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Mariátegui: teoria e revolução

Entrevista com Juan Dal Maso

Mariátegui: teoria e revolução

Entrevista com Juan Dal Maso

Em um novo aniversário da morte de José Carlos Mariátegui, entrevistamos Juan Dal Maso sobre seu novo livro Mariàtegui. Teoría y revolución [1]. Abordamos algumas das múltiplas questões que atravessam a obra do marxista peruano e que o livro retoma, como o internacionalismo, a arte e a revolução, a América Latina e a relação entre indigenismo e comunismo, a teoria da revolução e os vínculos entre marxismo e filosofia. O livro estará nas ruas nos próximos dias, publicado pelas Edições IPS na Argentina.

Como surgiu a ideia de fazer este livro?

A ideia já existia há vários anos. Comecei a ler Mariátegui em 2001, pensando sobretudo que poderia me servir para ter uma compreensão mais profunda da realidade latino-americana, e sempre me impactou sua capacidade de pensar com sua própria cabeça. Naquele momento, escrevi alguns artigos entre 2001 e 2004. Depois me envolvi mais com Gramsci e recentemente, por volta de 2017, voltei brevemente às discussões sobre Mariátegui. Com a justificativa dos 90 anos de sua morte, em 2020 publiquei uma edição corrigida de um artigo que tinha escrito em 2002. Depois, Sara Beatriz Guardia me propôs participar do conselho consultivo da Cátedra Mariátegui do Peru. Nesse ano saiu a Antologia do Século XXI, editada por Martín Bergel, que gerou vários debates sobre “socialismo cosmopolita” ou “nacional-popular”, com intervenções de Omar Acha e Martín Cortés, entre os quais também participei. Da forma como foi colocada, a discussão me parecia meio unilateral, mas acredito que a intervenção de Bergel cumpriu um papel importante em recolocar as leituras de Mariátegui em discussão e, nesse sentido, também foi um impulso para avançar com esse livro. Obviamente, com a eleição de Pedro Castillo no Peru e a crise e as manifestações massivas que ocorreram no país depois do golpe institucional que o destituiu, voltaram a ser colocados diversos debates sobre Mariátegui, o anti-imperialismo, a questão indígena e outros problemas relacionados. Voltei a tomar o tema e finalmente decidi encarar o livro. Aproveito para agradecer especialmente a família de José Sabogal por autorizar o uso da obra Tambo Colorado que ilustra a capa e as pessoas da Pinacoteca Municipal Ignacio Merino de Lima por sua colaboração.

Quais as diferenças de leitura de Mariátegui que você propõe, em comparação com outras que circulam sobre seu pensamento?

Meu objetivo é muito elementar. O que quero é sugerir que Mariátegui seja lido em seu contexto e com curiosidade suficiente para ir além de certas leituras já muito estabelecidas. Penso na de José Aricó, que teve méritos indubitáveis no resgate da obra de Mariátegui, mas o leu a partir do frente-populismo, ou mais recentemente na de Aníbal Quijano, que o apresenta como um precursor inconsequente da confusão decolonial. Então, diminuo a perspectiva de buscar uma originalidade na “minha leitura”, não por falsa modéstia, mas porque meu objetivo é que Mariátegui seja lido mais do que seus comentadores, incluindo eu mesmo. Isto dito, penso que o específico deste livro é a tentativa de pensar Mariátegui em termos teóricos, o que implica ir além do comentário estrito à sua obra e refletir em um nível um pouco mais sistemático, ou seja, não o tomar apenas como alguém que escreveu - como ele mesmo disse uma vez - com um olhar “entre o jornalístico e o cinematográfico” sobre a conjuntura, mas também como alguém que construiu elaborações teóricas importantes, tanto no que diz respeito à teoria da revolução, quanto à análise dos problemas centrais das primeiras décadas do século XX a nível internacional, latino-americano e do Peru. Isso requer recuperar também sua leitura sobre a época e os problemas internacionais e suas tensões com a questão nacional, partindo de um ângulo centrado no estratégico, mas também seu olhar da evolução histórica do marxismo, no marco de uma mudança de época.

Nos dois primeiros capítulos do livro, são retomadas as contribuições de Mariátegui para analisar o panorama político do primeiro pós-guerra e da década de 1920 na Europa. Que questões você acha que deveriam ser destacadas em seus escritos sobre esse período?

