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Samah Jabr: "O sistema colonial israelense quer que os palestinos percam sua subjetividade como seres humanos, quer fazer deles sombras do que são"

Juan Duarte

Samah Jabr: "O sistema colonial israelense quer que os palestinos percam sua subjetividade como seres humanos, quer fazer deles sombras do que são"

Juan Duarte

Nós do Ideias de Esquerda conversamos com a Dra. Samah Jabr, psiquiatra, psicoterapeuta e responsável do Sistema Público de Saúde Mental na Cisjordânia.

Tradução: Cristina Santos

Se por acaso as imagens que circulam nas redes não são o suficiente para compreender a atrocidade que estamos presenciando, as cifras falam por si mesmas: já são mais de 14.854 os mortos em consequência dos ataques israelenses em Gaza, entre eles 6.150 crianças, com 33.000 feridos, sem contar o bombardeio constante de hospitais e campos de refugiados, e mais de 3.750 desaparecidos, entre eles 1.750 crianças, incluindo mais de 200 assassinatos na Cisjordânia. Crime de guerra, genocídio, limpeza etnica, apartheid, as palavras não são suficientes para expressar.

Como escreveu recentemente a jornalista francesa Sihame Assbague:

A questão palestina sempre esclarece tudo. Sempre revela os verdadeiros rostos, as covardias, as hipocrisias, os oportunismos, os ódios ocultos, as tendências supremacistas e os acordos com o pior. É uma bússola política. Permite fazer uma seleção. No grande aterro sanitário colonial, é necessário reservar um lugar muito especial para aqueles que construíram sua carreira e sua notoriedade nas lutas antirracistas e decoloniais... mas que, diante da violência genocida dos colonos israelenses, de repente começam a balbuciar e eufemizar [1].

Efetivamente, o ataque que o Estado de Israel leva a cabo a mais de um mês em Gaza funciona como um prisma sobre o mundo inteiro. Sobre figuras políticas como Bernie Sanders, como um prisma invertido: as cores de seu suposto progressismo se revelam pura escuridão quando o escutamos se negando a chamar pelo cessar-fogo. A mesma coisa acontece em outras partes do mundo, como na Argentina, com grande parte da centro esquerda que se alinhou a um candidato pró Estado de Israel, atacando a Myriam Bregman e a FIT-U, quem sem deixar de lamentar as vítimas civis, denunciou o genocídio incremental e o projeto de limpeza étnica do sionismo apoiado pelo imperialismo, e convocou à mobilização em apoio ao povo palestino. Mas o prisma funciona em ambos os sentidos e, do outro lado, o horror do massacre sionista é refratado numa solidariedade que se estende por todo o mundo com mobilizações históricas sob as bandeiras de Palestina livre e uma renovada militância anticapitalista e anti-imperialista.

A saúde e a saúde mental não escapam a estas refrações. Para falar sobre tudo isso, conversamos com a Dra. Samah Jabr, psiquiatra, psicoterapeuta e chefe da Unidade de Saúde Mental do Ministério da Saúde da Cisjordânia na Palestina, onde reside. Samah também escreve vários artigos e livros, como Beyond the Frontlines: Resistance and Resilience (2017; publicado em espanhol como Tras los Frentes: crónicas de una psiquiatra y psicoterapeuta palestina bajo ocupación, Editorial Hojas Monfíes, 2022) do qual fez um documentário ( Derrière les fronts: résistances et résiliences) da diretora francesa Alexandra Dols com o mesmo título, e Sumud: resistindo à opressão (2021).

IdE: Para começar, gostaríamos de te perguntar, em primeira mão e em meio a tantas tentativas de silenciar e distorcer o que aconteceu, o que vem acontecendo aí no último mês? Alguém escreveu online “já se passou um mês e 75 anos”. Você poderia nos explicar o que significa essa expressão e qual é a situação agora?

Samah Jabr: Sim, essa é uma descrição precisa. É um mês e 75 anos de deslocamento dos palestinos e a opressão e a negação da identidade palestina, da liberdade e da autodeterminação dos palestinos. Os acontecimentos que começaram na Nakba (1947/1948), nos quais dois terços dos palestinos foram desapropriados das suas aldeias pela força militar, o que deu origem a uma população de refugiados palestinos dentro e fora da Palestina. Ao qual se seguiram muitos anos de repressão: uma grande porcentagem da população palestina, acreditamos que 20%, sofreu prisão e detenção política. E há uma aceleração disso no último mês. Mas a realidade da ocupação israelense não deixa nenhum palestino intocado pelos acontecimentos, e encarar a situação na Palestina como se só tivesse começado no 7 de outubro é uma grande omissão na história que explica porque é que os palestinos começaram o que começaram no 7 de outubro. Tira as coisas do contexto e precisamos entender o contexto para melhor compreender e reagir aos acontecimentos do 7 de outubro.

