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Dia Latino-Americano e Caribenho pela legalização do aborto | O aborto e as identidades trans na Argentina

quarta-feira 30 de setembro de 2015 | 00:00

A identidade trans, como qualquer identidade auto-declarada, é construída dentro das possibilidades e limitações do modelo socioeconómico que nos rodeia. Sob o sistema capitalista foram diferentes épocas que moldaram diferentes subjetividades. Em particular na diversidade sexual, a combatividade de milhares de ativistas que colocaram as ideias e o corpo, foram a faísca para a luta contra a patologização e descriminação, desde Stonewall até hoje.

Na Argentina, ativistas e lutadores da diversidade sexual conquistaram legislações muito avançadas: as leis de educação sexual integral e o casamento igualitário, entre outras, contaram com um grande apoio de amplos setores da sociedade que questiona a homo-lesbo-bi-transfobia e a misoginia. Por sua vez, a Lei de Identidade de Gênero, sancionada em 2012, reconhece a autonomia das pessoas em relação ao seu corpo. Por outro lado, concedeu uma “ampliação da cidadania” em quantos sujeitos de direitos.

Como homem trans tive a (péssima) experiência de passar por um aborto. Assim como para outros homens trans, neste momento muitas dúvidas surgiram na mina cabeça. Desde quanto me cobrariam e como conseguir o dinheiro, até onde fazê-lo, como me tratariam. O dinheiro eu consegui e a clínica, que na realidade era uma garagem na casa de uma enfermeira e tinha um esticador e uma barra de madeira para me segurar. Por sorte a anestesia me deixou desacordado durante todo o processo e não tive complicações.

Uma enquete realizada pelo Centro de Opinião Pública e Estudos Sociais da Faculdade de Ciências Sociais da UBA na Marcha do Orgulho de 2014 levantou que a maioria dos casos de aborto se dão por abusos. Dos quinhentos entrevistados o abuso se dá nos círculos mais próximos: colegas de estudo (41,6%), vizinhos (33,8%) e a própria família (30,2%). Mas também foram registradas situações ligadas às forças de segurança públicas (14,8%).

Longe de querer reproducir uma visão de vitimização, a muitos lhes vêm na cabeça o filme Boys don’t cry. Devemos ter claro que o aborto é a última consequência de uma cadeia de violências à qual somos submetidos pela sociedade. Desde uma Lei de Educação Sexual eficiente, mas que só abrange relações heterossexuais, sem contemplar que os corpos dos homens trans são férteis, até o extremo desdém de muitos médicos, que apoiados na sua liberdade de consciência, escolhem maltratar e discriminar corpos que “não são normais.” Um exemplo mais próximo foi quando eu recebi uma injeção de testosterona pela segunda vez, na qual o desdém da enfermeira levou a que se desenvolvesse uma infecção, da qual fui negado como paciente em três hospitais públicos, por “não saberem como lidar com um corpo trans”. Por sorte contei com o apoio de um companheiro médico que soube me tratar para que uma simples infecção não se tornasse verdadeiras complicações para a mina saúde.

Saúde: sobreviver à transfobia

A saúde integral é entendida por “um completo bem estar físico, mental e social e não somente a ausência de condicionantes e doenças”. A saúde individual e coletiva se define portanto através de “complexas interações entre processos biológicos, ecológicos, culturais, económicos, políticos e sociais, por isso o acesso à educação, ao trabalho e à inclusão social e cidadania aparecem como aspecto básico de uma vida saudável”.

Na atualidade, a variedade de sistemas genitais humanos “distribui” as pessoas em apenas dois grupos: homens e mulheres. Mas a realidade é que existem tantos sistemas genitais quanto humanos. Contudo, a consideração médica de um clitóris “grande demais” ou um pênis “muito pequeno” são fundamentos para praticar intervenções cirúrgicas, não por uma questão de saúde, e sim para “adequar” o corpo aos parâmetros culturais binários genéricos. “Macho ou fêmea, disse a parteira”.
Mas antes devemos fazer um parênteses e explicar que a identidade e a orientação sexual são duas caras de uma mesma moeda, mas são diferentes entre si. O desejo é o que marca a “orientação” sexual e a identidade é a construção subjetiva de casa pessoa sobre si mesma para além do corpo ou “embalagem” que tenha recebido.

Uma luta histórica contra a intromissão clerical

Quando falamos de binarismo genérico aparece “a família”, tão defendida pela Igreja Católica, a instituição pertencente ao patriarcado por excelência. Para o desenvolvimento do capitalismo foi necessário controlar os corpos e confiscar a sexualidade, enclausurá-la centro do casamento heterossexual, monogâmico e patriarcal, com o objetivo de deixá-lo na sua função reprodutiva. “A família coercitiva das sociedades autoritárias tem sua origem histórica na propriedade privada dos meios de produção e se mantém pela autoridade do Estado” (Wilhelm Reich. La revolución sexual. Editorial Planeta-Agostini, 1993).