Penso que, em primeiro lugar, pode-se resgatar de seu pensamento o olhar sobre a crise como econômica, política, ideológica e cultural, um olhar multidimensional, que ele resume na expressão de “crise civilizatória” ou “crise de civilização”. Em segundo lugar, sua leitura das revoluções é muito perspicaz: resgata a importância histórica dos sovietes como principal inovação da Revolução russa, a crueldade da contrarrevolução diante das indecisões do poder revolucionário no caso da Hungria, os problemas de preparação ideológica do proletariado na Revolução alemã, o caráter de longo prazo que reveste a luta revolucionária uma vez que a burguesia aprendeu a lição da Rússia. Reflete sobre o ascenso do fascismo, a crise da democracia liberal e a importância dos levantamentos anticoloniais. São todas questões fundamentais dos primeiros anos do pós-guerra. Depois, no momento da chamada estabilização capitalista, em meados da década de 1920, analisa as tensões entre as potências imperialistas e o deslocamento de Grã-Bretanha pelos Estados Unidos como potência hegemônica, as contradições e problemas para conquistar maiorias estáveis nos regimes parlamentares da França e da Alemanha, assim como os problemas derivados da integração do reformismo operário no Estado burguês. Em suma, oferece importantes reflexões, tanto do ascenso revolucionário como do período posterior de recomposição do poder capitalista, para compreender o momento histórico.

Ainda que todos tenham mais ou menos a mesma quantidade de páginas, o terceiro capítulo é o mais longo do livro e é dedicado ao tema da “arte e revolução”, que é algo de que você não se ocupa habitualmente. Que importância esse tema tem no pensamento de Mariátegui e por que é necessário levá-lo em conta?

Sim, como bem disse, não é um tema que eu maneje com facilidade, mas era vital para Mariátegui, que tentava pensar como abordar a questão estética nos marcos da “crise civilizatória”. Existe um questionamento dos valores da sociedade burguesa que haviam se consolidado durante o século XIX, do qual são expressão o bolchevismo na extrema esquerda e o fascismo na extrema direita, e esta crise de valores impacta também nos cânones estéticos e na atividade artística. Assim, Mariátegui realizou uma indagação - no meu modo de ver, e como não poderia ser diferente - inconclusa sobre as relações entre arte, revolução e decadência. Argumentou que nem toda arte nova é por isso revolucionária e que não é raro que dentro dessas expressões se enfrentem a revolução e a decadência, inclusive na própria pessoa do artista. A partir daí, analisou experiências como o futurismo, o dadaísmo, o surrealismo, o realismo soviético e o populismo literário francês, entre outras. Para sintetizar brevemente, pode-se dizer que sua posição oscila entre uma reivindicação do surrealismo, de total liberdade para a arte, acompanhada do compromisso político com o comunismo, à outra reivindicação do realismo soviético, estabelecendo uma relação muito direta entre classe e estilo literário, embora este último apareça em poucos escritos. A minha impressão é que se trata de um tema no qual é muito difícil estabelecer posições definitivas, porque se a relação entre revolução, arte e decadência é aberta e complexa, quem pode apontar com exatidão qual desses polos é predominante na obra de um artista, salvos casos evidentes por si mesmos? Esse problema pode ser visto nas próprias reflexões de Mariátegui, porque uma coisa é estabelecer certos parâmetros para análise das obras artísticas e seu contexto, e outro é que isso possa ser refletido sem contradições em cada avaliação singular. Assim, o problema permanece aberto e como parte de sua tentativa de pensar o conjunto do período, isto é, de incluir a questão das vanguardas artísticas no quadro da crise ideológica e cultural do capitalismo e, ao mesmo tempo, procurando indagar como podem se estabelecer relações não panfletárias entre a especificidade do artístico e o compromisso político militante. Por último, incluo algumas referências às suas reflexões sobre a literatura peruana e a questão do indigenismo e da nacionalidade, que também estão relacionadas com sua análise sobre as vanguardas.

O que mais conhecemos de Mariátegui são suas elaborações sobre a realidade peruana e latino-americana, que você também aborda no capítulo IV, que encerra com alguns debates em que aparecem as leituras de Luis Vitale e Álvaro García Linera. Que questões te parecem relevantes sobre este aspecto e qual é sua atualidade?

