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A face feminina e negra da terceirização

Diana Assunção

A face feminina e negra da terceirização

Diana Assunção

Se a ofensiva neoliberal abriu caminho a todo tipo de deterioração das condições de vida e trabalho das massas trabalhadoras a nível mundial, também podemos dizer que os últimos anos, ou melhor as últimas décadas, estão marcadas pela múltipla renovação de mecanismos de precarização do trabalho. Há uma marca comum que percorre os tipos de precarização que atinge os postos de trabalho efetivos, mas se potencializa entre os terceirizados, informais e agora uberizados. A marca comum é a utilização das opressões de gênero e raça para incrementar a exploração capitalista e a lucratividade que a precarização traz ao capitalismo. No marco do lançamento do Manifesto contra a terceirização e precarização lançado por mais de 1 mil intelectuais, juristas, parlamentares, entidades e entregadores, voltamos a alguns fundamentos para potencializar esta batalha fundamental.

Os anos passam, a precarização fica

Quando Karl Marx apontou que o Estado não é mais do que um “balcão de negócios dos capitalistas” o fazia em um sentido amplo do termo, ou seja, definindo que é preciso apontar as armas da crítica não somente aos governos da direita ou extrema-direita mas também chamando a atenção para aqueles governos que buscam criar algum tipo de conciliação entre trabalho e capital para manter o status quo da sociedade de classes, ou seja, administrar por vezes de forma supostamente mais “humanizada” o Estado no sistema capitalista.

Se pensamos a situação do Brasil, para fazer um recorrido histórico dos últimos 30 anos é categórico que algumas das políticas neoliberais da era FHC tiveram sua continuidade nos governos petistas do começo dos anos 2000. Foi nos dois primeiros mandatos do governo Lula que a terceirização do trabalho passou de 4 para 12 milhões. Entretanto, isso se deu da seguinte maneira: o governo fazia propaganda do aumento dos postos de trabalho com carteira assinada, entretanto se tratavam de postos de trabalho terceirizados e cujo salário era em esmagadora maioria equivalente a até no máximo 1,5 salário mínimo. Isso significa que os direitos assegurados pela legislação trabalhista fruto da luta das gerações anteriores se liquidaram por completo. A carteira estava ali, mas assinada com a marca da precarização.

Este processo contou com a cumplicidade das burocracias sindicais que, atreladas ao governo naquele momento, atuaram para conter e sufocar qualquer processo de resistência a esse desmonte dos direitos trabalhistas. Cumpriram o papel nefasto de ajudar a naturalizar uma nova ordem mundial da herança neoliberal na qual era completamente normal em um mesmo local de trabalho ter trabalhadores de “primeira” e “segunda” classe. Isso se expressa nos uniformes, no local onde almoçam, nos direitos que recebem, nos salários e se expressa fortemente na cor e no gênero.

A crise capitalista internacional de 2008 foi um alerta para mostrar à política de conciliação de classes que a burguesia queria mais sangue dos trabalhadores diante da crise que levou à bancarrota até mesmo grandes bancos. O boom das commoditties durante o lulismo estava se esgotando, irromperam as jornadas de junho por mais direitos sociais e frente a tudo isso uma forte articulação entre setores majoritários da burguesia nacional, o judiciário, as forças armadas, o agronegócio, a bancada evangélica e os partidos de direita atuaram para levar adiante ataques mais duros do que o governo petista estava fazendo naquele momento.

Com este golpe institucional vimos a expansão da terceirização com uma lei que a tornava irrestrita além de novas reformas para deteriorar ainda mais as condições de vida e trabalho da nossa classe. Essa foi a antessala da ascensão do bolsonarismo que protagonizou 4 anos de destruição e ódio contra os trabalhadores, as mulheres e os negros. Por parte das burocracias sindicais também foram 4 anos de trégua em relação a esse governo reacionário, evitando qualquer tipo de confronto direto e buscando sempre canalizar tudo para a via eleitoral ou institucional, impedindo que mesmo os processos de luta que irromperam neste período pudessem se desenvolver, se coordenar, se auto-organizar.

