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ESTÉTICA | A história do Brasil pede um cinema revolucionário

sexta-feira 2 de março de 2018 | Edição do dia

O desafio crítico não está apenas em pensar os filmes brasileiros que já foram feitos. A questão é pensar os filmes brasileiros que ainda não foram feitos. Para isto existe um motivo básico: a condição histórica do nosso cinema não envolve uma diversão qualquer, mas uma prazerosa fonte de conhecimento acerca da realidade brasileira. A formação de um público capaz de reconhecer as imagens que expressam a pobreza, as lutas e a complexidade cultural do país, não pode se dar numa relação mercadológica em que compra-se a entrada do filme, assiste-se ao produto e depois “ tchau “. É necessário que a sala de exibição seja um local destinado ao debate sobre o filme, cujo significado não se encerra com o desfecho e o aparecimento dos créditos finais: o significado da obra exibida continua, é construído, com a análise que os espectadores fazem dela. Este tipo de relação cinematográfica, que ainda é uma realidade cultural nas poucas salas públicas de exibição do Brasil, requer um cinema brasileiro em que nossa história seja criticamente narrada. Tanto para quem filma quanto para quem assiste(e graças às novas condições de produção via tecnologias digitais, existe um número crescente de pessoas que fazem as duas coisas) é necessário ter uma concepção de cinema e de história.

Se atrás da câmera existe um homem brasileiro, cujo olhar revela uma ideologia e uma posição de classe, o que ele pode querer contar para aqueles que estão na frente das telas, isto é, seres que igualmente pertencem à determinadas classes sociais e que são portadores de ideologias? É fácil esconder-se da responsabilidade histórica de representar através de filmes o nosso país. Os cineastas que não possuem inquietações estéticas, que almejam ganhar um milhão de dólares através de filmes comerciais(que na verdade representam um único e péssimo filme: a reprodução congelada de um mundo a ser conservado), devem ficar longe de um projeto cinematográfico que fixa a câmera sobre a realidade brasileira e latino americana em geral. Mas para aqueles que pensam no que e porque filmar, se faz necessário repensar todo processo cinematográfico: o argumento, passando pelo roteiro, pela produção, filmagem, edição e chegando ao próprio conceito de circulação do filme. Sendo assim a concepção, execução e exibição do filme existem dentro de uma posição política. Logo quem pode construir um contexto de produção e exibição de filmes que expressam os interesses históricos dos trabalhadores, são cineastas militantes que atuam nas organizações de esquerda. Estes cineastas já existem: são aqueles que corajosamente filmam as greves, as manifestações de resistência da cultura popular, que contam a história dos oprimidos através do audiovisual. Toda esta rapaziada possui as condições históricas para formar não apenas coletivos que produzem filmes independentes, mas verdadeiros SOVIETS DE CINEASTAS(a facilidade tecnológica para que estes militantes se comuniquem dentro de um país extenso como o Brasil, é inquestionável).

Durante o processo revolucionário russo, quando o Proletkult decidiu mobilizar os cineastas russos para a realização de filmes que contam para um público em grande parte analfabeto a história da luta proletária naquele país, encontramos um notável esforço para fazer do cinema uma forma de conhecimento histórico e logo de formação política. É deste tipo de esforço que o cinema brasileiro necessita nestes tempos politicamente difíceis para a classe trabalhadora. Felizmente no Brasil os cineastas de esquerda não precisam começar do zero, pois existe uma importante tradição cinematográfica que tem sua raiz no movimento do Cinema Novo dos anos 60. As lições autorais de cineastas como Glauber Rocha, apontam para um legado estético no qual o filme é um desafio que desestabiliza psicologicamente o espectador, arrancando sua segurança cultural e confrontando sua pupila anestesiada com imagens feias, tristes, violentas, reveladoras de um processo econômico que atira no colo da miséria gerações de brasileiros. Com base neste tipo de referência estética(que não envolve somente o Cinema Novo) os cineastas percebem que muitas histórias sobre o nosso país ainda não foram filmadas(e se foram, necessitam de mais versões/registros cinematográficos).

Um cineasta brasileiro que leu Marx e deu uma banana para o cinemão imperialista, está em condições intelectuais de revisitar nossa história para encontrar temas inexplorados. Quantos filmes revolucionários podem nascer a partir da Revolução Pernambucana de 1817, da Confederação do Equador de 1824, da Revolta dos Alfaiates de 1798 ou da célebre Greve de 1917 . Muitos espectadores de origem proletária poderiam ficar inflamados com filmes sobre revoltas como a Balaiada ou a Cabanagem. Muitos militantes negros podem encontrar importantes eixos de resistência em filmes que narram a rebeldia dos quilombos e dos capoeiristas que não baixavam a cabeça para os feitores dos tempos da escravidão. A história das lutas indígenas está para ser devidamente filmada: a figura do homem gentio iria para o espaço de uma vez por todas se filmes representassem tribos em luta contra a colonização portuguesa. Falsos heróis podem ser desconstruídos, o que envolve por exemplo as mãos sujas de sangue dos bandeirantes, as missões religiosas que destruíam culturas, a brutalidade na Guerra do Paraguai. Em tempos de elogio ao autoritarismo, é de grande importância realizar cada vez mais filmes sobre a trajetória dos militantes de esquerda que amargaram nos porões do Estado Novo e do período da ditadura militar. Enfim, o que não faltam são temas históricos.

Somente filmes revolucionários podem contar devidamente a história do Brasil sob o ponto de vista dos oprimidos. Logicamente que alguns temas históricos sugerem aparentemente orçamentos faraônicos. Porém, para um cineasta militante, não existem muitos recursos disponíveis com a direita no poder. Improvisar e experimentar tornam-se pressupostos que se ajustam ao ritmo da montagem dos filmes de contestação. Sem dúvida que o cinema possui muitas possibilidades de realização: um filme não precisa ter necessariamente ligações com a dramaturgia e a literatura, não precisa necessariamente narrar uma história. Entretanto, quando um cineasta brasileiro se propõe a narrar acontecimentos fictícios ou verídicos, ele se depara com o fato da história do Brasil ser, inclusive no cinema, feita de omissões. É aí que a câmera precisa entrar, é aí que o olhar do cineasta pode produzir um olhar revolucionário.




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