Sim, estamos em um momento histórico em que, há várias décadas, os povos originários da América Latina têm protagonizado importantíssimas lutas de massas, sem precisar ir muito longe, como recentemente no Peru. Então, a leitura de Mariátegui sobre a convergência entre o comunitarismo indígena e a luta proletária pela revolução socialista volta a ter vigência. Não porque necessariamente as organizações mais representativas dos povos originários sejam socialistas (geralmente não é o caso), mas porque, na visão de Mariátegui, desaparece a contraposição entre autoctonia e internacionalismo, indigenismo e marxismo e isso permite pensar uma estratégia para unificar as demandas e lutas históricas da classe trabalhadora e dos povos originários para enfrentar o capitalismo. Aqui, as discussões sobre o que dizem Luis Vitale e García Linera me parecem importantes porque, em suas críticas ou comentários a Mariátegui, sintetizam problemas fundamentais.

Comentando sobre García Linera, ele disse, em um escrito de 1998, que Mariátegui resgatou a importância da comunidade, mas a viu como algo meramente cooperativo e não como uma instituição política a partir da qual se podia realizar uma unificação em grande escala do conjunto da sociedade. Neste caso, me parece que pesa o verbalismo nas formas característico de García Linera, e no conteúdo atua o que podemos chamar de seu “anti-obrerismo”. Mariátegui atribuiu um papel político à comunidade indígena, tanto que considerava que deveria haver uma continuidade entre esta e a organização operária no âmbito urbano, como aponta nos documentos fundacionais da CGTP. Mas, diferentemente de García Linera, ele a considerava uma força a ser combinada com a organização operária. Por último, considerando as elaborações de García Linera posteriores a esses comentários sobre Mariátegui, não há dúvidas de que ele jamais defendeu um “capitalismo andino” nem nada do tipo.

Luis Vitale, partindo de uma ótica diferente da de García Linera, apontou em uma intervenção de 1997 que Mariátegui foi “reducionista de classe”, que não entendeu o problema indígena como problema nacional e, por isso, não defendeu a autodeterminação indígena em um Estado separado do Estado peruano. Para mim, parece uma leitura pouco cuidadosa, porque, se alguém observa com mais atenção, Mariátegui estabelece e vincula dois níveis de análise. Em um primeiro nível, que podemos chamar estrutural ou elementar, a questão de classe determina a questão indígena. Não se pode entender o problema indígena separado da questão da terra e da estrutura agrária do Peru, e não se pode pensar a emancipação indígena sem relação com a luta de classes moderna. Porém, em um nível histórico, político e cultural, a questão indígena sobredetermina a questão de classe, porque a classe trabalhadora também é indígena e porque a luta de classes no Peru tem como uma de suas principais tarefas a resolução da questão indígena. Portanto, o reducionismo me parece bastante fantasioso, além do fato de que o pseudoconceito de “reducionismo de classe” pressupõe uma incompreensão da centralidade das relações de classe no capitalismo.

Você mencionou o aspecto de autodeterminação ao qual Vitale se opõe, que teve novos desenvolvimentos desde a época de Mariátegui…

Sim. Me parece que o que Vitale não levou em conta é que Mariátegui pensava que a nacionalidade peruana ainda não havia sido conquistada e que o indígena era central para isso. Assim, não via com bons olhos a política de um estado indígena separado do estado peruano. As experiências recentes contribuíram com a discussão de Estado plurinacional, que sem dúvida implica em importantes reconhecimentos, mas permanece no marco econômico do capitalismo. Por isso, penso que a revolução na América Latina deve contemplar a forma de um “Estado plurinacional socialista” ou “Estado plurinacional operário e camponês” para a transição ao socialismo. Isso não nega reconhecer o direito à autodeterminação mesmo com um Estado separado, se for essa a demanda dos povos originários.

No capítulo V, você aponta que Mariátegui falou de revolução socialista na América Latina antes que Trótski. Que implicações esse fato tem para a elaboração de uma teoria da revolução contemporânea?

Bom, obviamente é um tema complexo, mas, tentando sintetizar, eu diria que Mariátegui manteve em linhas gerais a posição da Internacional Comunista que prescrevia uma revolução socialista nos países centrais e revoluções nacionais e anti-imperialistas nas colônias. Mas Mariátegui, em certas conclusões, foi além dos bukharianos e stalinistas.

