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A atualidade das “escalas móveis” do Programa de Transição de Trótski para a crise no Brasil

Mateus Torres

A atualidade das “escalas móveis” do Programa de Transição de Trótski para a crise no Brasil

Mateus Torres

O MRT lançou neste mês uma campanha pelo “Reajuste salarial mensal igual à inflação” e “Emprego com direitos para todos”. Trata-se de consignas que são, de forma popularizada para o público brasileiro, as “escalas móveis” de salário e de horas de trabalho, formuladas no Programa de Transição, da IV Internacional fundada por León Trótski em 1938. Neste artigo, desenvolvemos alguns fundamentos dessa campanha, dialogando com argumentos que frequentemente surgem como crítica a campanhas desse caráter que definimos como de “agitação propagandística”.

A resposta à fome precisa se ligar à perspectiva de luta de classes e anticapitalista

Num país marcado pela fome, pela “fila do osso” ou “fila do lixo”, é natural que surja nas massas a preocupação emergencial de atacar esse problema sem necessariamente estar ligado a um programa e a uma estratégia que apontem para resolvê-lo de forma integral e definitiva. A dor no estômago não espera 2022 nem o dia seguinte. Um caminho “natural” do senso comum é considerar “descolado da realidade” consignas programáticas que parecem “não hierarquizar o problema urgente” e que apontam para outra organização da sociedade, numa perspectiva socialista.

O desespero da fome não necessariamente faz perceber, senão pela experiência ao longo de um tempo, que essa busca por “resolver o urgente”, não pode se descolar de uma resposta estrutural aos problemas do sistema capitalista. Durante a pandemia se deu um processo de experiência do qual é necessário tirar algumas lições. Desde o começo, surgiram diversas redes de solidariedade organizadas pela população para enfrentar a fome. Muitas das doações surgiram por parte do grande capital, não por um “humanismo”, mas pelo temor de uma explosão social similar às que vieram acontecendo em outros países da América Latina. Mesmo o governo Bolsonaro, expressão concentrada de uma burguesia reacionária e anti-popular, foi obrigado a conceder programas assistenciais para os setores mais pobres da população. Apesar de todas as medidas desde o começo da pandemia para responder à fome, estamos num país onde quase metade da população passa por um problema de “insegurança alimentar”. É que a crise é tão estrutural que passa pelo problema da moradia, dos preços absurdos que a população está pagando por tudo, o que se agravou com uma inflação recorde, que trouxe de volta o fantasma da inflação dos anos 80 e 90.

Lamentavelmente, mesmo a esquerda que se reivindica socialista em sua maioria não apresentou outro programa e estratégia radicalmente distintos para responder a esse problema emergencial, se adaptando ao velho “programa mínimo” e à estratégia assistencialista, isto é, transformando a iniciativa das arrecadações e doações de alimentos ou programas de auxílio emergencial, que podem cumprir um papel neste momento, em um fim em si mesmo, sem com isso batalhar para emergir um sujeito que possa dar uma saída contundente à fome. Os que se reivindicam socialistas deveriam ser os primeiros a batalhar por superar a perspectiva limitada e utópica de um resposta vinda a partir da iniciativa de cada indivíduo ou organizações políticas separadamente, que dependem da ajuda de doações voluntárias da sociedade e dos capitalistas de um lado e de políticas de assistência social do Estado por outro.

O único caminho realista para começar a responder estruturalmente a forme seria colocando o movimento operário e seus sindicatos como sujeito articulador de uma aliança operária e popular. Seria absolutamente diferente se as redes de solidariedade e doações de alimentos fossem organizadas a partir dos sindicatos e centrais sindicais de forma articulada em todo o país. Uma política com essa seria uma grande oportunidade de ligar os batalhões da classe trabalhadora empregada e organizada em sindicatos, com as massas de pobres urbanos e trabalhadores precarizados sem organização, através de uma campanha nacional que ligasse a resposta a este problema emergencial através da auto-organização pela base de uma aliança operária e popular para responder a este problema.

Mas uma campanha emergencial como essa, teria que se relacionar com a batalha por um programa com um conjunto de outras consignas, sem alimentar nenhum tipo de ilusão em saídas paliativas. As forças organizadas em uma aliança operária e popular como essa, teriam que se articular para fazer uma forte exigência ao Estado de garantia de um auxílio emergencial generalizado para todos que necessitam de ao menos um salário mínimo, bem como a uma luta pela derrubada de todos os aumentos feitos na pandemia (luz, água, gás, gasolina e transporte), congelando os preços nos valores anteriores à crise sanitária. Sem a organização do sujeito social capaz de resolver a fundo estes problemas, não poderemos dar passos sustentados sequer para a superação de problemas tão elementares como o direito de comer ou de ter um teto para morar com luz, água e gás.

