×

DEBATE PROGRAMÁTICO | “Unidade para reconstruir o Brasil”: frente com burgueses para reeditar a ilusão petista de um capitalismo humanizado?

quinta-feira 19 de abril de 2018 | Edição do dia

Introdução

Em meio ao avanço do golpe institucional através da prisão arbitrária de Lula, sobre a qual ainda se discute se pode ter efeitos inversos ao planejado, ganha ainda mais importância o debate programático na esquerda brasileira.

Vivemos um momento em que seria mais urgente do que nunca cerrar fileiras da classe trabalhadora para garantir a força necessária para resistir aos ataques patronais (e reverter os que já passaram), e ao mesmo tempo elaborar uma plataforma de ruptura com o capitalismo, como única forma de responder pela raiz à agenda de retrocesso atualmente em curso.

No entanto, a velha “esquerda” conciliadora (PT, PCdoB) vem conseguindo aproveitar, com êxito até aqui, o contexto sombrio da política nacional para impor sua própria agenda sobre os setores que até então se postulavam como alternativa independente. Nesse processo, o petismo, contraditoriamente revigorado com a figura de um “Lula mártir” na cadeia, busca sufocar seus competidores à esquerda, enquanto solda uma nova “aliança” com partidos burgueses que agora querem se postular “contra o golpe”.

Assim, vimos nos últimos meses se alternarem diversos ensaios de políticas de aliança ou “frente” entre partidos da “esquerda” em sentido amplo. Iniciativas que vão desde o debate programático, como o da plataforma VAMOS, ou proposta de “frentes de ação”, como o lançamento em 18/4 da “Frente Ampla Democracia e Eleições Livres” na Câmara Federal.

Entre um evento e outro, no entanto, um que possui particular importância foi o lançamento do manifesto “Unidade para reconstruir o Brasil”.

Como já desenvolvemos em outros artigos, o manifesto “Unidade para reconstruir o Brasil” é um documento lançado em fevereiro de 2018 com a assinatura, através das respectivas fundações partidárias, de um arco de partidos que vai dos lulistas PT e PCdoB, passa pelos diretamente burgueses PSB e PDT e termina... no PSOL, através da Fundação Lauro Campos.

Antes de entrar na análise do conteúdo do manifesto, vale lembrar mais uma vez que o PDT é campeão de alianças com os golpistas, ocupando 22 secretarias estaduais em 13 estados do país, nos quais apoia governos como o do PSDB no Pará, MDB ou PP. E que o PSB acaba de assumir o governo de SP com o vice de ninguém menos que Geraldo Alckmin, e até pouco tempo tinha o carrasco presidente da FIESP Paulo Skaf em suas fileiras. Aliás, o PSB foi golpista até ontem, já que só deixou a base de apoio de Temer quando esse quase caiu após o escândalo envolvendo a JBS.

Estamos na linha de frente do combate contra o golpe e os ataques às massas que ele carrega, inclusive a prisão arbitrária de Lula com a qual os golpistas querem novamente sequestrar o direito de voto de milhões, dessa vez de maneira “preventiva”. Nossa crítica ao manifesto “Unidade para reconstruir o Brasil” se insere inteiramente nesse mesmo combate.

Uma frente de “esquerda” com um programa puramente burguês e fracamente “desenvolvimentista”

Como sempre ocorre nesse tipo de “aliança”, a presença de setores burgueses, por menos expressivos que sejam (o que não é o caso, aliás), coloca claramente o limite de classe para o programa. Ou seja, nenhuma proposta que possa romper o esquema do capitalismo semicolonial brasileiro pode ser levado à frente, á que a camisa de forças da propriedade privada é o que dará o tom.

Descrevendo os objetivos de seus autores ao elaborar tal manifesto, em “Unidade para reconstruir...” se afirma que eles:

Entendem que, independentemente das estratégias e táticas eleitorais do conjunto das legendas progressistas, uma base programática convergente pode facilitar o diálogo que construa a união de amplas forças políticas, sociais, econômicas e culturais que constituam uma nova maioria política e social capaz de retirar o país da crise e encaminhá-lo a um novo ciclo político de democracia, de soberania nacional e de prosperidade econômica e progresso social.

Ou seja, não é menos, é ainda mais do que uma aliança eleitoral.

A tarefa posta ali é a de "construir uma nova maioria", dando claros contornos de governo, de projeto estratégico.