Para colocá-lo em simples palavras, se responsabiliza por naturalizar a submissão das mulheres, concede um (falso) poder aos “homens”, estabelecendo uma hierarquia onde o pai tem a palavra final sobre tudo e impões que a sexualidade exista apenas para a reprodução.

Isto é o que defende Bergoglio, o que constituiu seu discurso em toda sua turnê recente por Cuba e os EUA, quando determinou que só é aceitável o sexo entre homens e mulheres “cisgêneros”, seguindo os valores da “moral e bons costumes” e quando se opõe redondamente ao aborto, chamando a “defender a vida” sem se importar com a quantidade de mortes que acontecem graças à sua clandestinidade.
Pelo definido anteriormente se faz necessário considerar a discriminação e constante patologização e preconceito que recai sob as pessoas trans graças às instituições e governos burgueses, que apoiam e financiam estas práticas e concepções.

A igualdade perante a lei não é igualdade perante a vida

As pessoas trans são em sua maioria jovens mulheres em situação de prostituição. 85% das mulheres trans está ou esteve em situação de prostituição. No caso dos homens trans, são 63%. A expectativa de vida média das pessoas trans está entre 35 e 40 anos. Segundo uma investigação realizada pela ALITT, a primeira causa de morte é o HVI, outra das terríveis causas é a violência policial, como também os assassinatos por transfobia, já que muitas mulheres trans foram assassinadas pelos seus parceiros, por cafetões que as exploram sexualmente ou eventuais clientes.

O aborto em homens trans é uma problemática que ainda é abordada de forma muito inicial na saúde pública. As estatísticas são quase nulas à respeito desta população, mas os empecilhos que enfrentamos são os mesmos das mulheres na hora de abortar, com as particularidades que expliquei anteriormente.

Separação da Igreja e do Estado

Após mais de doze anos de kirchnerismo, foi somente em junho deste ano que o Ministério da Saúde da Nação atualizou o Guia de Atenção de Abortos Não Passíveis de Punição, como solicitou a Suprema Corte em um caso histórico em março de 2012, no qual insistia que a judicialização dos abortos não passíveis de punição era um atentado contra o direito das mulheres e das meninas.

No futuro cenário político, com mudança presidencial inclusive, coloca na mira Scioli (candidato do kirchnerismo), Macri e Massa. Todos eles são fiéis amigos do papa argentino e ferrenhos opositores da lei pelo aborto legal, escondendo-se sob um falso slogan de “defender a vida”.

“Se praticarão 42 milhões de abortos induzidos em todo o mundo, segundo os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). A metade serão abortos inseguros e pelas suas consequencias morrerão cerca de 70 mil mulheres por infecções generalizadas, lesões e hemorragias, perfurações ou rupturas uterinas” (Andrea D’Atri)

Na Argentina, após 12 anos de governo kirchnerista, não somente segue a discriminação com as pessoas trans na saúde pública, como por detrás do aborto existe todo um mercado clandestino, que frente à morte de pessoas que não podem pagar um aborto com condições higiénicas adequadas se beneficiam e enchem seus bolsos. Na Argentina a ilegalidade do aborto é um verdadeiro negócio, a clandestinidade mata mais de uma por dia e é a principal causa de morte de mulheres grávidas, sendo sua ampla maioria mulheres trabalhadoras, jovens e pobres que não tem dinheiro suficiente para interromper a gravidez em uma clínica privada. Isso é o que leva à prática de abortos caseiros, com remédios como o Oxaprost ou o Misoprostol.

Por outro lado, os governos decidem à sua vez e consequentemente mais verbas para a “segurança” que para a saúde. Daniel Scioli, sem ir mais longe, deu em 2015 à exSIDE oitocentos milhões de pesos argentinos, 16,22% mais que em 2014. E o Ministério da Defesa tem uma atribuição de 836 milhões em 2015. No total, o Orçamento Nacional de 2015 destina 2.410 milhões para o financiamento de tarefas de inteligência. Por que todo este dinheiro não é destinado à capacitação e gastos na saúde pública?

A problemática do aborto não pode ser pensada de maneira isolada. A metade dos assalariados recebem um salário menor ou igual a 5 mil pesos argentinos, menos que a metade do salário básico familiar. Para a juventude é completamente normal conseguir um trabalho não registrado ou simplesmente não ter acesso a um. Inclusive, um setor de trabalhadores tem parte de seu salário retirado pelo Estado, através do imposto sob o salário.

Tradução: Marie Castañeda




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