A perspectiva sindicalista corporativa das burocracias sindicais, repetida amplamente na prática pela esquerda que se reivindica socialista, faz com que não tenha se colocado essa batalha nem mesmo nos sindicatos dirigidos pela esquerda. É que a esquerda em geral se adapta ao senso comum. Essa adaptação da esquerda ocorre do ponto de vista do programa (os objetivos a conquistar), que frequentemente se limita ao chamado “programa mínimo”, mas também a uma estratégia (o “como” batalhar por aquele programa) em chave eleitoralista, parlamentarista, sindicalista ou assistencialista. Mesmo setores que falam em defesa do comunismo ou até do trotskismo, na prática cotidiana tendem a se adaptar a essa perspectiva, dentro dos limites impostos pelas direções majoritárias e da “miséria do possível”. Não sem por vezes se combinar com uma propaganda socialista abstrata, descolada de uma batalha prática no movimento operário e popular com um programa e estratégia que de fato construa essa perspectiva.

É necessário uma esquerda que se aproprie do método do Programa de Transição

A tradição marxista revolucionária é marcada por uma concepção que supera a divisão entre o “programa mínimo” e “máximo”, que sempre expressaram as tendências reformistas no movimento operário. Desde a II Internacional, Friederich Engels criticava o programa de Erfurt, votado no Congresso do Partido Social-democrata da Alemanha de outubro de 1891. Os revolucionários que construíram a III Internacional como Rosa Luxemburgo, Lenin e Trótski desenvolveram um programa e estratégia que buscava superar tal perspectiva reformista utópica, relacionando a luta por consignas transitórias à tática da Frente Única Operária. Essa concepção clássica do marxismo é a que Trótski vai sistematizar no Programa de Transição, na fundação da IV Internacional em 1938.

No Programa de Transição, Trótski defendia que através das consignas que os socialistas agitam, é necessário estabelecer “duas pontes”: “uma ponte entre o nível de consciência dos trabalhadores e, depois, uma ponte material para a revolução socialista” [1]. É dentro desta perspectiva que está inserida a luta pelas “escalas móveis” de horas de trabalho e salário.

A “escala móvel de salários”, que popularizamos como “Reajuste salarial mensal igual à inflação” é a única forma de fazer com que os trabalhadores não sigam pagando pela crise com a perda do poder de compra dos salários com a inflação, problema cada vez mais sentido pelas massas. É necessário avançar na compreensão de que não será possível responder a este problema em campanhas salariais isoladas de cada categoria, sendo necessário uma batalha por unificar o conjunto da classe para impor o reajuste automático dos salários a cada mês de acordo com o aumento do custo de vida. Na consigna, utilizamos “igual à inflação” buscando uma popularização que torne de mais fácil compreensão, mas nos referimos não ao índice geral calculado pelos capitalistas, mas relacionado à “inflação real” que deve ser calculada de acordo com o índice que é sentido pelos setores populares, que é muito maior, que é o que definimos como “reajuste de acordo com o aumento do custo de vida”.

A “escala móvel de horas de trabalho” é o que chamamos de “divisão das horas de trabalho entre todas as mãos disponíveis para trabalhar”, com a redução da jornada de trabalho, começando pela redução para 6h, 5 dias na semana. Sintetizamos essa batalha na consigna de “Emprego com plenos direitos para todos”, numa popularização que aponta para resolver o problema de fundo do direito elementar ao trabalho. Essa consigna ganha vigência renovada frente à dissolução na prática da conquista da jornada de 8 horas, ao aumento do desemprego e da precarização do trabalho.

Quando essa consigna foi elaborada por Trótski, assim como no Brasil hoje, ela buscava um diálogo para avançar na unificação dos trabalhadores empregados, desempregados e trabalhadores precarizados na luta por emprego com plenos direitos para todos. Isso porque não haverá resposta sequer ao problema da fome sem essa unidade. A classe trabalhadora não pode aceitar essa divisão e as campanhas reacionárias que colocam os trabalhadores com melhores condições de trabalho e organizados sindicalmente como “privilegiados” e os desempregados como “vagabundos”; ou aceitar a naturalização do desemprego e da precarização do trabalho. Limitar-se ao “programa mínimo” significa aceitar esse tipo de concepção e abrir mão da tarefa estratégica de unir a classe trabalhadora, única via de transformar a atual situação que vivemos, mesmo em relação àquelas questões “mínimas.

Se levadas para uma batalha nos sindicatos, essas consignas têm o potencial de enfrentar as burocracias sindicais que buscam dividir a classe trabalhadora, aproveitando essas batalhas como uma grande oportunidade para fazer propaganda não somente da necessidade de um governo dos trabalhadores, mas também da perspectiva comunista, de que os avanços da ciência, da técnica e da cooperação do trabalho, se são arrancadas das mãos do capital, permitiriam que a capacidade de produzir o mesmo em menor tempo abrisse a possibilidade para que a humanidade possa utilizar cada vez menos energias para produzir o que necessita para subsistir, e assim poder liberar verdadeiramente toda seu potencial criativo, produtivo e as capacidades humanas.