IdE: Estamos assistindo aqui e em todo o mundo uma campanha que confunde anti-sionismo com anti-semitismo. O que você diria sobre isso?

S. J:O anti-semitismo é uma forma tóxica e nauseante de racismo que qualquer um rejeitaria. Significa desprezar as pessoas e discriminá-las simplesmente porque são semitas, incluindo judeus, porque os semitas não são apenas judeus, os árabes também são semitas. Já o anti-sionismo é a objeção à ideologia e às práticas sionistas que estão envolvidas no colonialismo e na ocupação, e é algo muito legítimo. Portanto, há uma grande diferença e penso que qualquer pessoa pensante percebe que o anti-semitismo tem sido usado como uma ferramenta para silenciar as pessoas e intimidá-las, e impedi-las de reagir à hegemonia de Israel e à impunidade da qual Israel está desfrutando de maneira excepcional neste mundo.

IdE: Você escreveu recentemente uma carta à Associação Americana de Psiquiatria sobre a situação na Palestina. O que te levou a fazer isso e poderia nos dizer o que queria expressar nesta carta?

S. J: Não é novidade para nós palestinos que os regimes ocidentais oficiais apoiem Israel nos seus ataques. Foi uma grande decepção ver organizações de saúde e organizações de saúde mental juntarem-se ao coro de apoio político a Israel. A Associação Americana de Psiquiatria foi uma delas, mas não a única, e usou a mesma retórica, como se a história começasse no dia 7 de outubro, ignorando os 75 anos de opressão e os 17 anos de cerco em Gaza, o trauma histórico, transgeracional, repetitivo e coletivo dos palestinos, especialmente dos habitantes de Gaza. Uma instituição de Saúde Mental deveria se preocupar mais em pedir moderação e evitar que ainda mais traumas fossem implementados em qualquer povo. A neutralidade e a imparcialidade fazem parte da ética das instituições de saúde mental, o que as impede de tomar partido. A APA usa a mesma retórica oficial americana ao qualificar as ações palestinas como uma forma de terrorismo. Nós palestinos sabemos que qualquer poder colonial que usa a violência para colonizar e ocupar chama qualquer tipo de violência de terrorismo, porque a única violência legítima é a violência do país colonial e da ocupação. Assim, a APA usou a mesma retórica, chamando os palestinos de terroristas e descrevendo as suas acções, como os acontecimentos de 7 de outubro, como um ato anti-semita. Portanto, na minha opinião, a APA é cúmplice do derramamento de sangue dos palestinos.

IdE: Sobre a saúde mental na Palestina, quais são as consequências que você vê de viver sob constante ocupação colonial?Quais são as consequências que você conseguiu documentar em seu trabalho?

S. J: A violência é incompatível com a saúde. E a repressão e a ocupação prejudicaram a saúde dos palestinos de muitas maneiras, e especialmente a sua saúde mental. Eu iria ainda mais longe e diria que a saúde mental dos palestinos está especialmente na mira porque o interesse de qualquer projeto colonial é a terra. E o interesse da ocupação israelense é uma terra vazia, sem pessoas, por isso transferiram e expulsaram tantos quantos puderam, mataram tantos quantos puderam, e para aqueles que continuam vivendo aqui, o sistema israelense quer se assegurar de que percam sua subjetividade como seres humanos. Querem quebrar a subjetividade das pessoas e torná-las sombras do que são.

IdE: A propósito, você escreveu dois livros, um intitulado Beyond the frontlines e outro Sumud. Você poderia nos dizer do que se trata?

S. J: Beyond the frontlines (Derrière les fronts em francês) é uma coleção de artigos escritos durante tempos difíceis na Palestina, usando as lentes da saúde mental e da psicologia para analisar a situação política. Foi traduzido para o italiano e também para o espanhol. O outro, Sumud, foi publicado em italiano e é uma coletânea de artigos escritos durante a pandemia de Covid, sobre como os palestinos estavam lidando com a ocupação, por um lado, e a pandemia, por outro. E estou escrevendo alguns artigos que espero que também sejam publicados como uma coleção.

IdE: Também ouvi e li sobre o conceito de sumud e a diferença da palavra resiliência e também como você conceitua o trauma na Palestina e a discussão que você faz sobre isso. Você poderia nos contar sobre isso? Achei muito interessante.