Houve três experiências que incidiram em sua visão da revolução latino-americana como socialista. Uma é a da Revolução chinesa de 1925-28, na qual o nacionalismo burguês do Kuomintang se vendeu para o imperialismo. Outra é a do México pós-revolucionário, no qual se rompe o “bloco popular” que sustentou Obregón. Por último, a própria experiência da ruptura com Haya de la Torre, que queria transformar o APRA (Alianza Popular Revolucionaria Americana) em um partido nacionalista. Todos esses processos fizeram Mariátegui apontar que a revolução na América Latina não pode ser nacionalista nem anti-imperialista como algo contraposto à socialista, que a revolução deve ser socialista e todos os outros adjetivos (que se referem às tarefas históricas específicas), estão incluídos nesse caráter socialista, ao mesmo tempo que isso não pode ocorrer com direções pequeno-burguesas ou nacional-burguesas. É um tema que ninguém defendia no movimento comunista, nem o oficial nem as variantes oposicionistas, em 1928, que é quando Mariátegui o disse. Trótski elaborou sua versão “madura” da teoria da revolução permanente em 1929-30 e se ocupou da América Latina vários anos depois, no contexto de seu exílio no México. Por essa razão, Mariátegui se adiantou à Trótski na hipótese de uma revolução socialista para o Peru e para a América Latina. Me parece que essa circunstância deve ser levada em conta para compreender a teoria da revolução permanente como teoria e não como livro. Em outras palavras, essa teoria não pode ser reduzida ao livro de Trótski que tem o nome A revolução permanente, o que é óbvio se for considerado a própria obra do Trotsky e outros antecedentes da teoria, mas talvez menos na hora de levar em consideração contribuições de outros autores do século XX que não foram especificamente trotskistas, mas cujas visões não são necessariamente contrapostas a uma teoria da revolução permanente. No caso de Mariátegui, acho importante ressaltar o que se pode chamar de potência de uma teoria incompleta. Se também cabem à teoria marxista as formas de construção de conhecimentos por avanços aproximativos (não necessariamente lineares ou graduais), a aproximação de Mariátegui mostra como se pode contribuir para uma teoria global sem que ele mesmo tenha formulado.

Falando de Trótski, você dedica o capítulo VI às posições de Mariátegui sobre a III Internacional e a Oposição de Esquerda. Quais são as principais arestas a serem consideradas sobre este tema?

Mariátegui foi distinto em múltiplos aspectos (como os que viemos comentando) sobre o comunismo oficial, como o qual se vinculou de forma organica tardiamente. Mas não se deve perder de vista que nunca fez polêmicas públicas explícitas com a política oficial da Terceira Internacional e, ao mesmo tempo, apoiou a política de Stalin e Bukharin contra a Oposição de Esquerda, entre 1925-28, por considerá-la mais realistas para o avanço da URSS. Depois, com o “giro à esquerda” de Stalin com a industrialização acelerada e a coletivização forçada, Mariátegui manifestou certas reservas sobre essas políticas, seguindo as análises do socialista espanhol Álvarez de Vayo, mas considerava que Stalin havia assumido a parte razoável das críticas de Trótski, realizando em certa medida as próprias ideias da Oposição. Deve-se notar também que nunca se somou às campanhas de difamação contra Trótski e que, em linhas gerais, estabeleceu uma posição que buscava baixar o tom do enfrentamento da direção soviética contra ele. Todos esses temas são discutidos neste capítulo, junto a uma recapitulação das aparições de Trótski na revista Amauta, dirigida por Mariátegui. Aqui aparecem as tensões entre uma visão internacionalista e a importância atribuída por Mariátegui à questão nacional, assim como outras discussões subsidiárias, como a associação da figura do oposicionista com o intelectual rebelde distante da responsabilidade da política cotidiana, do qual Mariátegui considerava um arquétipo de seu admirado escritor romeno Panait Istrati, relacionado com Victor Serge.

Por último, retomo os debates da Conferências Comunista Latino-Americana de 1929 sobre anti-imperialismo, partido e questão indígena. Penso que os embates da delegação peruana com Vittorio Codovilla e Jules Humbert-Droz deixaram uma imagem de um Mariátegui mais anti-stalinista do que realmente foi. A discussão bem retratada em A agonia de Mariátegui de Flores Galindo, que é um impressionante livro (e é muito recomendável a edição comemorativa que foi publicada em 2021), assim como nas próprias atas publicadas pela direção oficial e em outras que foram acessadas depois e que não se pode negar que tem diferenças importantes. Basicamente, Mariátegui e seus companheiros queriam construir outro tipo de partido e desenvolver uma política distinta à que lhes propunha a direção da Internacional Comunista, por um lado sectária e autorreferencial e, por outro, com uma concepção de revolução democrático-burguesa que Mariátegui tinha superado por conta própria. Mas o alcance do enfrentamento tinha a ver particularmente com a política para o Peru e não com a orientação global da Internacional Comunista. Ao final deste capítulo, levanto uma breve polêmica com as leituras de José Aricó e Oscar Terán sobre a posição de Mariátegui em relação às orientações da III Internacional.