Trótski aponta bem no Programa de Transição sobre a escala móvel de horas de trabalho que: “os proprietários e seus advogados demonstrarão o caráter irrealizável destas reivindicações (...) a questão não está em uma choque normal entre interesses opostos. A questão está em preservar o proletariado da deterioração, da desmoralização e da ruína (...) Se o capitalismo é incapaz de satisfazer as reivindicações que surgem inevitavelmente das calamidades geradas por ele mesmo, então que morra. O realizável e o irrealizável é neste caso uma questão de correlação de forças que só a luta pode resolver”.

Essa divisão das horas de trabalho e reajuste automático precisa se dar em base a que sejam os capitalistas que paguem pela crise com seus lucros. Isso significa que deve se dar sem redução salarial. Mas também sabemos que os salários hoje em dia estão em níveis baixíssimos, por isso precisa se articular com a luta pelo salário mínimo do DIEESE (que hoje está em R$ 5.657,66).

A força particular das “escalas móveis” se liga ao potencial que tem de buscar responder a questões elementares como o direito a um emprego para todos e a que o salário não seja desvalorizado pela inflação, que são questões que amplos setores de massas podem concordar que é necessário, mesmo com o atual nível de consciência, dentro de uma engrenagem que conduz à necessidade da tomada do poder pelos trabalhadores, pois o capitalismo não pode atender a essa demanda que deveria ser elementar. É tarefa dos socialistas a batalha para elevar a consciência da vanguarda e das massas de que a luta por essas demandas emergenciais se ligam à luta por uma nova sociedade.

Mas estas consignas das escalas móveis não são uma resposta separadas de um Programa de Transição que relaciona com outras consignas que permitam reorganizar o país sob novas bases e aponte uma estratégia para isso, como formulamos neste Manifesto do MRT no começo da pandemia. Uma delas que é crucial é a necessidade de um enorme investimento estatal em um grande plano de obras públicas para vários anos. Um plano controlado pelos trabalhadores, ligado a uma verdadeira reforma urbana, garantindo moradias, saneamento básico, transporte público rápido, hospitais, escolas, tudo o que é necessário para uma vida digna.
Para essa luta, é preciso unificar os trabalhadores em uma frente comum de combate contra o conjunto da classe dominante, o que só pode ser feito batalhando por recuperar nossos sindicatos das mãos das burocracias. O combate ao conjunto do regime político que impõe fome e desemprego segundo os interesses dos capitalistas é fundamental. Por isso levantamos Fora Bolsonaro e Mourão combinado com a luta por impor uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana, que incremente o choque político entre as classes e abra caminho à perspectiva da batalha por um governo dos trabalhadores de ruptura com o capitalismo.

Mas não são consignas descoladas da realidade para um país numa situação reacionária?

Esse é um argumento frequentemente utilizado para defender que o programa da esquerda deve se limitar ao “programa mínimo”. Essa política significa renunciar à construção de uma força revolucionária independente, que possa de fato cumprir o papel de organizar um setor dos trabalhadores com a perspectiva de transformação radical da sociedade. Só serve para a manutenção do status quo de fome e miséria.
Outros podem argumentar que a particularidade do Brasil de que estamos em meio a uma situação reacionária tornaria “folclórico” agitar consignas como essa, que só podem ser levadas à frente e ter capacidade efetiva de ser encampada pela vanguarda e pelas massas em uma situação que se desenvolve num sentido revolucionário. Essa concepção parte de que a “correlação de forças” é algo dado e não moldado justamente pela intervenção dos sujeitos sobre ela. Se a mudança de uma situação reacionária para revolucionária dependesse somente das “condições objetivas”, o método do Programa de Transição não teria sentido. Bastaria utilizar ofensivamente um “programa mínimo” combinado com uma propaganda socialista abstrata e esperar o momento em que surja uma situação revolucionária. No entanto, as situações políticas são forjadas pela ação permanente de fatores objetivos e subjetivos. Enquanto setores da esquerda socialista tem essa visão adaptada à realidade, estamos em um país onde a extrema direita com Bolsonaro e os militares souberam muito bem batalhar para formar a mudança pela direita da correlação de forças.

Nossa batalha é pela emergência no campo da esquerda de um setor que busque consequentemente alterar a correlação de forças pela esquerda, com um programa e uma estratégia para isso. As organizações socialistas precisam cumprir um papel nesse sentido, colaborando para que a classe trabalhadora avance na compreensão subjetiva da tarefa histórica determinada pela situação objetiva. Trata-se de uma tarefa preparatória a de “semear” determinadas ideias que podem educar uma vanguarda, em forma mais ou menos “propagandística” ou “para a ação”, de acordo com a situação. Se não pretendemos conquistar de forma imediata as “escalas móveis”, ao menos começamos a conquistar um setor de trabalhadoras para essas bandeiras, construindo um partido revolucionário nesse processo. Isso é decisivo para nos momento de levante poder vencer.


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