Assim como no processo de luta, as redes sociais trouxeram um novo aspecto também para as artes, nas palavras de Tamer “uma mudança que se foi acumulando entre aqueles que queriam ouvir algo novo e que queriam pôr fim à treta [besteira] que se ouve todos os dias”

A melancia, a chave, a pedra...

Mas voltemos à Palestina. A Palestina já foi uma terra onde lutavam ombro a ombro árabes e judeus contra o imperialismo e o capitalismo. Em 1948, com a Nakba, o Estado genocida de Israel é fundado artificialmente como um projeto imperialista de extermínio étnico do povo palestino amplamente financiado pelos Estados unidos e que tem na URSS sob direção de Stálin, que enviava armamentos para milícias sionistas, o primeiro país a reconhecer Israel oficialmente. [4]

Há quem frente às traições do Stalinismo grite que o marxismo não serve aos países da periferia, o que não poderia estar mais errado. Juntos às gerações e gerações de trabalhadores, intelectuais, ativistas que batalharam e batalham contra esse absurdo os Trotskistas palestinos entendiam a dinâmica permanentista das revoluções e gritavam (e os trotskistas principistas hoje ainda gritam) que "A força do imperialismo está na divisão - nossa força na unidade de classe internacional". Junto a todos esses, gerações de artistas também lutam para rasgar o véu da ideologia burguesa com a navalha da arte.

Um nome importante é o do militante marxista e romancista Ghassan Kanafani. Em uma de suas obras, chamada Umm Saad, Kanafani retrata a força de resistência e o sofrimento de Umm Saad, uma mãe palestina cujo filho Saad se organiza com os fedayin para lutar contra o sionismo:

Umm saad voltou e espalmou as mãos diante de mim. Os cortes se estendiam, cobrindo a rudeza das mãos, rios vermelhos e dessecados, dos quais exalava um cheiro único, o cheiro da resistência valente quando faz parte do corpo e do sangue da pessoa.
Eu lhe disse:
— Não se preocupe… são cortes leves…
— Estes? Claro, vão se apagar. A vida vai apagar. Vão ser preenchidos pela poeira do trabalho, e em cima vai se amontoar a ferrugem das panelas que areio, a sujeira dos pisos que esfrego, a cinza dos cinzeiros que limpo, o barro da água turva quando lavo o chão. Sim, primo, sim… esses cortes vão afundar embaixo dos canais do trabalho, vão secar com o ardido da sede, vão ser lavados o dia inteiro pelo suor quente que uso para amassar o pão dos meus filhos… Sim, primo, os dias vis vão cobrir esses cortes com uma casca grossa, vai ser impossível, pra quem olha, saber, mas eu sei, eu é que sei, vão continuar me espetando embaixo da casca. Eu sei. [5]

Quando o filho de Umm Saad é preso, seu primo a questiona:

— E agora, o que Saad vai fazer? Não seria melhor que ele saísse da prisão?
Ela parou, me olhou, dando aquele sorriso com o canto dos lábios e disse:
— Bom! Você não tá preso, e o que faz?
Os jornais estavam no chão; o rádio, ligado desde a noite anterior, começou a transmitir o noticiário. Umm Saad olhava ora para mim, ora para o rádio. Seu olhar, nesse trajeto, parecia estender entre nós barras de ferro que minhas mãos não podiam remover. Então ela falou:
— Você acha que não vivemos na prisão? E o que a gente faz ali no acampamento a não ser andar dentro daquela prisão estranha? Existem muitas formas de prisão, primo! Muitas! O acampamento é uma prisão, o rádio é uma prisão, o ônibus, as ruas, os olhos das pessoas… Nossa vida é uma prisão, os últimos vinte anos são uma prisão, o prefeito é uma prisão… Você fala de prisões? Toda a sua vida você está preso… Você se ilude, primo, com as barras dessa prisão em que vive, pensando que são vasos de flor. Prisão, prisão, prisão. Você mesmo é uma prisão… Por que vocês acham que é o Saad que tá preso? Preso porque não assinou um papel que diz que ele deve ser ordeiro? Quem de vocês é ordeiro? Vocês todos assinaram esse papel, de um jeito ou de outro assinaram, mas estão presos… [6]

Esse peso da exploração e da opressão imperialista aparece na obra de Kanafani em múltiplos contextos: do peso da opressão de gênero e o medo da morte do filho de Umm Saad à violência indescritível da Nakba em Homens ao Sol e as emoções do retorno em Retorno a Haifa. Da Catástrofe da Nakba também nasceu um primeiro grande símbolo de resistência: a chave — referência direta às chaves de suas casas que as mães palestinas guardam desde que suas famílias foram expulsas e que são passadas de geração em geração, com a convicção de que com a luta poderão retornar. Outros dois símbolos, a pedra e a melancia, marcaram também a história da luta palestina a partir de um processo intenso: a primeira Intifada.

As Intifadas foram duas longas revoltas que foram de 1987 a 1993 e de 2000 a 2005. A primeira Intifada estourou após o assassinato de 4 jovens por um soldado israelense em um campo de refugiados em Jabalia, na faixa de Gaza. A resposta foi um levante de toda uma geração de jovens e mulheres palestinas que jogavam coqueteis molotov e fizeram chover pedras sobre os soldados e tanques de Israel. O conflito se encerrou com 1559 palestinos mortos e 400 israelenses, em sua maioria soldados.