Essa é a questão crucial a identificar de saída: não se trata de uma unidade pontual de ação contra os aspectos mais gravosos do processo golpista em curso; caso fosse, poderia haver um debate sobre a ineficácia dessa frente e de qual estratégia precisamos para a luta contra o golpe e suas consequências, mas o terreno de discussão seria completamente outro.

No caso concreto, se trata de algo pior: o manifesto é explícito em delinear um projeto de frente de longo prazo, que se constituiria numa armadilha para impedir qualquer desenvolvimento independente pela esquerda do PT e suas alianças com os capitalistas.

Uma vez mais, são as “sombras” da burguesia, que se utilizam de um discurso falsamente “nacional” ou progressista para enganar os trabalhadores e combater sua independência política. Porém com semelhantes “aliados”, a classe trabalhadora e o povo pobre só podem esperar novas desilusões... e golpes cada vez mais duros da direita reacionária.

Seria ingênuo ou absurdo criticar esses setores burgueses pelo fato de não permitirem uma plataforma de ruptura com o capitalismo e de respostas socialistas aos problemas estruturais sentidos pelas grandes massas desse país.

Porém o que a história mostra, e um programa de esquerda deveria condensar em forma de reivindicações concretas, é que nem sequer as questões democráticas, as necessidades imediatas das massas, ou então os interesses de soberania nacional, nada disso pode ser conquistado ou defendido sem a completa ruptura com todas as frações da classe dominante. Nesse ponto crucial, o manifesto “Unidade para reconstruir...” caminha exatamente no sentido oposto ao que precisamos atualmente.

Não é possível combater a política imperialista das potências estrangeiras sem combater o capitalismo

Esse não é um debate novo, atravessou a história do movimento operário e dos países oprimidos ao longo de todo o século XX. Não existe sequer um exemplo de pais tenha se livrado do jugo estrangeiro sem romper também com o capitalismo e quebrar a dominação da burguesia local, que atuou sempre e continua atuando como sua “sócia menor”.

Se o Brasil conseguiu alcançar algum nível de protagonismo próprio na era petista e projetar algumas empresas como monopólios internacionais que disputavam nichos de mercado com as empresas das grandes potèncias (particularmente no caso das empreiteiras, do petróleo, da carne e das bebidas), a contrapartida deste processo foi uma dependência ainda maior dos fluxos de capitais estrangeiros – dependência que é também o grande limitador de uma política de superação da crise econômica brasileira pela via da retomada do investimento estatal que propõe o manifesto. Ao mesmo tempo, mesmo essas pequenas margens conquistadas viraram pó com o golpe institucional e a operação Lava Jato, que colocou na lona todos os grandes “players” internacionais, que o lulismo tanto apoiou com bilionárias verbas via BNDES. Aqui, como em outros lugares, o manifesto defende voltar à “era de ouro” lulista: “O indispensável papel dos bancos públicos, em especial do BNDES, como base do financiamento de longo prazo que deve ser restaurado; os spreads bancários devem ser reduzidos e o consumo popular incentivado.” Aliás, para usar os termos do manifesto, se trata de “restaurar” aquelas condições. A aliança de classe conservadora também engendra a linguagem conservadora.

Voltando à dura realidade: Que empresas brasileiras se tornaram fortes nos mercados da América do Sul e da África em determinados nichos, que a JBS se transformou da maior empresa de carne do mundo, tudo isso não trouxe nada para a classe trabalhadora. Esses monopólios se apoiaram durante todo o ciclo de crescimento econômico na expansão do trabalho precário, nos baixos salários e na terceirização.

O grande mecanismo de subordinação neocolonial, a dívida pública, se manteve e se aprofundou. Uma dívida que rende juros bilionários para os seus detentores, os grandes bancos e as finanças internacionais, as grandes empresas e investidores, ao custo de uma forte carga de impostos e os altos juros bancários que recaem com mais força sobre os mais pobres. As margens de manobra que os governos do PT obtiveram, em circunstâncias econômicas excepcionalmente favoráveis, gerando a ilusão de “Brasil potência”, foram com base num aumento, e não diminuição da dependência do fluxo de capital estrangeiro. Longe de romper com esse mecanismo, o manifesto propõe na prática uma volta (ilusória) às condições de crescimento econômico prévias à crise mundial de 2008, quando foi possível reduzir gradativamente a taxa de juros (que continuaram sempre altíssimas, aliás).