S. J: Sumud é uma palavra que se assemelha à resiliência, mas não é exatamente resiliência. Os palestinos a utilizaram há mais de 100 anos, durante o mandato britânico. A literatura e a poesia palestina falam sobre sumud e se analisarmos conceitualmente os significados, os diferentes significados e os diferentes contextos em que foi escrito, entendemos que se trata de resiliência individual e coletiva, que inclui o desafio à opressão e a firmeza e a perseverança; Não é apenas um estado mental, mas também orientado para a ação, é um comportamento pró-social em tempos muito difíceis. Todos estes significados estão incluídos numa palavra, “sumud”, e é por isso que a escolhi como título deste livro, porque a Covid foi um momento muito difícil para os palestinos, que enfrentavam o duplo aspecto da discriminação, por isso precisávamos do conceito de "sumud" para superar estes tempos difíceis. E claro, agora, quando vemos... ontem recebi um vídeo de Gaza de palestinos pedalando para gerar eletricidade. Então, tentam dar o seu melhor nesses tempos sombrios: sejam pró-sociais, ajudem uns aos outros e sobrevivam às dificuldades. Esse é o conceito de sumud.

Em relação à nossa conceituação do trauma e suas consequências, a literatura ocidental propõe o diagnóstico de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), que nos parece inadequado para o contexto palestino porque nunca estamos na fase “pós”: o trauma é duradouro, repetitivo, coletivo, histórico, transgeracional. E o diagnóstico de TEPT capta melhor a experiência de um soldado americano que vai para o campo de batalha e quando retorna para a segurança de sua casa ainda sente a ameaça. Para os palestinos a ameaça é muito real, na realidade não está apenas nas suas mentes, por isso é claro que há imensas consequências traumáticas para os palestinos, mas são diferentes do diagnóstico de TEPT: incluem uma enorme mudança na nossa visão do mundo, no nosso sistema de crenças, no nosso modo de vida e na forma como nos relacionamos com os outros.

A diferente conceituação de trauma nos obriga a propor diferentes intervenções. A psicoterapia individual e o autocuidado não são apropriados quando o trauma é dirigido ao nosso sentido de comunidade, coletividade e identidade nacional. É claro que precisamos de intervenções que sejam colectivas e que tenham em consideração a reconstrução da nossa identidade e sentido de comunidade. Vou dar alguns exemplos. No passado, preparamos treinadores de Aikido para trabalharem com adolescentes que são ex-prisioneiros, que são detidos pelos israelenses, torturados e espancados e que, quando são libertados, não se integram bem na escola ou nas suas famílias. As famílias os levam para uma clínica psiquiátrica e isso não faz com que esses jovens se sintam bem, eles se sentem estigmatizados por serem chamados de pacientes psiquiátricos. Então eu lembro que um menino se opôs e concordei com ele que seria bom fazer a intervenção em um grupo que vive a mesma experiência, de adolescentes ex-presidiários. E não seria um médico, um psiquiatra, mas um treinador de Aikido. Eu preparei esse treinador de Aikido, formamos treinadores de Aikido e treinadores esportivos para oferecer intervenções psicológicas de baixa intensidade e apoio psicossocial e criar um espaço para as pessoas conversarem, além das habilidades de Aikido. Este é um exemplo onde temos que olhar para o que funciona para as pessoas, o que as pessoas querem e tentar satisfazer as suas expectativas.

Outro exemplo é o de uma mulher enlutada que perdeu o filho na violência política, ele foi assassinado. Ela estava muito triste e isolada e sua família queria que ela recebesse tratamento psiquiátrico, e a certa altura ela me explicou que a melhor ajuda que recebeu foi de um grupo de mães que viveram a mesma experiência. Elas vieram de cidades distantes – ela morava em Jericó e vieram de Jenin – para visitá-la, para lhe dar condolências, conversar com ela sobre suas experiências e ajudá-la a superar seu luto, mas também para fazer a transição através do luto. Elas mantiveram contato por meio de um grupo de WhatsApp, ajudando-se mutuamente. Estes são exemplos muito originais de como as pessoas se ajudam. E temos que observar e construir as nossas intervenções para apoiar estas iniciativas. Também trabalho com ex-presidiárias, que enfrentam muitos desafios quando saem da prisão, porque às vezes também sentem culpa por terem deixado os filhos para trás quando foram detidas, etc. É mais complicado do que lidar com homens que sofreram prisão política.

Há muito a aprender com a Palestina e há muito a fazer no campo da saúde mental. A minha mente está agora ocupada com a nossa resposta de saúde mental ao genocídio em Gaza, o que está acontecendo agora em Gaza não deixa ninguém indiferente ou sem traumas. Costumava ir em Gaza para capacitar profissionais de saúde mental e médicos, e agora que estive em contacto com alguns dos meus colegas sei que todos foram deslocados das suas casas. A maioria deles perdeu familiares, perdeu seus pertences... Estão severamente afetados pelos acontecimentos ali. Trata-se de toda uma comunidade: os colaboradores, os médicos e os profissionais de saúde, também precisam de ajuda.

