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A luta das mulheres em Pernambuco | A auto-organização das mulheres em Tejucupapo na luta contra os holandeses (1646)

domingo 14 de agosto de 2022 | 16:50

Mulheres de Tejucupapo, painel de Tereza Costa Rêgo.

O atual espaço de Goiana, cidade da Zona da Mata Norte de Pernambuco, 61 km do Recife, que abriga hoje multinacionais como a Jeep/Fiat, foi palco, no século XVII de uma das resistências mais emblemáticas de mulheres em Pernambuco contra os holandeses, que, segundo a historiografia, teria sido o primeiro conflito armado protagonizado por mulheres registrado: a Batalha de Tejucupapo.

A história épica de um batalhão organizado de mulheres, em sua grande maioria de origem indígena e agricultoras contra 600 soldados holandeses e brasileiros aliados, teve a liderança de Maria Camarão, Maria Quitéria, Maria Clara e Joaquina à frente desse combate.

Invadida e ocupada pelos Holandeses e pela Companhia das Índias Ocidentais (WIC) desde 1630 com o intuito de monopolizar o comércio açucareiro, Pernambuco vivenciava em 1646 o processo de Insurreição (1645-1654) para a expulsão dos holandeses. O autor M. Brandão (1) enfatiza que no processo de “[...] dominação holandesa, no Nordeste, em particular, Pernambuco, houve poucos períodos de plena estabilidade. Uma atmosfera de guerra fixou-se na região desde o desembarque dos flamengos, na costa de Pernambuco, em meados de fevereiro de 1630”.
Enfraquecidos, pois já haviam perdido quase todo o domínio das terras pernambucanas desde as derrotas do Monte das Tabocas e na Batalha da Casa Forte, fragmentados, sem comida e acuados no Forte Orange, na Ilha de Itamaracá, os holandeses, recorrendo à guerrilha, à espionagem e sabotagem (2) decidiram saquear e ocupar o Povoado de Tejucupapo, devido à sua roçaria de mandioca, frutas, legumes, peixes e mariscos. Com a ideia de aproveitarem-se de momento de ausência dos homens do povoado, os holandeses, no entanto, foram surpreendidos pela astúcia das mulheres locais.

Um cronista da Insurreição Pernambucana, Diogo Lopes Santiago (3) descreveu sobre as mulheres: “[...] aquelas valorosas mulheres, com varonil ânimo, vendo o perigo que corria sua honra e vida, e de seus maridos e filhos, tirando força de fraqueza, acudiram àquela parte aonde tinha aberto o pontilho, com dardos, chuços e paus tostados, e outras armas, e defenderam e impediram a entrada, e todas a um tempo chamaram pelo Santos Mártires Cosme e Damião, que as socorreram em tão estreita necessidade. Caso milagroso! Que, tanto que invocaram o Santos Mártires, deram os nossos trinta mancebos uma surriada no inimigo por um lado com suas espingardas, o qual suspeitando que aos cercados lhes vinha socorro, desistiu da empresa, e, apesar da sua soberba, se retirou fugindo [...]”

Descontando-se a ênfase religiosa, típica da concepção providencialista da História (providência Divina como guiando os destinos), comum, segundo Janice Theodoro da Silva, aos cronistas de guerra da época (4), podemos claramente captar que as mulheres de Tejucupapo lutaram com os meios mais artesanais, com seus instrumentos de trabalho, fizeram de arma os utensílios comuns do seu dia a dia. O que dizer de mulheres que, para defender seu espaço, resistiram fervendo tachos de água com pimenta e jogaram-nos sobre os invasores? Derrotaram o inimigo com a força da sua organização, resistiram com o manejo dos meios que lhes eram conhecidos. É marcante como as mulheres batalharam contra a emboscada holandesa fazendo uso de poucas armas de fogo e armas brancas, com o que tinham... e a uma arma química (5). Os registros apontam que dois terços da tropa foi sacrificada na batalha, e que marcou o fim do período colonizador da Holanda na América Latina (6).

O protagonismo das mulheres de Tejucupapo nos remete fortemente a traçar uma linha de relação entre o espaço, sua gente e sua trajetória. Desde o século XVI, foi em Tejucupapo e toda a região adjacente que se desenvolveu uma importante área de resistência. Foram os povos Caetés, Tabajara e Potiguares que primeiramente se destacaram nas suas lutas contra a escravização indígena. Desde a origem de um dos mais antigos núcleos de colonização da Coroa Portuguesa, a Capitania de Itamaracá (1534), os indígenas destruíam engenhos no território, tendo chegado ao ápice essa resistência quando os Potiguares, em 1574 destruíram completamente o distrito de Goiana (7). Os choque territoriais eram tantos e tão marcantes que só há registro da construção de engenhos na região datados do século XVI. (8).