Uma política econômica centrada apenas na redução da taxa de juros, de resto, favorece apenas, no melhor dos casos, as pequenas empresas e médias, grande parte das que mais exploram seus trabalhadores e são base social fundamental para medidas como a reforma trabalhista.

Não é à toa, também, que o o manifesto silencia ou é extremamente tímido sobre problemas estruturais do país, em grande parte oriundos das grandes tarefas democráticas que a burguesia brasileira foi incapaz de resolver, como a divisão das terras. Assim como a questão da dívida pública, a indecente concentração fundiária no país (um país continental em que os camponeses não têm terra e as massas se aglomeram nas periferias metropolitanas); são questões que não podem ser enfrentadas senão pela luta de classes, que conduza à ruptura e à independência plena com relação às potências imperialistas. Não se trata meramente de "vontade política", para "desenvolver o país", mas de um entrelaçamento inescapável entre essas tarefas e a luta contra o capitalismo, que nesses anos de crise internacional, marcada por constantes ameaças de "guerras comerciais" e não menos recorrentes bombardeios mundo afora, como vimos mais uma vez recentemente na Síria.

Um “neodesenvolvimentismo” fraco

O manifesto “Unidade para reconstruir o Brasil” até se esforçou para dar um ar nacional-desenvolvimentista para suas propostas:

“Retomada do crescimento econômico associado à redução das desigualdades sociais, geração de empregos e distribuição de renda. Questão essencial para o país sair da crise é superar a recessão e retomar o crescimento. Além do papel do Estado, já assinalado como planejador e indutor do desenvolvimento, é imperativo elevar a taxa de investimentos públicos e privados. Incentivar os investimentos produtivos e desestimular a especulação financeira e rentista.”

Ou seja, um neokeynesianismo tão “grandiloquente” quanto insípido, no lugar de uma verdadeira plataforma de reformas econômicas estruturais.

“É necessário buscar o acesso a investimentos externos, como o do Brics (acrônimo de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).”

“É decisivo o papel das estatais, especialmente da Petrobras.”

Fala-se ali em BRICS e em papel decisivo das estatais, assim como se saúda no início a obra “nacionalista” de Vargas e João Goulart, mas a verdade é que o “neodesenvolvimentismo” do manifesto é ainda inferior ao programa desses burgueses do passado. “Essa nova orientação deve ter a missão de expandir e sustentar investimentos em infraestrutura e inovação tecnológica, reduzir estruturalmente a taxa real de juros, manter sob controle a dívida pública, assegurar o equilíbrio fiscal do Estado e defender a moeda”.

Adaptado às condições do neoliberalismo dominante, os “neodesenvolvimentistas” de hoje partem do respeito aos pilares neoliberais: Por isso este manifesto defende o programa de "manter sob controle a dívida pública, assegurar o equilíbrio fiscal do Estado". Vale lembrar que, para ficar num só exemplo, Dilma também cortou, em 2016, R$ 21,2 bilhões em Saúde e Educação para manter as regras da "responsabilidade fiscal", que nada mais é que o mecanismo para garantir que sejam os trabalhadores os que paguem pela crise que os capitalistas criaram.

Uma verdadeira resposta dos trabalhadores, no interesse das grandes maiorias exploradas e oprimidas, tem que se opor ao charlatanismo das propostas neodesenvolvimentistas com um programa anticapitalista:

Monopólio do comércio exterior. Expropriação imediata das empresas, estrangeiras ou “nacionais” que especulem contra o interesse nacional. Só com medidas assim poderíamos responder à enorme pressão e chantagem que o capital financeiro internacional exerce contra qualquer medida que atente contra seus interesses.

Plano imediato de obras públicas, por moradias para todos e grandes obras de infraestrutura, sustentado sobre a taxação das grandes fortunas e não pagamento da dívida pública.

Reforma agrária radical, com divisão latifúndios produtivos e improdutivos até zerar as famílias sem terra. Criação de fazendas modelo com a coletivização da terra e administração por cooperativas de operários agrícolas.

Cada medida que realmente toque os lucros capitalistas será enfrentado com a furiosa resistência dos exploradores, e por isso a única via realista de libertar o país do imperialismo é contrapondo a ele uma enorme mobilização anti-imperialista. Por outro lado, sem essa mobilização, mesmo as mais tímidas reformas se mostram uma utopia.