Por isso, temos de pensar cuidadosamente sobre a melhor forma de reconstruir o bem-estar da comunidade de Gaza quando isto terminar. Mas por enquanto o que é urgente não é a resposta de saúde mental: o que é urgente é o cessar-fogo, e penso que faz parte do meu papel como profissional de saúde mental promover o apoio, educar sobre o que está acontecendo em Gaza e apelar à solidariedade internacional e ao cessar-fogo. Isto é urgente e muito mais importante do que o autocuidado e os primeiros socorros psicológicos e qualquer outra coisa relacionada com intervenções clássicas em tempos de crise. E é claro que em Gaza não há agora nenhum lugar seguro, nenhum lugar para implementar intervenções de saúde mental, não há necessidades básicas, alimentos, água, electricidade, combustível, nem medicamentos disponíveis, por isso o cessar-fogo torna-se a nossa vocação como profissionais de saúde mental.

IdE: Na Argentina estamos tentando organizar comitês de solidariedade, organizamos várias manifestações e esperamos organizar mais. Neste sentido, gostaria de perguntar que mensagem enviaria a todos os trabalhadores e a todas as pessoas do mundo, como acha que podemos ajudar o povo palestino?

S. J: Em primeiro lugar, gostaria de dizer às pessoas que a solidariedade delas é terapêutica, para os palestinos a nível psicológico ajuda muito, e eles olham para a comunidade internacional. E penso que as ações e posições dos regimes oficiais e dos meios de comunicação dominantes e o apoio ocidental, o apoio militar, o apoio diplomático a Israel, uso como exemplo os Estados Unidos, o Reino Unido, a França, a Alemanha... a sua reação é traumatizante para os palestinos, são cúmplices do genocídio e do que está acontecendo. Por outro lado, quando vêem as enormes mobilizações em Buenos Aires, Londres, França, na Cidade do Cabo... Isto tem um efeito terapêutico, os palestinos sentem-se validados. Quando os meios de comunicação oficiais desumanizam os palestinos, demonizam-nos e chamam-lhes animais, a ação dos movimentos populares e o seu apoio aos palestinos mantém e preserva a nossa humanidade. E também acho que preserva o nosso sentido de humanidade compartilhada. Com cada colapso de edifícios em Gaza há um colapso da humanidade, e as pessoas que se opõem a isso mantêm o nosso senso comum de humanidade compartilhada, por isso é muito importante.

Agora, surge uma questão: isto é politicamente eficaz? Pouco e muito lentamente. Penso que os grupos de solidariedade têm de aprender a fazer o seu trabalho com antecedência e estar preparados para que algo assim aconteça.

Ao mesmo tempo, é uma oportunidade, porque não acho que os palestinos sejam a única população ou comunidade que esteja descontente com a ordem mundial. Suponho que muitas outras pessoas do sul global e muitas pessoas marginalizadas no Ocidente, nos subúrbios de França, por exemplo, nos subúrbios das grandes capitais do Ocidente, há muitas pessoas que estão enojadas com a ordem mundial. A causa palestina pode ser um catalisador para aqueles que querem mudar o sistema, para aqueles que não aceitam o capitalismo e o imperialismo, é uma oportunidade para se fortalecerem mutuamente, criarem sinergias e tentarem trazer alguma justiça a este mundo. Portanto, é importante educar sobre a Palestina, não porque eu acredite no excepcionalismo palestino ou algo assim, mas porque é uma causa muito vital, que interessa a muitas pessoas no mundo e é o protótipo deste doloroso encontro entre o opressor e os oprimidos. E precisamos tirar muitas lições deste encontro e espero que a solidariedade internacional não permita que os palestinos sejam derrotados.

IdE: Gostaria de dizer mais alguma coisa sobre o que falamos ou deixar outra mensagem?

S. J: Talvez apenas termine dizendo que as pessoas podem ser criminalizadas e punidas pela sua identidade, uma identidade que já está formada e preparada para elas, não uma identidade que elas necessariamente escolheram para si mesmas, e temos que estar cientes disso, e temos estar unidos para preservar a humanidade e trazer alguma justiça a este mundo.

IdE: Muito obrigado pelo interesse e perguntas. Obrigada por seu tempo, estamos com você, Dra. Sama, e com todo povo palestino, nos importamos muito, seguimos cotidianamente e tentamos organizar a solidariedade aqui e em todo o mundo. Obrigada e seguimos em contato.


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