Hoje, a entrada de um novo governo frente-amplista com Lula-Alckmin traz inúmeras expectativas acerca de uma melhoria das condições de vida da população. Entretanto, seu enraizamento junto a empresários, políticos da direita, latifundiários e ao capital financeiro já anuncia que este governo não mudará a dinâmica em relação às necessárias mudanças estruturais de deterioração dos direitos trabalhistas por exemplo em relação à terceirização do trabalho. Por um lado vemos que o anúncio da manutenção de reformas como a trabalhista já é concreto, por outro vemos no país se proliferar os casos de trabalho análogo a escravidão, onde em sua maioria se tratam de terceirizados. Esta herança bolsonarista foi também construída pelas políticas neoliberais que precederam o golpe institucional. E a política atual, de aliança burguesa, não poderá se desvencilhar destes mecanismos, do contrário significaria uma ruptura com os setores que sustentam o governo Lula-Alckmin, diga-se de passagem muitos dos mesmos que sustentaram o golpe institucional e depois o próprio governo Bolsonaro.

Deste retrato podemos ver que a engrenagem na qual os governos atuam como “balcão de negócios” dos interesses capitalistas, para aumentar a taxa de lucro diante da exploração do trabalho, torna utópica qualquer visão de que as melhorias virão de forma lenta e gradual por via de decisões deste novo governo. A mensagem é categórica: vai depender apenas de nossa luta.

Uma fratura lucrativa da nossa classe

A precarização do trabalho, que envolve várias modalidades que podem ir da uberização até o trabalho análogo à escravidão, é uma das faces mais brutais da exploração capitalista. Não é à toa que dentre esses setores estejam as mulheres, e no Brasil, em particular, as mulheres negras. Isso ocorre porque o capital se apropria da opressão machista e patriarcal, que é anterior ao modo de produção capitalista, criando uma poderosa relação entre exploração do trabalho com a mais-valia e a subordinação de um grupo social para melhor explorar. Essa tese, que em si mesma resguarda um dos grandes e profundos debates entre marxismo e feminismo, apresenta uma visão de mundo a partir da qual a emancipação feminina não será alcançada sem destruir neste momento as poderosas amarras do sistema capitalista, que transformaram o mundo em uma suja prisão. O trabalho precário é justamente um desses elos que mantém de pé o capitalismo. Para unificar nossa classe e dar um golpe decisivo nesse sistema de miséria, é fundamental que a batalha contra a precarização do trabalho seja prioridade em qualquer organização que se diga revolucionária e também nos movimentos feministas, de direitos humanos, anti-racistas, sociais.

Claudia Mazzei Nogueira em seu estudo “A feminização do mundo do trabalho”, onde relata a situação das trabalhadoras do telemarketing, aponta que a entrada da mulher no mercado de trabalho, um passo progressista e necessário para incorporação da mulher à produção, se deu de forma precária e contraditória. Ou seja, ao passo em que houve uma feminização do mundo do trabalho, esta feminização foi acompanhada do que Marx chamou de “cheap labour” em sua grande obra "O Capital". Este conceito, em português “trabalho barato”, buscava dar conta de demonstrar que os mecanismos do capital enxergaram uma relação vantajosa na subordinação de grupos sociais por seu gênero, raça ou sexualidade, ou até mesmo idade, e conseguiram dar passos importantes para um rebaixamento “natural” dos salários do conjunto da classe. Assim como o exército industrial de reserva – ou, melhor dizendo, a massa de desempregados – as mulheres e crianças eram utilizadas como ameaça permanente: sempre haverá alguém com um trabalho mais barato do que o seu.

Destes fundamentos surgem a desigualdade salarial e a precarização do trabalho feminino. O trabalho precário no Brasil, inclusive, atinge em cheio categorias com ampla maioria de mulheres como a limpeza. As mulheres negras, além de serem maioria entre as terceirizadas, também são maioria entre as empregadas domésticas, uma herança que carrega tintas da escravidão em nosso país. Nas moradias das classes média e alta, a realização do trabalho doméstico é quase exclusivamente feminina, com uma grande maioria de mulheres negras. No campo, as trabalhadoras pobres sofrem com as condições arrebatadoras de trabalho que destroem seus corpos. Aí, a reforma da previdência terá um impacto devastador. É um retrato do Brasil profundo e da milenar opressão de gênero que arranca a vida das mulheres.