Daí o problema fundamental no enfoque do manifesto “neodesenvolvimentista” de fevereiro:

“ No contexto da chamada 4ª Revolução Industrial, o Brasil é desafiado a se reindustrializar e modernizar seu parque produtivo. Há fortes imposições externas e internas no sentido de restringir o Brasil à condição de mero exportador de commodities, que devem continuar a ser valorizadas, mas não podem ser absolutizadas como único trunfo econômico do país.

A indústria segue como um setor-chave para o desenvolvimento, para a oferta de melhores empregos, para a inovação tecnológica e, consequentemente, para o aumento da produtividade do trabalho. Impõem-se investimentos elevados em ciência, tecnologia e inovação que alavanquem a indústria nacional a um novo patamar tecnológico, credenciando-a a competir na acirrada disputa do mercado mundial.

Como vemos, o manifesto “fala muito”, mas novamente silencia aqui o fundamental: como sob os governos petistas o país retrocedeu do ponto de vista industrial e se reprimarizou? Como reverter essa tendência, apostando na mesma composição social e política?

“É preciso aperfeiçoar a institucionalidade do Sistema Nacional de CT&I, atuando em estreita ligação com os estados, com a comunidade científica e tecnológica e com as organizações empresariais”.

Mais uma vez, as barreiras de um programa burguês se fazem sentir. Como se “aperfeiçoar a institucionalidade” fosse resolver o problema de atraso secular do país em desenvolvimento científico e tecnológico. Também aqui uma ruptura com as amarras capitalistas se faz necessário, e deveria começar pela tarefa de colocar as universidades a serviço da maioria trabalhadora e das necessidades estratégicas do país, a partir da aliança operário-universitária, o que passa pela imediata democratização radical da estrutura de poder das universidades, com governos tripartites entre estudantes, professores e funcionários, e aliança com as organizações operárias e movimentos sociais.

A parte do programa para o meio ambiente chega às raias do cinismo:

“Proteção do meio ambiente com desenvolvimento sustentável de todos os biomas e regiões, defesa da biodiversidade e do nosso patrimônio genético. A sustentabilidade do desenvolvimento impõe que os avanços socioeconômicos sejam complementados – ao invés de se oporem – pela proteção e pelo uso sustentável do meio ambiente.”

Sim, com papel especial aqui para o agronegócio exportador e para a “rainha da motosserra” Kátia Abreu (inimiga-símbolo dos movimentos camponeses e indígenas).

“Defesa da soberania nacional e do patrimônio do Brasil, contra as privatizações e concessões criminosas, em especial da Petrobras e da riqueza do pré-sal”.

Ou seja, nada de reestatizar as já privatizadas (inclusive pelo PT). E nem pensar então em estatizar o conjunto dos setores estratégicos e as grandes multinacionais.

“Retomada imediata do crescimento econômico. Para tal, deve-se focar na elevação dos investimentos, no estímulo à produção e à geração de empregos”.

“[...] retomada da geração de emprego e renda, a partir da estratégia do Estado, impulsionando o setor privado; [...]política institucionalizada de valorização do salário-mínimo e garantia de aposentadoria digna”.

Mas o que é que estimula a produção? A sociedade moderna conhece duas saídas básicas: o “estímulo” dos baixos salários e das condições precárias... ou o estímulo do trabalho que se liberta da camisa de força dos lucros...

O manifesto não pode nos oferecer nada aqui, já que pretende amalgamar esses dois tipos de interesse contrapostos... e na prática, já sabemos quem leva a vantagem nesse amálgama.

Sem demagogias, o programa histórico da classe trabalhadora para resolver a questão do desemprego, junto a um plano emergencial de obras públicas, é a redução da jornada até incorporar toda a força de trabalho à produção, sem redução de salários.

A classe trabalhadora deve atuar como fator independente

A força social que pode alcançar uma verdadeira soberania nacional e romper com a dominação estrangeira sobre a economia e a politica brasileira, não é uma aliança popular com setores supostamente progressistas da burguesia. É a classe trabalhadora, somando aliados entre o povo pobre da cidade e do campo e entre todos os setores oprimidos, como o povo negro de pé contra o racismo capitalista e as mulheres que lutam contra o machismo, que pode romper com a subordinação da economia nacional ao rentismo das finanças internacionais, ao romper ao mesmo tempo, com o domínio dos grandes exploradores nacionais. Contra a perspectiva que aponta o manifesto de seguir pelo caminho de governos de aliança com setores do capital nacional, vendendo mais uma fábula de um projeto “mercado-internista” capaz de enfrentar o imperialismo e de favorecer as grandes massas populares e a classe trabalhadora, defendemos a perspectiva de um governo dos trabalhadores e do povo pobre de ruptura com o capitalismo.

