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A nova política externa de Lula não é tão nova e é a continuação da política interna de conciliação de classes

Leandro Lanfredi

A nova política externa de Lula não é tão nova e é a continuação da política interna de conciliação de classes

Leandro Lanfredi

Nas últimas semanas com as declarações de Lula em Pequim vimos um reverdecer de ideias, ou melhor dito, ilusões, entre a esquerda e centro-esquerda brasileira de uma política externa independente sem uma mudança radical nas relações internas entre as classes sociais brasileiras e a histórica relação de dependência – e vassalagem – com potências internacionais. Procuramos neste artigo examinar a política externa de Lula a luz dessa relação e seu contexto histórico.

As declarações de Lula sobre o dólar, sobre o FMI, sobre a guerra na Ucrânia abriram um furor em círculos políticos e jornalísticos brasileiros. Do lado de uma Globo News, CNN e satélites tratava-se de um movimento muito criticado mas que sempre ressaltavam, no marco de um movimento correto de recolocar uma forma “histórica” da política externa brasileira “independente”, mas o ruído para estes (e até mesmo a Carta Capital) era desnecessário indispor-se com o “Ocidente”. De parte de petistas e satélites, tratava-se da possibilidade de algo mais, de uma mudança qualitativa na localização do Estado brasileiro no jogo internacional de estados.

André Barbieri visitou posicionamentos da grande mídia, passando em revista a Economist, critica Gielow da Folha, Waack da CNN, por defensores da China em nossas terras, e teceu diversas ideias importantes em “Lula na China: a relativa autonomia estatal e a dupla dependência” onde remarca uma baliza crucial que passa desapercebido às vezes no debate: a dupla dependência do Estado brasileiro dos EUA e China. Nesse artigo citado, o autor pontua a mudança em relação a subordinação brutal aos EUA organizada sob governo Bolsonaro para agora um retorno “à forma” histórica de política externa do Itamaraty.

O autor afirma: “Essa forma conservadora das relações internacionais do Brasil informa o caráter subordinado do próprio no sistema de Estados: sem poder ter poder de fogo relevante nas grandes disputas, encontra nos interstícios do sistema as brechas para alcançar seus objetivos parciais. Esse é o dualismo dramático da política externa brasileira no início do terceiro governo Lula.

Essa busca dos interstícios informa uma política interna também. “A política externa é uma continuidade da política interna”, definia o revolucionário russo Leon Trótski em artigo de 1939. Em países com características dependentes, atrasadas e com traços semicoloniais como o Brasil é inseparável pensar a política interna da penetração de capitais estrangeiros, suas diplomacias, sua tecnologia e mesmo sua influência militar.

Há uma infinidade de interesses materiais que se cruzam no Brasil e na América do Sul, característica relativamente histórica do continente que mais de uma vez esteve no interstício de domínios, primeiro entre Inglaterra e EUA antes da hegemonia americana e depois no interstício do domínio yankee. Se há um lugar nas Américas onde o domínio yankee é mais relativo é no Cone Sul, aqui historicamente potências emergentes tentaram estabelecer maior disputa, isso pode-se ver antes da primeira guerra mundial, antes da segunda guerra mundial, e ao início do declínio da hegemonia norte-americana nota-se, desde ao menos a ditadura brasileira, uma relação diferenciada com potências europeias, como a Alemanha que ajudou os militares brasileiros a desenvolver tecnologia atômica.

Por sua vez também é impossível pensar o alinhamento tão pró-EUA de Bolsonaro sem ver a virulência anterior da Lava Jato e sua relação com o partido democrata e o deep state americano, uma operação que além de atacar politicamente o país sendo peça do golpe institucional e sua continuidade, atacou estatais, global players brasileiras e particularmente mirou em domínio de tecnologias próprias ou em parcerias com potenciais europeias (as sondas da Petrobrás junto ao Santander; os submarinos nucleares junto à França, e os super-caças junto a mesma potência).