Sobre a melancia como símbolo, nos conta Andrea D’Atri:

Nos anos de 1980, as forças de ocupação confiscaram as obras de arte da Galeria 79, da cidade de Ramallah, um centro de atividades culturais que foi fechado pelas autoridades do Estado de Israel. Naquela época, três renomados artistas plásticos palestinos foram detidos. Os soldados israelenses advertiram Silman Mansour, Nabil Anani e Isam Badr que deveriam eliminar as alusões políticas de suas obras de arte. O próprio Mansour comentou que o chefe das forças repressivas israelenses lhes disse: “Por que fazem arte política? Por que não pintam belas flores ou nus?”, antes de ordenar que eles mostrassem suas pinturas previamente para determinar se eram aceitáveis ou se seriam censuradas. A ordem era que não pudessem sequer usar as cores vermelha, verde, branca e preta porque eram as cores da bandeira palestina. Isam Badr então disse: “Bem, se eu pintar uma flor com essas cores, o que você fará?” E o oficial respondeu: “Será confiscada. Inclusive se fizer uma melancia, ela será confiscada”. [7]

Assim, a melancia como representação da bandeira palestina se consolida a partir da primeira Intifada, junto a outras expressões culturais. O jovem Riad Awwad, engenheiro eletricista especializado em equipamentos musicais, na primeira semana da primeira Intifada reuniu suas irmãs na sala de estar de sua casa e começou a compor canções sobre liberdade, com letras mencionando os coqueteis molotov e o lançamento de pedras. O resultado foi seu álbum Intifada 1987, do qual ele fez 3000 fitas que distribuía na Jerusalém antiga. Boa parte dessas cópias foram imediatamente confiscadas pelo exército de Israel e Riad foi preso, interrogado e torturado durante meses. Em sua música I’m from Jerusalem, canta:

Sou de Jerusalém
Da antiga cidade
Sou da sua rua, minha amada Palestina

Eu sou de Jerusalém
Eu sou de Jerusalém
Eu sou de Jerusalém
Eu sou de Jerusalém
[...]
Nas ruas
Nas fazendas
Nas fábricas
Nos becos

Eu vou Lutar e Lutar e Lutar
Para libertar a terra e o humano
[...]
No portão das mesquitas
Na porta das igrejas
Eles pedem por igualdade e paz

Eu sou de Jerusalém

Em entrevista, sua irmã Hanan Awwad diz:

Ele tinha um estilo único e fazia música sobre identidade, o que repercutiu muito em nosso povo. Se você descesse a rua Salah al-Din na cidade velha, todo mundo estava tocando [a música].

Uma das músicas deste álbum foi escrita em parceria com um amigo de suas irmãs, o famoso poeta Mahmoud Darwish, do qual, por fim, resgato aqui um poema:

Carteira de Identidade

Registra-me
sou árabe
o número de minha identidade é cinquenta mil
tenho oito filhos
e o nono… virá logo depois do verão
vais te irritar por acaso?

registra-me
sou árabe
trabalho com meus companheiros de luta
em uma pedreira
tenho oito filhos
arranco das pedras
o pão, as roupas, os cadernos
e não venho mendigar em tua porat
e não me dobro
diante das lajes de teu umbral
vais te irritar por acaso?
registra-me sou árabe
meu nome é muito comum
e sou paciente
em um país que ferve de cólera
minhas raízes…
fixadas antes do nascimento dos tempos
antes da eclosão dos séculos
antes dos ciprestes e oliveiras
antes do crescimento vegetal
meu pai… da família do arado
e não dos senhores do Nujub
e meu avô era camponês
sem árvore genealógica
minha casa
uma cabana de guarda
de canas e ramagens
satisfeito com minha condição
meu nome é muito comum
registrame
sou árabe
sou árabe
cabelos… negros
olhos… castanhos
sinais particulares
um kuffiah e uma faixa na cabeça
as palmas ásperas como rochas
arranharam as mãos que estreitam
a amo acima de tudo
o azeite de oliva e o tomilho

meu endereço
sou de um povoado perdido… esquecido
de ruas sem nome
e todos os seus homens… no campo e na pedreira
amam o comunismo
vais te irritar por acaso?

registra-me
sou árabe
tu me despojaste dos vinhedos de meus antepassados
e da terra que cultivava
com meus filhos
e não nos deixaste
nem a nossos descendentes
mais que estes seixos
que nosso governo tomará também
como se diz

vamos!
Escreve
bem no alto da primeira página
que eu não odeio os homens
que eu não agrido ninguém
mas… se me esfomeado
como a carne de quem me despoja
e cuidado… cuida-te
de minha fome
e minha cólera [8]

É armada desta mesma cólera que a classe trabalhadora brasileira, junto aos setores oprimidos, deve inundar as ruas e impôr pela luta o fim de todas as relações Brasil-Israel. É contra essa ausência de ar, contra a angústia que se cristalizou em cada verso, contra o projeto de extermínio étnico do estado de Israel que dizemos que há saída: uma Palestina livre, operária e socialista.


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FOOTNOTES

[1Ver "Pela liberdade da arte" - Carta a Breton, de Leon Trótski

[2TRAKL, Georg. De Profundis e outros poemas. São Paulo: Iluminuras, 2010. p.65

[5KANAFANI, Ghassan. Umm Saad. Editora Tabla. 2023.

[6Idem.

[7Ver Na Palestina isto não é uma melancia, de Andrea D’Atri

[8Poesia Palestina de Combate. Ed. Achiamé. Rio de Janeiro. p.39
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Araçá

Estudante de Letras da UFRN e militante da Faísca Revolucionária
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