O programa de um governo assim, ao contrário do que esse manifesto frente-populista defende, seria um programa de fato a favor das grandes maiorias, possível a partir da ruptura completa com todos os setores da classe dominante: acabar com o pagamento da fradulenta dívida pública, reverter o sistema tributário e fazer os impostos recaírem sobre os mais ricos (ao contrário do que existe hoje, a despeito das hipócritas campanhas da FIESP, CNI e demais órgãos de classe burgueses), reestatizar as empresas privatizadas e colocá-las sob administração dos próprios trabalhadores para acabar com os serviços caros e de péssima qualidade prestados.

Combater o trabalho precário e não só revogar a reforma trabalhista, mas acabar com a terceirização incorporando todos os terceirizados no mesmo convênio de trabalho dos efetivos; lutando pela plena efetivação dos milhões de terceirizados e, no caso do serviço público, sem necessidade de concurso ou processo seletivo para os que já trabalham em condições precárias. Acabar com o desemprego incorporando todos os desempregados através da redução da jornada de trabalho sem redução de salários e a elevação do salário mínimo, ao equivalente para sustentar uma família.

Por outro lado, a estatização do sistema financeiro com a criação de um banco estatal único e o monopólio do comércio exterior, aparecem como medidas econômicas fundamentais para enfrentar os ataques do sistema financeiro e a fuga de capitais que essas medidas provocariam por parte da burguesia e do imperialismo.

Sem poder tratar de nenhuma dessas medidas essenciais para dar uma resposta de fundo à crise atual, o manifesto “Unidade para reconstruir...” se limita a defender

Um Projeto Nacional de Desenvolvimento que dê resposta aos dilemas e desafios da contemporaneidade. E que tenha em conta as ameaças, mas também as oportunidades, de um cenário internacional, no qual a crise da globalização neoliberal e a emergência de novos polos de poder que superam a realidade de um mundo regido por uma única superpotência são fatores que favorecem a realização de projetos nacionais de desenvolvimento soberano, autônomo e próprio. Um Projeto Nacional de Desenvolvimento situado na dinâmica da história nacional e no curso concreto da trágica realidade atual de nosso país.

Ou seja, nada minimamente consistente...

O que poderia ser um projeto “nacional”, se amesquinha e fica difuso, pois também aqui lhe falta sujeito.

Tanto no plano de estancar a sangria dos recursos naturais, como no de racionalizar a produção e incentivar uma verdadeira pesquisa científica, tecnológica e cultural, com um novo papel sem precedentes para a universidade e a educação pública em geral. Também aqui só a aliança popular encabeçada pela classe trabalhadora poderia abrir novos caminhos.

Nada a ver com sacralizar o agronegócio e a exportação de commodities como grande “projeto nacional”.

A crise da “Nova República” de 1988

O próprio PT e figuras ilustres eleitas constituintes por esse partido como Florestan Fernandes, apesar de todas as contradições de sua política, criticavam o pacto das elites que estava por trás da constituição de 1988, uma constituinte tutelada pelos militares, que deixava sem efeito os pontos progressistas aprovados e que fazia valer na prática os muitos elementos ultra-conservadores aprovados.

Entre muitos outros dispositivos elaborados para manter a ordem capitalista e a escravidão assalariada que lhe dá base, a Constituinte de 88 manteve a possibilidade da intervenção militar para a manutenção da ordem, preservou a justiça militar e a lei de segurança nacional (que só foi atualizada pelo governo Dilma com a equivalente lei antiterrorismo) e garantiu a anistia para os crimes de Estado, os assassinatos e torturas. Apenas um mês após a promulgação da constituição, o exército fez valer seu poder de garantidor da ordem e interviu na greve da CSN em 1988, assassinando três operários.