O capítulo VII é dedicado à discussão de marxismo e filosofia. Você aborda nele diversas questões que estão unidas pelo diálogo de Mariátegui com a chamada “reação antipositivista” e relacionadas com a definição de marxismo de Mariátegui como um “marxismo aberto”. Aberto ou eclético?

Um pouco das duas coisas. A questão é sobre o que predomina, e me parece que predomina é a abertura sobre o ecletismo. Em outras palavras, a operação que Mariátegui faz de recolher distintas posições exteriores ao marxismo para, em alguns casos, assimilá-las ou, em outros, traçar paralelismos ou relações, é produtiva porque permite sustentar o marxismo contra correntes que queriam jogá-lo fora junto com o “evolucionismo do século XIX” mas, ao mesmo tempo, não resulta em uma mescla de posições irreconciliáveis. Onde Mariátegui vê que é possível incorporar mais abertamente, especialmente no caso de Sorel, questões que servem para o marxismo, como a “moral de produtores” e a crítica do evolucionismo e do reformismo, o faz sem problemas. Em outros casos mais complicados, como o de Unamuno, traça certas coordenadas comuns, sem pretender uma tradução exata de uma posição à outra ou maiores sistematizações teóricas. Por exemplo, um livro como La agonía del cristianismo dificilmente pode ser ligado conceitualmente com qualquer obra marxista, mas o mesmo não acontece se for apresentado, como o faz Mariátegui, como parte de uma época de paixões fortes, tanto individuais como sociais. Mariátegui disse que a “agonia (luta), que Unamuno pregava para o indivíduo cristão era defendida na prática pelos bolcheviques para a ação coletiva, de modo que as afinidade entre Unamuno e Lenin não aparecem no plano teórico estrito (o qual seria descabido), mas sim em uma espécie de estado de espírito compartilhado por diversos atores desse momento histórico. Em suma, existia um clima de época, filiações teóricas e uma certa equivalência entre algumas ideias e práticas do período, embora não respaldadas por convergências conceituais claras. As maiores ou menores pretensões ou precisões teóricas que Mariátegui apresenta dependem de que as afinidades sejam reais nesse plano. Ele também faz certo uso instrumental de Croce como um liberal que reivindica a veia moral do marxismo sem ser marxista, mas coleta sua ideia do marxismo como cânone de interpretação histórica centrado na economia, o que parece muito discutível. Para além de certas questões que não subscrevo, penso que, tomando o conjunto de suas reflexões sobre esses problemas, fica um marxismo capaz de mudar com os momentos históricos, sem abandonar suas ideias centrais ou “núcleos duros”. Isso pode ser visto em sua reivindicação da dialética como um pensamento para a análise concreta, sobre a qual faz distintas definições, geralmente incidentais, ao longo dos anos, mas sempre mais ou menos na mesma linha. Por fim, defende um marxismo que não renega o afã de fazer ciência, mas rechaça uma ideologia cientificista. Neste capítulo, retomo também algumas reflexões de um livro de Segundo Montoya Huamaní, que resgata a ideia de “marxismo aberto” de Salazar Bondy, no qual é proposto uma leitura de Mariátegui em termos epistemológicos, entre outras questões.

O oitavo e último capítulo é dedicado majoritariamente a discutir com muitas das leituras mais difundidas e conhecidas de distintos aspectos da obra de Mariátegui e, ao mesmo tempo, relações com outros marxistas menos exploradas. Qual destacaria?

Destacaria a questão do desenvolvimento desigual e combinado, porque é algo que aparece em Mariátegui, esse amálgama de formas arcaicas e modernas do qual Trótski falava, que no pensamento do marxista peruano é evidente em sua reivindicação da comunidade indígena preexistente ao império Inca como ponto de apoio para a luta socialista contemporânea. É também o que diz Claudio Berríos Cavieres sobre a “modernidade arcaica” em Mariátegui. Nessa seção retomo algumas contribuições interessantes de Luis Vitale sobre como ampliar e sistematizar a teoria do desenvolvimento desigual e combinado e a polêmica com Zavaleta Mercado e sua concepção de “variegação”.

