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4 momentos em que o samba mirou suas armas contra os capitalistas

Araçá

4 momentos em que o samba mirou suas armas contra os capitalistas

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Desde as suas origens nas festas de entrudo regenciais, o Carnaval é uma manifestação explosiva de muito do que há de subversivo na sociedade brasileira , um momento anual de hiato das convenções sociais, por muitas vezes um palco da luta de classes. Com o processo de superação das Grandes Sociedades do começo do século pelas escolas de samba durante as décadas de 30 e 40, consolida-se a tradição do samba-enredo associado ao desfile de carnaval. Em diversos momentos da história do samba-enredo, as armas do samba estiveram miradas contra os capitalistas e contra esse sistema que se estrutura no racismo, machismo e todo tipo de exploração e opressão. Trazemos aqui quatro destes momentos.

1 - Beija-flor, 1989 - Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia

Em 1989 a Beija-flor passa pela avenida com um Cristo Redentor, mas não o que se está acostumado a ver, passaram com um Cristo negro, vestido de trapos, despido de qualquer glória. Idealizado por Joãozinho Trinta e censurado a pedido da Igreja, o Cristo da Beija-flor, que foi seu abre-alas em 1989, desfila coberto por uma lona preta, mas junto a uma faixa pedindo “mesmo proibido, olhai por nós”. Essa imagem fica muito mais gráfica e potente, remetendo também ao destino reservado aos corpos negros e marginalizados no capitalismo, reprimidos e mortos pelo Estado burguês e seu braço armado, a polícia.

Acompanhando o desfile, o enredo “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia” marca mais ainda o grito de revolta contra a pobreza e os recursos de que se vale a burguesia para impedir qualquer crítica:

“Reluziu, é ouro ou lata
Formou a grande confusão
Qual areia na farofa
É o luxo e a pobreza
No meu mundo de ilusão

Xepa, de lá pra cá xepei
Sou na vida um mendigo
Da folia, eu sou rei
[...]
Vibra meu povo
Embala o corpo
A loucura é geral
Larguem minha fantasia, que agonia
Deixem-me mostrar meu carnaval”

Seguido por um segundo carro alegórico chamado “Convite”, a Beija-flor reescreveu um trecho de “Os Miseráveis” de Victor Hugo e chama todos os “mendigos, desocupados, pivetes, meretrizes, loucos, profetas, esfomeados e povo de rua” a ocuparem a sapucaí.

Como um dos desfiles mais marcantes da história das escolas de samba, a visão censurada de Joãozinho Trinta de um cristo mendigo foi eternizada por Caetano Veloso em sua música Reconvexo:

“Eu sou o cheiro dos livros desesperados, sou Gitá, Gogóia
Seu olho me olha, mas não me pode alcançar
Não tenho escolha, careta, vou descartar
Quem não rezou a novena de Dona Canô
Quem não seguiu o mendigo Joãozinho Beija-Flor
Quem não amou a elegância sutil de Bobô
Quem não é recôncavo e nem pode ser reconvexo”

Leia mais em: Carnavais, cristos e censuras: mesmo proibido, olhai por nós

2 - Paraíso da tuiuti, 2018 - Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?

Em 2018 o Brasil se encontrava em um novo marco político: ao final do governo do golpista Temer, após a aprovação da reforma trabalhista no ano anterior e com o reacionário filho indesejado da burguesia Bolsonaro crescendo vertiginosamente como figura política para as eleições que ocorreriam mais tarde no mesmo ano. Nesse marco a Paraíso da Tuiuti retoma e subverte um título de outro samba-enredo comemorando a atuação da princesa Izabel na abolição da escravidão e o transforma em uma pergunta “Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?”

Saem então pela avenida as alas de seu desfile representando a escravidão nos mais distintos momentos da história e entre essas alas a ala do trabalho informal, com os desfilantes trajados como vendedores ambulantes, seguidos dos “guerreiros da CLT”, em um ataque direto contra os regimes de trabalho super precário instituidos pela reforma trabalhista de 2017 que intensificaram em um salto a exploração da classe trabalhadora no Brasil. Além disso, a escola retrata o golpista Temer como um “vampirão neoliberal”, sanguessuga dos direitos dos trabalhadores, como ficou popularizado nacionalmente no marco do início desse regime reacionário. Também são satirizados os “golpistas verde-amarelo”, base do fortalecimento da extrema direita, que viria demonstrar sua força social mais ainda ao final do mesmo ano com a eleição de Bolsonaro para a presidência.