Essa cláusula, que denunciamos há anos contra o pacto da transição, vem ganhando maior repercussão agora, frente ao ativismo crescente dos militares e suas ameaças diante da continuidade da crise de legitimidade da democracia atual. Sem essa impunidade histórica e esse peso militar que a constituinte preservou é impossível entender como as forças de repressão se sentem livres para cometer ou alentar o tipo de crime bárbaro que vitimou Marielle.

No entanto, os autores do manifesto defendem o “robustecimento” das Forças Armadas, fazendo alusão direta à sua “missão constitucional”, sem levantar qualquer questionamento deste que é um dos desdobramentos mais sinistros do processo que iniciou com o golpe institucional.

O manifesto propõe:

Aplicar políticas, assegurar meios e recursos para fortalecer a Defesa Nacional – o que requer garantia de crescente modernização e robustecimento das Forças Armadas para o cumprimento de sua missão constitucional e exclusiva defesa da soberania nacional.

No contexto atual, de crescente autoritarismo judiciário e ameaças dos militares reacionários, sem propor medidas elementares como a destituição dos militares golpistas, associada ao desmantelamento da estrutura legada pela ditadura militar, a começar da reversão da anistia aos torturadores, falar em “robustecer” os militares é, no melhor dos casos, querer apagar um incêndio com gasolina.

Em sentido parecido, o manifesto insiste:

“Defesa do patrimônio público, combate à corrupção com os instrumentos do Estado Democrático de Direito e a implementação das reformas estruturais democráticas.

Ou seja, mais uma vez confiar nos instrumentos do Estado Democrático de Direito (ou seja, o Estado capitalista) para fazer o que ele não pode ou não quer... e nenhuma palavra sobre uma democracia radical, operária e popular, com tribunais populares, eleição e revogabilidade dos juízes, fim dos privilégios, etc.

A constituição de 1988 foi controlada pela via do chamado “Centrão”, um bloco de parlamentares conservadores que funcionou como um elemento da ordem, para impedir que as demandas mais avançadas da classe trabalhadora fossem aprovadas, e assim garantir os interesses da classe dominante na constituição. Sob variadas formas, com um grande papel do PMDB, esse centrão esteve presente em todos os governos de 1989 para cá, garantidor de qualquer “governabilidade”, no chamado presidencialismo de coalizão.

É esse regime formado pela constituição de 1988 que está em crise. De um lado as jornadas de junho de 2013 colocaram em xeque, pela esquerda, o papel do PT como elemento de contenção das mobilizações de massas. De outro, a Lava Jato iniciou uma ofensiva reacionária, se aproveitando da crise de legitimidade do PT e de todo o sistema político. Essa crise do regime, uma crise orgânica do capitalismo brasileiro, abre espaço para saídas à direita e à esquerda.

Do ponto de vista da resistência democrática de massas, no sentido da opinião pública mais ou menos passiva, vimos recentemente dois processos que não se desenvolveram como mobilizações de massas, mas fazem parte de uma correlação de forças onde os golpistas e a burguesia estão longe de ter o terreno aberto para impor sua vontade: A grande revolta com a morte de Marielle, e a desconfiança com que as massas receberam a prisão arbitrária de Lula.

Do ponto de vista ativo, que é ainda mais importante, vimos que ali onde as massas trabalhadoras lutaram, elas não só mostraram que não estão derrotadas, mas pelo contrário, puderam impor recuos muito importantes aos planos da classe dominante. A própria reforma da previdência teve que ser adiada, como efeito longínquo mas não menos efetivo da histórica paralisação de 28 de abril de 2017; assim como a recente greve dos professores e servidores municipais de São Paulo, que derrotaram Doria e sua proposta particular de ataque às aposentadorias. Tudo isso mostra a força que ainda tem o movimento de massas, e reafirma o quanto o papel traidor das direções majoritárias da classe atua como peça chave para que a situação não se incline novamente para a esquerda.

Mas as respostas do manifesto vão no sentido oposto:

“Estado nacional forte, portador de um projeto para a Nação, refratário à concepção oportunista e omissa do Estado mínimo neoliberal. Estado reestruturado por reformas que o democratizem, como a do Judiciário e da Política. Estado capaz de defender os interesses do país e repelir as imposições do rentismo e do imperialismo”.

