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Hoje todos amam Rita Lee

Thiago Flamé

Hoje todos amam Rita Lee

Thiago Flamé

É usual, e com ela não seria diferente, que sobre o cadáver de uma grande personalidade, se juntem os abutres de todos os tipos para se alimentar da carne ainda fresca. Afinal, os mortos não falam. Mais do que falar sobre Rita, sua vida e sua obra, queremos aqui refletir sobre a repercussão de sua morte no Brasil pós Bolsonaro.

Rita Lee foi uma gigante, e sua obra se situa em algum lugar na fronteira entre o rock e a MPB, entre o mainstream e a contracultura, sendo difícil de rotular ou de enquadrá-la em um lugar determinado. Apesar de enorme, não era como a outra gigante que perdemos recentemente, Gal Costa, uma unanimidade nacional. Não…

Uma figura muito mais rebelde, muito mais difícil de ser assimilada pelos grandes meios de comunicação, muito mais estigmatizada, mais censurada, mais perseguida, mesmo pós ditadura. Basta ver a ação da PM, que a prendeu por desacato em seu último show, em 2012, ainda no auge dos governos petistas. Rebelde, feminista, defensora da legalização das drogas, distante da política institucional, Rita nunca deixou de ser uma figura difícil de engolir para a mídia conservadora, reacionária e… careta. Acontece que ela não falava só através da música, descia o cacete por fora.

No Brasil de 2023, em que a direita neoliberal se aliou a Lula como forma de legitimar o regime político do golpe institucional, se colar à imagem de uma Rita Lee que já não pode responder é uma forma de se credenciar junto ao público progressista. De repente, a mídia ama Rita Lee. É impressionante como ela mesma anteviu algo do que está acontecendo agora, quando disse que “podia imaginar as palavras de carinho de quem me detesta" e de quem a condenou ao ostracismo durante os últimos anos de vida, poderíamos completar. Agora, como parte da operação para se desvencilhar do incômodo apoio prestado ao governo Bolsonaro, todos parecem amar Rita Lee.

A Folha publicou um texto com uma manchete nojenta, para dizer o mínimo, que destoa, junto com a primeira frase, do belo e sensível texto escrito pela jornalista Laura Mattos - o que nos faz até pensar - tomara - que tem dedo dos editores aí. A manchete exala conservadorismo “rebelde desde a infância, se deixou levar por drogas e disco voador”, como se a sua rebeldia fosse uma alucinação fruto de uma viagem de ácido. E na primeira frase, escarrando misoginia, “tinha cara de anjo, mas cultivou atitude rock´n roll desde pequena. Uma adversativa fora de lugar, como se houvesse alguma oposição entre beleza padrão e rebeldia. Como se ser mulher e ser rebelde fossem coisas estranhas, apagando o papel que tiveram mulheres contemporâneas de Rita Lee. Como se Janis Joplin, Grace Slick, Joan Baez e tantas outras “carinhas de anjo” não existissem, nem seu protagonismo de primeira ordem da atitude “rock´n´roll”.

Frente a revolta dos seus próprios leitores, a Folha ainda tentou, numa inversão tão comum em nossos dias, jogar a carolice própria, o reacionarismo próprio, no colo dos leitores. Marilia Pereira Jorge, num artigo horrível, tenta apresentar a coisa como se a revolta se devesse ao fato do jornal escancarar a relação de Rita com as drogas. É muito cinismo. O que sim convém notar é que parece que Rita Lee é a única artista que fez uso de drogas recreativas, como se Gal, como se Elis, como se Erasmo e tantos outros não tivessem cultivado também o gosto pelos entorpecentes. Por que só com Rita Lee o uso de drogas aparece como o fundamento, ou a causa, das suas atitudes? Ou como se o uso de drogas fosse uma exclusividade dos rebeldes… Como se as dondocas bolsonaristas não usassem e abusassem da combinação álcool e remédios tarja preta, ou como se não fosse sabido e conhecido o uso de cocaína e outras drogas tão populares nos meios mais conservadores. Precisamos lembrar dos rumores que sempre envolveram a figura de Fernando Collor de Melo, ou do gosto nada secreto de um Aécio Neves?

O cinismo sempre foi e sempre será a marca registrada de todos os defensores da moral dos bons costumes, e não seria diferente nos neoliberais que abandonaram Bolsonaro para aderir ao governo Lula, que os recebe de braços abertos. Não precisamos fingir concordar com as posturas políticas de Rita Lee, das quais discordamos de muitas, para dizer que ela é a nossa ovelha negra e nunca será de vocês, por mais que tentem agora assimila-la. Sua arte e sua postura que permaneceu subversiva até os últimos dias - quando chamava o seu tumor de Jair, por exemplo - seguirá inspirando as novas gerações que despertam para a vida política cada vez simpatizando mais com as ideias comunistas.


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