Também não deixa de chamar atenção a sincronia em que a general norte-americana responsável pelas Américas veio à Argentina buscar acordos sobre o lítio justamente quando Lula aumentava o tom contra os EUA e Europa. A crítica estadunidense veio acompanhada de 500 milhões de dólares para o Fundo Amazônia, sinalizando como apesar das críticas às declarações de Lula não estão dispostos a alienar o maior país da América do Sul à China e Rússia. A visita de Lula a Portugal e Espanha, por sua vez, é retratada pela estatal alemã de mídia (DW) como a busca de apoio dos maiores parceiros no acordo UE-Mercosul. Os sinais cruzados seja de Lula (voto pró-ocidente na ONU, frases mais alinhadas a Rússia, entre outros) seja das potências europeias e americanas se inserem todas num contexto que procuramos descrever como uma “corrida de velocidades” das potências na América do Sul.

A política externa como continuação da política interna

Qual política interna era continuada por Bolsonaro com sua política externa de bater continência aos EUA, como fez na campanha de 2018? Um brutal avanço sobre direitos trabalhistas, sociais e indígenas em nome de avançar uma forma de acumulação de capital para exportadores de commodities, importadores de itens de consumo à la Havan, e avanço em privatizações. Mesmo Bolsonaro com seu ímpeto de desconstrução tinha que falar grosso contra a China, como um Trump, mas devido aos interesses materiais do agronegócio brasileiro não podia ir nenhum passo além da retórica.

Há importantes alas da burguesia brasileira que saúdam a tentativa de trazer a política externa brasileira mais de acordo a sua “tradição”, uma tradição que também ecoa uma maneira de alas da burguesia brasileira tentar seu lugar no mundo – um equilíbrio entre múltiplos atores e múltiplas relações de subordinação (ou mesmo dependência). A política externa de interstícios de Lula busca justamente uma conciliação com os interesses capitalistas que se cruzam no país, um agronegócio brutalmente dependente da China e todo Oriente, uma dependência tecnológica, política e militar imensa dos EUA e um terceiro componente com muito peso material, liderando o investimento estrangeiro no país, mas que não atua em uníssono, o capital europeu que ora bandeia-se de forma americana, ora chinesa e em geral apesar da União Europeia articula-se muito mais como “espanhol”, “francês”, “alemão”.

Justamente nos intervalos mais estreitos em Lula 3 do que Lula 1 ou 2 que trafega a política externa. Tentando um acordo de cooperação em tecnologia de satélites com a China, de tecnologia nuclear com a Rússia, quando por outro lado não há nenhum questionamento à concessão da base espacial de Alcântara aos EUA e expressa proibição de utilização pela China ou em parceria com ela. Ou seja, o Brasil não vai ter base especial onde se beneficiar do acordo com a China. Esse passo aqui e passo contraditório acolá se vê em cada terreno, da votação na ONU condenando a Rússia versus a declaração diferente, o discurso contra as privatizações para aplaudir o investimento do Emirados Árabes na ACELEN, justamente a refinaria privatizada na Bahia.

Para entender a política externa brasileira é preciso relacioná-la com a política interna bem como não tomar um lado dos fenômenos isolando-os de seus contrários complementares. É justamente esse movimento polar que predomina na mídia burguesa (que aumenta os elementos “anti-ocidente”) e na mídia petista que minimiza os pró-EUA. Por exemplo, quantas linhas correram na mídia petista sobre a independência brasileira ao negar à Alemanha componentes do tanque de guerra Leopard que seria cedido à Ucrânia e quão gritante foi o silêncio perante o golpe de estado apoiado pelos EUA no Peru e o apoio militar que Lula deu aos golpistas?

Aqui fizemos um vôo de pássaro sobre esses elementos díspares que compõem uma política externa como continuação das contradições internas que inclui um maior alinhamento com China e Rússia que previamente, mas em um contexto de procurar não tomar um lado, trabalhar no interstício. Como bem lembraram parlamentares americanos em sessão sobre a presença chinesa na América Latina, o Brasil é um dos únicos países da América do Sul que não é signatário do projeto chinês Rota e Seda.