Em seu tempo, Marx teve de polemizar com os “socialistas” que defendiam um “Estado popular livre” (utópico numa sociedade dividida em classes) ao invés do programa da ditadura revolucionária do proletariado. Hoje em dia temos que alertar ao principal partido socialista do país, que até ontem se postulava como alternativa independente à esquerda do PT, que um “Estado nacional forte” para a burguesia significa correntes mais pesadas sobre os trabalhadores, os negros, as mulheres...

Ao contrário da concepção liberal do Estado contida nesse manifesto que aqui criticamos (como se fosse um órgão “neutro”, pairando acima das classes), o Estado é um órgão de opressão de uma classe sobre a outra, para o exercício do despotismo do capital sobre os trabalhadores.

O manifesto defende: Reforma Administrativa: Novos métodos de profissionalização, valorização, seleção e formação da burocracia estatal. Estado capaz de planejar e impulsionar o desenvolvimento voltado para assegurar os direitos da maioria do povo brasileiro. Estado que promova um novo Federalismo que busque erradicar as desigualdades regionais e os desequilíbrios nas relações institucionais entre a União, o Distrito Federal, estados e munícipios.

Novamente, o fortalecimento do Estado burguês, e não seu questionamento e substituição por uma verdadeira democracia. Porém os trabalhadores possuem há tempos seu próprio programa contra a burocracia estatal (e não para seu aperfeiçoamento): revogabilidade de todos os altos cargos, fim dos privilégios, que todo político ou funcionário estatal ganhe o mesmo que uma professora ou operário qualificado.

Em outras palavras, uma democracia plena só pode se dar substituindo a velha máquina do Estado burguês por um governo dos trablahdores de ruptura com o capitalismo, baseado nos órgãos democráticos de poder do povo trabalhador, contra a ínfima minoria de exploradores que hoje são os senhores de tudo.

O PSOL deve romper com a aliança do manifesto “Unidade para reconstruir o Brasil”

O descontentamento popular com o governo Temer e com seus ajustes é tal que existem todas as condições para que se desenvolvessem manifestações de massas contra todos os abusos, pela anulação dos ataques de Temer, pelo direito das massas de votar em quem quiser em outubro (incluindo Lula), ou como as que se deram inicialmente por justiça para Marielle. Se isso não ocorre é porque as direções dos sindicatos e das organizações populares estão comprometidas com uma verdadeira trégua não declarada, que tem como finalidade canalizar o descontentamento e a indignação popular para um programa eleitoral de conciliação de classes, como esse que assinam o PT e o PSOL. O novo discurso utilizado pela CUT, maior central sindical do país, de que “Só Lula reverte os ataques” é a face mais descarada desse problema – como se os milhões de trabalhadores que representa não fossem a força social decisiva para reverter os ataques e impor um plano operário e popular de saída para a crise brasileira.

Ao contrário do que o PSOL vem fazendo, ao assinar um manifesto programático junto com forças contrárias a que o movimento de massas imponha uma saída pela esquerda à crise do regime de 88, devemos exigir que as direções sindicais rompam a trégua eleitoral com o golpismo, como parte de uma política para superar na prática essas mesmas direções sindicais oficiais. Uma das tarefas centrais para a construção de uma alternativa política que supere pela esquerda o que foi a experiência com o PT é defender um programa anticapitalista dos trabalhadores e também lutar na base dos sindicatos pela construção de correntes revolucionárias que sejam capazes de levantar esse programa como uma clara alternativa às burocracias sindicais.

Porém o PSOL deixa de travar essa luta indispensável para dar uma resposta de massas aos desafios que enfrentamos e para colocar de pé uma alternativa política à esquerda do PT, para, ao contrário, trilhar os mesmos passos que conduziram esse partido ao pântano da política burguesa.

Assim, no site do PSOL podemos ler a nota sobre o lançamento do manifesto “Unidade para reconstruir o Brasil”, comemorada ali como se fosse um avanço para a esquerda.

Nesse manifesto, a necessidade urgente de rechaçar o aprofundamento da subordinação ao imperialismo, e o estrangulamento das já parcas liberdades democráticas realmente existentes para o povo, se torna um injustificável “perdão” às misérias seculares que sempre afligiram o povo trabalhador, como se os problemas todos tivessem começado com o golpe institucional de 2016.