A outra discussão que pode ser mais ou menos relevante é a das leituras de Aníbal Quijano sobre Mariátegui. Não é totalmente exaustiva, mas retoma os pontos principais das posições que colocam o fundador do Amauta como antecedente de uma “epistemologia outra” e de expressões desse tipo que nada tem a ver com epistemologia nem com a realidade, mas são parte de um jargão acadêmico confuso e autorreferencial, como é a pseudoteoria decolonial. Aqui faço um parêntese, porque sei que pode ser impopular, sobretudo entre estudantes e gente da acedemia, a crítica frontal à chamada “opção decolonial”. Mas me parece importante apontar que essa espécie de “populismo pós-moderno” não tem fundamentação séria, implica um excesso de palavreado, reproduz a mesma quantidade de preconceitos (ou mais) que se supõem pretender combater e é politicamente um tanto paralisante, por mais que esteja na moda. Também comento algumas coisas sobre as leituras de Aricó sobre Mariátegui, retomando o que disse no capítulo VI, mas me centrando em suas intervenções no Colóquio de Sinaloa de 1980 e suas limitações para ler as ideias de Mariátegui por fora do crivo frente-populista.

Junto a essas três questões, faço algumas observações pequenas sobre as afinidades de Mariátegui e Gramsci e também sobre a questão da religião em Mariátegui, que é algo que nunca se fechou para mim e sobre o qual proponho outro olhar diante da interpretação de Michael Löwy.

Última pergunta. Olhando brevemente para o trabalho que você vem fazendo com seus livros - Gramsci e Trótski, Althusser e Sacristán no livro que escreveu com Ariel Petruccelli, com quem também escreveu um prólogo para um livro de Sebastiano Timpanaro no ano passado, e agora Mariátegui-, toma autores que têm diferenças importantes entre si. A pergunta é: qual é o sentido desse percurso por autores tão distintos e particularmente por Mariátegui? 

Me parece que o tema não é se os autores que eu trabalho ou trabalhei tem as mesmas posições ou ao menos posições próximas entre si, mas se podem ser tratados a partir de um ponto de vista que permita abordar suas ideias para pensar os problemas do marxismo na atualidade. Esse ponto de vista é composto por diversas linhas de análise: a primeira e fundamental - que mencionei no início - é ler o que escreveram mais do que o que outros disseram que escreveram. A outra é a luta estratégica contra o frente populismo, porque este introduz uma notável distorção nos debates marxistas, subordinando a luta de classes à aliança com a suposta burguesia progressista. Para o caso de Mariátegui, a leitura frente populista (sobretudo em suas versões mais simplistas) resulta particularmente insustentável. A outra linha de análise que quero reivindicar é a importância da teoria, especialmente a teoria da revolução, como já comentamos. Por último, considero que as discussões sobre marxismo, filosofia e epistemologia estão longe de ter uma fórmula definitiva. Por isso, é bom convocar posições distintas, inclusive em alguns casos opostas (penso, por exemplo, que Timpanaro é exatamente o contrário de Mariátegui em questões filosóficas), para tratar de mostrar que os problemas devem ser examinados, não a partir de um folclore ou da defesa fechada de uma tradição entendida de forma identitária, mas contextualizando e buscando ver para que nos servem hoje as discussões do passado, para recriar a tradição própria (neste caso, o trotskismo) e ao mesmo tempo pensar como deve ser o marxismo atual em um sentido mais geral. Agora, não poderia discutir isso livro por livro, mas quem os leu ou os vai ler vai poder identificar essas questões em todos, incluindo, é claro, este novo livro.

No que diz respeito a Mariátegui, acredito que sua concepção de crise civilizatória, seu olhar sobre a crise da democracia liberal, suas reflexões sobre a relação entre a classe trabalhadora, a luta dos povos indígenas e o socialismo, sua concepção da revolução na América Latina, suas elaborações sobre as necessárias mudanças que o marxismo deve enfrentar em cada época histórica, dialogando mas também polemizando com as correntes teóricas e filosóficas do momento e criando espaços para o contraste de distintas posições, são todas discussões centrais em um panorama do marxismo caracterizado por uma grande heterogeneidade e por múltiplos debates, diante de um mundo em guerra, com uma enorme crise da democracia capitalista e com processos intensos de luta de classe que ocorrem em ondas em escala internacional.


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FOOTNOTES

[1O livro por hora não será publicado no Brasil, mas publicamos a tradução desta entrevista pois acreditamos que as considerações tem grande relevância nos debates em torno da figura e da obra deste grande revolucionário latino americano, completando em 2023 93 anos de sua morte
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