No chão das fábricas, onde está a ditadura patronal, as operárias são submetidas ao repetitivo e intensivo trabalho fabril, enclausuradas na linha de produção, alienadas do produto que criam, subordinadas ao assédio moral constante e também convivendo com o machismo e o atraso na própria classe operária, entre seus colegas que ainda não entenderam que a opressão é utilizada pela classe dominante para dividir e enfraquecer a nossa classe. A divisão de postos de trabalho nas fábricas entre homens e mulheres é muito forte, muitas vezes relegando grande parte do trabalho manual às mulheres. Esta divisão reforça o que chamamos de divisão sexual do trabalho, muitas vezes usada como justificativa para exigir maior qualificação dos homens para funções menos alienadas.

Essa precarização se expressa de forma grotesca na diferença salarial entre homens e mulheres, entre negros e brancos. Em 2015 as trabalhadoras brasileiras ganhavam 23,6% a menos que os trabalhadores homens. Segundo o IBGE, “Essa disparidade entre os gêneros também pode ser observada na análise da renda da população. Os dados mostram que a renda média nacional do brasileiro é de R$ 2.043, mas os homens continuam recebendo mais. Enquanto eles ganham, em média, R$ 2.251, elas recebem R$ 1.762 (diferença de R$ 489)”. As mulheres negras brasileiras ainda não conseguiram alcançar nem 40% do rendimento total dos homens brancos, segundo o IPEA.

Mulheres terceirizadas, temporárias, estagiárias, informais, domésticas, donas de casa, desempregadas. O batalhão de professoras e suas jornadas “extra-oficiais”, suas vozes roucas e o salário de miséria compõem o cenário feminino da mão de obra assalariada no Brasil. Este retrato da precarização é extenso e sem limites e se liga cada vez mais a uma juventude "sem futuro". As reformas em curso buscam potencializar este cenário, dando mais mecanismos à classe dominante para que aumente seus lucros com a exploração do trabalho feminino e das mulheres negras em especial, além de impulsionar e fortalecer um caldo social e econômico propício para fenômenos de extrema direita, como os que estamos vendo nas escolas. Uma resposta imediata a esta situação deveria ser tomada pelo conjunto dos sindicatos, batalhando pela anulação da lei da terceirização, rechaçando a divisão das fileiras operárias e impondo a efetivação de todos os terceirizados sem necessidade de concurso público, exigindo os mesmos direitos.

Por isso a bandeira de “igual trabalho, igual salário” também deveria ser ordem do dia, exigindo a igualdade salarial entre homens e mulheres e entre negros e brancos, especialmente combatendo a desigualdade salarial das mulheres negras. O anúncio do governo Lula-Alckmin sobre isso entretanto reafirma apenas duas questões: não será por via de um Congresso cheio de bolsonaristas que essa medida será aprovada, depende da nossa luta e por outro lado não existe igualdade salarial de fato sem destruir todos os mecanismos que rebaixam o salário das mulheres como a terceirização e as reformas. Por isso, é preciso enfrentar a terceirização do trabalho lutando pela efetivação de todos os terceirizados sem necessidade de concurso público, uma batalha elementar para que nossa luta seja em defesa dos empregos dos terceirizados.

Importante dizer, também, que a terceirização irrestrita está acompanhada hoje das chamadas “economias de plataforma”, que cumprem o papel de “modernizar” as mais precárias relações de trabalho. De um lado, um celular e alguns cliques, e em poucos minutos chega seu produto, mostrando a facilidade e agilidade da tecnologia no século XXI. Do outro lado, um jovem trabalhador negro, sobre uma bicicleta ou uma moto, em jornadas ilimitadas, ganhando valores irrisórios e arriscando a vida todos os dias no alucinante trânsito das grandes metrópoles.