A relação com a China que inclui investimentos produtivos tem se concentrado em participações em privatizações no setor energético (eletricidade e petróleo) e sobretudo agronegócio e sua logística. É uma relação que acentua dependência, porém há quem queira ver um caminho anti-imperialista. É o que defende um articulista dos neorreformistas da Resistência-PSOL, que passa adotar uma visão de investimentos (capitalistas) chineses como um caminho de independência (sic). Passaram a adotar um corte de campos de Estado e não de classe nessa análise, vejamos:

“É uma função do governo brasileiro Brasil, assim como hoje é uma possibilidade que se abre, a realização de um diálogo estratégico com a China. O governo Lula deve pensar com o objetivo de realizar a industrialização de nosso país, modificar nossa economia, e fazer com que o Brasil cumpra um papel importante como voz dos países do Sul global na sua busca por desenvolvimento e independência.”

Outro autor da mesma corrente, agora não em nome próprio mas da “redação” de seu grupo diz: “Não está claro ainda o papel do Brasil nessa nova divisão mundial do trabalho e sistema mundial de Estados. Desde Temer e sobretudo sob Bolsonaro, a elite brasileira tem apostado em uma localização absolutamente subordinada politicamente e dependente economicamente, com o Brasil acompanhando sempre os votos norte-americanos na ONU e fornecendo commodities baratas para o mundo. Não se sabe ao certo o que Lula pensa a esse respeito. As declarações até agora têm sido demasiado genéricas. Um passo prático é a atual viagem de Lula à China. Vejamos em que resulta.”

Citamos esses dois autores dessa corrente pela simplificação dos argumentos que podemos ver repetidos em articulistas do PT às vezes com maiores voltas, resulta que não sabem qual o lugar do Brasil na divisão mundial do trabalho e que com capital chinês em parcerias público privadas ou privatizações estaríamos rumo a “independência”. É por um lado um exagero de “autonomia” que nenhum funcionário do Itamaraty se arriscaria a falar e por outro uma irreparável perda da bússola de classe. As tarefas antiimperialistas não podem ser realizadas por mãos burguesas e de potências estrangeiras, mas pela ação dos trabalhadores.

É preciso reconhecer que em uma situação de maior conflitividade interestatal, com maior competição entre potências, como a que vivemos, abrem-se interstícios para burguesias tentando se equilibrar entre dependências distintas. Mas não se pode resolver tarefas que exigem combate através de manobras. Já vivemos a ascensão e queda da ilusão do Brasil virar potência sem conflito com os imperialismos. Agora vivemos um revival senil em situação muito mais difícil.

Nosso desafio é entender o jogo internacional em curso como parte do jogo interno que mantém inalterada a dependência e o caráter do Estado brasileiro. Mostrar aos trabalhadores esse jogo e aumentar sua confiança que tarefas progressistas devem ser cumpridas por eles e não pelo Estado brasileiro.

É sintomático da ilusão e desilusão da “razão de Estado” e não de classe para as tarefas antiimperialistas como uma mesma Federação Única dos Petroleiros partiu da comemoração das declarações antiprivatizações de Lula na China a criticar o elogio de Lula e do governador Jerônimo Rodrigues (PT) em sua próxima escala da viagem, nos Emirados Árabes onde essa petromonarquia reacionária anunciou investimentos bilionários para continuar a privatização da Petrobras na Bahia.

Como mostrava Trótski em uma situação muito mais aguda, diante da Segunda Guerra mundial, esse conflito de potências gera espaços para países dependentes, mas que sua resolução integral depende do movimento de massas e da existência de partidos revolucionários e anti-imperialistas:

“No primeiro período da guerra, a posição dos países fracos pode chegar a ser muito difícil. Mas, com o correr dos meses os imperialistas se tornaram mais e mais fracas. A luta mortal entre eles permitirá aos países coloniais e semicoloniais levantarem suas cabeças. É claro que isso também se aplica aos países latino-americanos. Serão capazes de conquistar sua própria liberação se à cabeça das massas se colocam partidos anti-imperialistas e sindicatos verdadeiramente revolucionários. Não se pode escapar de trágicas situações históricas por meio de evasões, frases ocas ou mesquinhas mentiras. Devemos dizer às massas a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade.” (“A luta anti-imperialista é a chave da liberação” in Escritos Latino Americanos).


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Leandro Lanfredi

Rio de Janeiro | @leandrolanfrdi
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