E a Paraíso da Tuiuti canta seu enredo:

“Não sou escravo de nenhum senhor
Meu Paraíso é meu bastião
Meu Tuiuti, o quilombo da favela
É sentinela na libertação

Irmão de olho claro ou da Guiné
Qual será o seu valor?
Pobre artigo de mercado
Senhor, eu não tenho a sua fé
E nem tenho a sua cor
Tenho sangue avermelhado
O mesmo que escorre da ferida
Mostra que a vida se lamenta por nós dois
Mas falta em seu peito um coração
Ao me dar a escravidão
E um prato de feijão com arroz
[...]
Amparo do Rosário ao negro Benedito
Um grito feito pele do tambor
Deu no noticiário, com lágrimas escrito
Um rito, uma luta, um homem de cor
E assim, quando a lei foi assinada
Uma Lua atordoada assistiu fogos no céu
Áurea feito o ouro da bandeira
Fui rezar na cachoeira contra a bondade cruel”

3 - Mangueira, 2019 - História de ninar pra gente grande

Em 2019 a Mangueira entra na avenida com a proposta de recontar a história brasileira sob uma nova ótica, uma ótica dos de baixo. Desconstruindo os monumentos míticos das figuras “heroicas” da história brasileira, a Mangueira se propõe a contar “a história que a História não conta”, ou seja, que nunca entrou para o livro de história dos capitalistas, monstrando, entre outras coisas o massacre dos povos indígenas conduzido pelos bandeirantes. trazendo como carro alegórico intitulado “O sangue retinto por trás do herói emoldurado” uma representação sangrenta do “Monumento às bandeiras” de Brecheret pixado dizendo “Ladrões”, “Assassino”, com diversas placas junto a esqueletos dizendo “Tamoios”, “Cariri”, “Mulheres”, “Memória”.

Reivindicando a luta dos indígenas Cariris, do líder Sepé Tiaraju, dos quilombolas, de quem lutou contra a ditadura e foi “de aço nos anos de chumbo”, resgatando o nome de Dandara e de Marielle Franco, que havia sido assassinada no ano anterior, a Mangueira reivindica uma história da resistência no Brasil cantando:

“Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra

Brasil, meu dengo
A mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500
Tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato

Brasil, o teu nome é Dandara
Tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati

Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês

Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasil que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde-e-rosa as multidões”

Em uma bandeira do Brasil nas cores da Mangueira, no lugar do lema “Ordem e progresso”, lê-se “Índios, negros e pobres”. Em outras bandeiras, o rosto de Marielle Franco.

4 - Beija-flor 2022 - Empretecer o Pensamento É Ouvir a Voz da Beija-Flor

Também exigindo uma nova história e questionando se houve um fim da escravidão frente ao genocídio da juventude negra brasileira, a Beija-flor entra na avenida derrubando estátuas, simbolizando a derrubada de ícones históricos burgueses e remetendo à derrubada de estatuas de colonizadores na Inglaterra, no Chile e à queima da estátua do bandeirante assassino de indígenas Borba Gato aqui no Brasil.

Na alegoria “Escrevivências”, homenagem a nomes da arte e intelectualidade negra como Machado de Assis, Lima Barreto, Maria Firmina dos Reis, Maria Carolina de Jesus, Frantz Fanon, Milton Santos e Conceição Evaristo, que estava presente no desfile.

E desfilando a Beija-flor canta:

“Mocambo de crioulo sou eu, sou eu
Tenho a raça que a mordaça não calou
Ergui o meu castelo dos pilares de cabana
Dinastia Beija-Flor

A nobreza da corte é de ébano
Tem o mesmo sangue que o seu
Ergue o punho, exige igualdade
Traz de volta o que a História escondeu

Foi-se o açoite e a chibata sucumbiu
Mas você não reconhece o que o negro construiu
Foi-se ao açoite e a chibata sucumbiu
E o meu povo ainda chora pelas balas de fuzil

Quem é sempre revistado é refém da acusação
O racismo mascarado pela falsa abolição
Por um novo nascimento, um levante, um compromisso
Retirando o pensamento da entrada de serviço

Versos para cruz, Conceição no altar
Canindé, Jesus, oh, Clara!
Nossa gente preta tem feitiço na palavra
Do Brasil acorrentado ao Brasil que não se cala

Nada menos que respeito, não me venha sufocar
Quantas dores, quantas vidas nós teremos que pagar?
Cada corpo um orixá, cada pele um atabaque
Arte negra em contra-ataque”


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Araçá

Estudante de Letras da UFRN e militante da Faísca Revolucionária
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