Como apontamos acima este retrato é naturalizado cotidianamente até mesmo nas mais importantes universidades do país que convivem com políticas de segregação como na USP onde os terceirizados são impedidos de utilizar os ônibus internos da universidade. Contra toda essa ordem da era da precarização é um grande acerto o lançamento de um Manifesto que coloca também a devida importância na luta em defesa dos setores mais oprimidos dentro os terceirizados e precarizados que são as mulheres e negros.

Pão e Rosas: um movimento de mulheres construído na luta contra a terceirização

O grupo de mulheres Pão e Rosas foi fundado no Brasil em 2007. Começou a se organizar através de pequenas reuniões convocadas pelo chamado Núcleo Pão e Rosas na PUC-SP com a tarefa de organizar uma pesquisa entre as trabalhadoras terceirizadas da universidade com o intuito de fazer um levantamento sobre a situação de trabalho e o perfil que compunha aquele quadro terceirizado em uma das importantes universidades do estado. Foi um primeiro passo para nortear o que viria a ser um dos principais alicerces do nosso feminismo socialista: a luta contra a terceirização. Sempre o fizemos desde uma perspectiva marxista e revolucionária, ou seja, que não reduz a nossa luta apenas aos “excessos” do capital, mas que conecta a batalha pela igualdade de direitos dos setores mais explorados e oprimidos a uma luta abertamente anti-capitalista para destruir o princípio da exploração pela raiz.

Paralelamente a isso começavam a surgir lutas parciais na Universidade de São Paulo diante dos recorrentes casos de atraso de salário fruto do mecanismo da terceirização. Se a empresa é terceirizada, ela pode sumir e a USP nada tem a ver com aqueles trabalhadores, não seria “seu problema”. Nosso grupo esteve aí, organizando abaixo-assinado e uma forte campanha de cartazes com os dizeres “A terceirização humilha, divide, escraviza”, alertando aos estudantes que naquela universidade de excelência também havia trabalho semi-escravo.

Ao longo dos anos participamos ativamente de inúmeras lutas de terceirizados nas universidades em diversos estados do país. Greves da União, Higilimp, BKM, Corline e muitas outras empresas terceirizadas. Estivemos em cada piquete, ato, reunião, assembleia, coordenando, contribuindo com cada luta parcial e mostrando, na prática, que se a terceirização tem rosto de mulher negra, a revolta e a luta também tem. Por isso, além de nossa vasta publicação da Coleção ISKRA Mulher com clássicos do marxismo e elaborações teóricas contemporâneas buscamos transformar em livro as experiências vivas das trabalhadoras terceirizadas da USP em suas lutas com o livro “A precarização tem rosto de mulher” publicado em 3 edições com contribuições de Ricardo Antunes, Claudia Mazzei Nogueira, Renata Gonçalves, Beatriz Abramides e Jorge Luiz Souto Maior. Foram centenas de atividades ao longo de todos estes anos construindo um movimento pela efetivação dos terceirizados, que passava por uma batalha política na própria esquerda para assumir este como um programa decisivo de unidade das fileiras operárias.

Esta batalha, para nós, segue vigente. Por isso, em nosso último encontro, o Encontro Comunista do Pão e Rosas que reuniu mais de 600 trabalhadoras e estudantes em todo país, votamos como prioridade encampar o Manifesto contra a terceirização e a precarização do trabalho que conta com mais de 1 mil assinaturas de intelectuais, juristas, parlamentares, entidades e entregadores. A partir de agora colocaremos uma grande campanha de pé nos locais de trabalho e estudo para coletar milhares de assinaturas e organizar um forte movimento contra a terceirização pensando nas batalhas que temos que dar em cada local para garantir igualdade de direitos. Convidamos todas e todos a assumirem essa batalha junto com a gente.

Leia também: Mais de mil intelectuais, juristas, parlamentares e entidades acadêmicas e de representação de trabalhadores(as) lançam Manifesto contra a terceirização e a precarização do trabalho.


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Diana Assunção

São Paulo | @dianaassuncaoED
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