A mesma região também foi local onde se deu um dos movimentos de maior representatividade da resistência negra colonial: O Quilombo de Cacutá. Considerados exímios guerreiros, os relatos sobre as ações, organização, ataques e resistências dos negros do Catucá estão nas narrativas de documentos oficiais e na vasta historiografia sobre o período, tendo se constituído em importante ameaça ao poder local instituído, fato que provocou, depois de algumas investidas ao quilombo, a ordenação em 18 de setembro de 1835 de uma emboscada na cidade de Abreu e Lima, que assassinou o líder João Batista.

À vista desse passado de resistência e luta, não é de se estranhar como ali, em Tejucupapo tenha ficado uma marca forte dessa tradição. Assim é que, o papel decisivo das mulheres na expulsão dos Holandeses, continua a ser, ainda hoje, evocado como um símbolo para as lutas das trabalhadoras, como um exemplo de força e bravura e como a “[...] participação feminina na luta de resistência à invasão holandesa na povoação conferiu às mulheres de Tejucupapo, ao longo da história, o título de ‘heroínas” (9). Figuras que eram “donas de casa, agricultoras, gente mestiça, negras e índias” (10) deixaram uma lição histórica de como o triunfo de uma luta resulta incontestavelmente da organização do próprio povo.
Assim, com o que dispunham, as guerreiras de Tejucupapo escreveram na luta um importante “[...] episodio histórico do Brasil holandês do século XVII, em que as mulheres de uma pequena comunidade do litoral norte de Pernambuco ajudaram a expulsar de maneira inusitada com paus, pedras, chuços e água quente com pimenta, um grupo faminto e bem armado de soldados holandeses que pretendiam pilhar pela terceira vez as plantações do local.

A ação das mulheres de Tejucupapo é descrita pelo cronista Diogo Lopes Santiago como uma repressão “com grande valor e ânimo”. E, assim, como destaca Luciana Lyra, dramaturga, atriz e pesquisadora que desenvolveu a sua tese de doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) sobre o tema: "Muito além do registro nos livros históricos, que foram escritos por homens e sobre homens, essa história tem uma força simbólica muito poderosa naquela comunidade. Estamos falando de uma história de 1646 que perpassou esse tempo todo ali, contada pelas mulheres, e reafirma que aquelas heroínas existiram e lutaram". Isso porque, por meio da memória local a história da resistência das mulheres segue sendo rememorada em Tejucupapo, por meio de encenação teatral realizada anualmente no mês de abril, por mulheres marisqueiras, pescadoras, professoras, aposentadas e donas de casa, que fazem parte da Associação Grupo Cultural Heroínas de Tejucupapo.

Não tendo sido somente os olhos dos soldados holandeses os atingidos pela água fervente e apimentada, o episódio das mulheres de Tejucupapo chega até nós como um marco na organização para a luta. É um sopro na brasa da resistência atual que precisa ser tomada pelos que batalham pela sobrevivência e triunfo, afinal, organização e luta com independência de classe guarda passos importantes na estratégia por um outro mundo possível e na imediata necessidade de combater a extrema-direita, Bolsonaro, os militares e toda a conciliação de classes que ameaçam o Brasil nesse momento. Desse modo, valorizar a história da auto-organização das mulheres carrega a importância de forjar exemplos de figuras que lutem de braços dados com o conjunto da classe trabalhadora contra o machismo, o patriarcado e todas as questões que impedem a construção de uma sociedade sem classes e que permita, assim, o fim da opressão.

Notas

1.BRANDÃO, M. Tejucupapo e o registro da insurreição. In C. Bezerra. Tejucupapo: história, teatro, cinema (pp.15-42). Recife: Bagaço. 2004, p. 21.
2. Idem, p. 22.
3. SANTIAGO, Diogo Lopes. Historia da Guerra de Pernambucoe feitos memoráveis do Mestre de campo João Fernandes Vieira, 1634. p. 395.
4. SILVA, Janice Theodoro da. O barroco como conceito. p. 291.
Ver: FELINTO, M. Mulheres de Tejucupapo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004. 5. GOMES, H.; BRIENZA, K. Olhos de fogo. Rio de Janeiro: Escrita Fina, 2010.
6. BRANDÃO, M. Tejucupapo e o registro da insurreição. In C. Bezerra. Tejucupapo: história, teatro, cinema (pp.15-42). Recife: Bagaço. 2004.
7. MILLER, J. Goiana dos Caboclinhos. Goiana-PE. Editora FASE. 2010. p. 60.
8. NASCIMENTO, M.R. Crônicas Goianeses. Goiana, 1996. SOUSA; LIMA. Goiana: Cidade Histórica. Secção de História de Goiana. SECEDI, 2010.
9. SILVA, Janice Theodoro da. O barroco como conceito. p. 132
10. BRANDÃO, M. Tejucupapo. Recife: Synapse Produções, 2001. Documentário. Disponível em: www.camara.leg.br/tv/191683-tejucupapo/.
11. BEZERRA, C. Tejucupapo: história, teatro, cinema. Recife: Bagaço. 2004. p. 7




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