Porém não é possível fazer política com uma memória assim tão curta. O suposto ciclo “progressista” do PT, que o PSOL reivindica com esse manifesto, interrompeu até mesmo a parca distribuição de terras improdutivas que se deu nos governos de FHC e no primeiro governo Lula, que não afeta em nada a estrutura latifundiária do campo brasileiro, chegando ao governo Dilma perto de zero. Ao contrário disso, promoveu uma expansão sem limites do agronegócio, das monoculturas de soja e de cana, da criação de gado, sendo responsável por uma destruição sem precedentes da floresta amazônica. Foi nas obras do PAC do PT, que os trabalhadores eram confinados nos seus alojamentos e proibidos de voltar para sua terra visitar suas famílias, até que explodiram as enormes revoltas operárias de 2011 e 2012.

Para o PSOL, que junto com PT, PSB e PDT se consideram populares, quem são os setores progressistas? As empreiteiras aliadas aos governos petistas, que impunham as piores condições de trabalho aos seus empregados, com casos até de ratos sendo encontrados dentro de bebedouros e outras aberrações dignas do tempo da escravidão? Ou figuras como Kátia Abreu, latifundiária, ex-presidente da CNA, inimiga declarada da luta dos sem terra e dos povos originários do Brasil, que recentemente aderiu ao PDT? Ou talvez os que defendem o legado do falecido Eduardo Campos, que apresentava um programa de “modernização” neoliberal da economia brasileira em 2014?

Talvez as forças “progressistas” do manifesto incluam alguns dos grandes bancos brasileiros, que apoiaram e deram sustentação aos governos petistas e, que como sempre ressalta o próprio Lula, nunca lucraram tanto. E nunca se beneficiaram tanto com os juros da dívida pública, que Lula também sempre se orgulhou de pagar em dia aos banqueiros.

Com as concepções programáticas defendidas neste manifesto, a maioria do PSOL traça as coordenadas de uma rota de retorno ao campo do PT, que pode terminar com o PSOL na base parlamentar em algum um novo governo que surja para tentar salvar o que resta do velho equilíbrio de poder da Constituição de 1988 – como se propõe o manifesto no seu programa de ação imediato, ao falar em “Restauração da democracia, do Estado Democrático de Direito, do equilíbrio entre os Poderes da República.”

No plano ainda mais imediato, com essas mesmas bases programáticas fica aberto o caminho para uma política eleitoral de alianças que poderia fazer o PSOL se adaptar aos projetos dos mais diversos setores burgueses, e ainda mais para apoiar no segundo turno presidencial qualquer candidato que se utilize de uma mínima retórica “progressista”, como poderiam ser não apenas o PT ou Manuela do PCdoB, mas quiçá até um Ciro Gomes ou alguma figura burguesa que apareça de última hora (a Rede de Marina Silva? Joaquim Barbosa?).

O PSOL deveria romper imediatamente com essa política, que desde o lançamento do manifesto “Unidade para reconstruir o Brasil” em fevereiro, já se expressou também em atos como o do Circo Voador em abril ou no ato de rendição de Lula em São Bernardo do Campo.

Leia também: Por que as massas não saíram às ruas contra a prisão de Lula?

Os sindicatos e demais organizações populares, poderiam lutar para impor pela via da mobilização independente das massas uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana que fizesse pesar a vontade da maioria explorada e oprimida do país na solução de problemas tão sentidos e estruturais como a subordinação ao imperialismo, a concentração das terras, o ataque às liberdades democráticas, o trabalho precário e o desemprego em massa. Isso seria um enorme passo adiante na luta por um governo dos trabalhadores de ruptura com o capitalismo, baseado em seus organismos de democracia direta, já que permitiria a amplos setores das massas superar as ilusões que ainda mantêm na democracia burguesa. A grande revolta das massas e os grandes exemplos de luta dos últimos anos mostram que é possível uma saída à esquerda para a crise do regime de 88, como essa que propomos. Se a política burguesa é podre, é porque os interesses de classe que ela defende são mesquinhos e covardes. A sangria das riquezas nacionais, a exploração do povo brasileiro até o limite do sangue e do suor, tudo para benefício de um punhado de mega-empresários “nacionais” e de seus amos imperialistas.

Precisamos romper com essa política e contrapor a ela uma política anticapitalista e revolucionária. Só assim poderemos responder às tarefas imediatas e históricas que cabem à classe trabalhadora brasileira, e sua verdadeira missão internacionalista de ajudar na libertação dos povos oprimidos da América Latina e de todo o mundo.


Temas

PCdoB    PT    MRT    Partido    PSOL    Esquerda



Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias