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A teoria decolonial e a invenção do “marxo-positivismo”: debate com Aníbal Quijano

Iuri Tonelo

A teoria decolonial e a invenção do “marxo-positivismo”: debate com Aníbal Quijano

Iuri Tonelo

"Na história moderna, apenas as cenas de transporte e derramamento de sangue durante a revolta negra na Jamaica podem ser comparadas com estas atrocidades. Aqui, como na Jamaica, os capitalistas celebraram orgias sangrentas. Aqui, como na Jamaica, esperavam quebrar o que restava do espírito de resistência e auto-estima dos trabalhadores através de atos de extrema brutalidade".
Primeiro panfleto da Associação Internacional dos Trabalhadores, redigido por Karl Marx e Wilhelm Eichhoff

Introdução

Nos estudos das Ciências Sociais e outras áreas do conhecimento tem se renovado o interesse no conhecimento científico e literário nas regiões da periferia do capitalismo (ou do chamado Sul global), bem como na compreensão de suas particularidades. Certamente é progressista o anseio de irromper contra a impositiva centralização do conhecimento e da produção cultural ao ponto de vista europeu ou norteamericano e aos ditames da lógica das potências, em suma, romper com as consequências ideológicas e culturais do imperialismo.

Esse estimulante anseio e o questionamento subsequente do eurocentrismo têm levado a se ampliar o interesse em visões que se colocam como críticas do imperialismo e sua produção de conhecimento. Entre essas teorias está a visão decolonial, que parte da opressão racial na América Latina como um aspecto central da reflexão sobre o capitalismo contemporâneo. O intuito de compreender os “sujeitos subalternos” da região e o ponto de vista latino-americano, que poderia gerar empreendimentos frutíferos, esbarrou, no entanto, em um problema ligado ao estado do “mar” pelo qual os novos escritores decoloniais buscaram “navegar”. Uma das obras marcantes, do autor peruano Aníbal Quijano, “Colonialidad y Modernidad/Racionalidad”, foi escrita em 1991 [1], dois anos após a queda do muro de Berlim e no ano da restauração do capitalismo na URSS. O contexto aqui é de significativa influência, pois o escritor estava navegando pelas águas turbulentas do auge do neoliberalismo, e ao nosso ver cedeu teórica e estrategicamente aos ditames dominantes do período: ter como ponto de ênfase de sua crítica o chamado “materialismo histórico”.

Nesse sentido, nos propomos nesse artigo nos contrapor à caricatura conjurada por Quijano do marxismo (o marxo-postivismo) e, ao mesmo tempo, expressar os limites estratégicos de sua alternativa à colonialidade do poder. Consideramos esse debate fundamental para pensar o tema latinoamericano sem cair nas imposições neoliberais e anti socialistas da época.

Colonialidade do poder e eurocentrismo

Um dos eixos da reflexão decolonial está no conceito de “colonialidade do poder”. Antes de tudo, nos parece importante apresentar a visão conceitual do autor para a compreensão desse debate. Colonialidade se difere do conceito de colonialismo, na medida em que este se referia, na teoria de Quijano, “estritamente a uma estrutura de dominação/exploração onde o controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial” [2] (Quijano, 2009, p. 74). Nesse sentido, o colonialismo foi uma forma clássica de dominação, é mais antigo, e não necessariamente teve os elementos raciais e étnicos como um dos seus pilares.

Já a noção de colonialidade, que vai se tornar um dos eixos teóricos de crítica do autor e dessa corrente de pensamento, tem uma história mais recente e está ligada diretamente à emergência do capitalismo. Quijano explica o conceito da seguinte forma:

A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social cotidiana e da escala societal. Origina-se e mundializa-se a partir da América [3]

Ou seja, na visão do sociólogo peruano houve uma construção de uma identidade histórica entre as regiões produzida pela associação entre raça/etnia à natureza dos papéis desenvolvidos na nova divisão internacional do trabalho. Dessa forma “impôs-se uma sistemática divisão racial do trabalho” [4].

A primeira coisa a se observar aqui é que para que esse raciocínio seja desenvolvido, é preciso evidenciar uma tese que está na base dessa reflexão: a inter-relação entre o racismo e a emergência do capitalismo. Ou seja, a necessidade de expansão do capitalismo e a escravização africana (e indígena na América) foi um dos pilares do surgimento do racismo e das justificações que são evidenciadas no conceito de colonialidade. Mas o que não está dito é que não foi a teoria decolonial que estabeleceu essa relação. Antes mesmo da fase de Quijano nos anos 1970, mais simpática ao marxismo, e toda sua reflexão que coloca a questão racial como um dos eixos da constituição do capitalismo, um grupo de pensadores marxistas dos Estados Unidos refletiu sobre essa temática, elaborando o essencial dessas teses. Um texto ilustrativo nesse sentido foi escrito por Georg Breitman, em 1954, intitulado “quando surgiu o preconceito contra o negro”. Nesse texto, o autor diz o seguinte:

Cox afirma que, se tivesse que definir um ano que marcasse o surgimento de tais relações raciais, escolheria 1493-1494 – quando o Papa garantiu aos Estados católicos da Espanha e de Portugal jurisdição e o direito de explorar todos os povos hereges (predominantemente não brancos) e seus recursos. (...) Seja qual for o século escolhido, a questão é esta: o preconceito racial contra o negro surgiu para justificar e preservar o sistema de trabalho escravista que operava de acordo com os interesses do capitalismo nos estágios pré-industriais, e manteve-se ligeiramente modificado pelo capitalismo industrial após a escravidão se tornar um obstáculo para o desenvolvimento posterior do capitalismo e ser abolida. Poucas coisas no mundo estão mais carimbadas pelas características do capitalismo [5]

Como o próprio autor aponta, estudos estavam sendo feitos no sentido de estabelecer essa relação entre o racismo e o capitalismo – e vale destacar que a base disso está no capítulo “A assim chamada acumulação originária” do livro 1 de O Capital, do próprio Marx. É pertinente também retomar a obra de CLR James, que remarcou na revolução haitiana e nos processos de luta negra nas Américas a importância de se reler a história a partir de questionar a noção de “negro dócil” [6], um mito se levarmos em conta o conjunto das lutas de resistência realizadas por negros e indígenas no continente – uma visão, diga-se de passagem, bastante crítica de qualquer vertente eurocentrista, que no geral “se esquecem” desses processos de luta e do incrível processo de libertação dos escravizados que foi a Revolução Haitiana.

Existem diferenças dentro dessa base: a visão de Quijano e outros autores decoloniais dão ênfase na divisão imaginária e racista do mundo entre regiões, com consequências no conjunto de teorias e ideologias produzidas em função disso (em particular o eurocentrismo). Mas traçar a história das ideias é importante porque esse empreendimento de refletir a partir dos processos na América Latina ou da relação entre o racismo e o capitalismo (e as consequências que tem na geopolítica mundial), é algo já feito pelo marxismo de longa data.

Homogeneização histórica: a crítica ao “materialismo histórico”

Aníbal Quijano elabora uma crítica ao pensamento europeu (e seu eurocentrismo) e parte de abordar desde as correntes de pensamento iluministas, o liberalismo, o funcionalismo, estruturalismo, e nesse bojo todo coloca a obra de Karl Marx e o que chama de “materialismo histórico”. O autor especifica que por “materialismo histórico” se refere ao Engels do final da vida e a socialdemocracia (especialmente alemã), ao stalinismo e ao estruturalismo francês de Althusser [7], e diz que o materialismo histórico não é “uma ruptura, mas uma continuidade parcial e distorcida” [8] da obra de Marx. [9] Essa caricatura do “materialismo histórico” que habitualmente na academia se faz confundindo o fenômeno do stalinismo com o marxismo, não será um tema nosso aqui, mas consciente ou inconscientemente é utilizado como um mecanismo político internacional, que não só confunde as teorias, mas termina colaborando com a falsa identificação do “comunismo” com a burocratização da revolução na URSS, bem como Estados atuais como Coreia do Norte, China ou Venezuela, equivalendo o “comunismo” com ditaduras, governos totalitários, etc. Vale notar que Quijano busca não equivaler Marx com essa “herança”, porque seria excessivamente rasteiro tratar toda obra de um dos mais influentes nomes do pensamento contemporâneo dessa forma, mas não deixa de fazer críticas caricaturais à obra dele, e é delas que vamos tratar a seguir.

Vejamos a mais “sofisticada” crítica de Quijano a Marx, um primeiro aspecto que ele aborda levando em conta os debates sobre a colonialidade:

É verdade que a experiência do poder capitalista mundial, eurocentrado e colonial/moderno, mostra que é o controle do trabalho o fator supremo neste padrão de poder: este é, em primeiro lugar, capitalista. Em consequência, o controle do trabalho pelo capital é a condição central do poder capitalista. Mas em Marx, implica-se, de um lado, homogeneidade histórica deste e dos outros fatores, e por outro que o trabalho determina, todo o tempo e de modo permanente, o caráter, o lugar e a função de todos os outros meios na estrutura de poder

Ou seja, o controle do trabalho pelo poder capitalista é determinante, mas o grande problema é que Marx não compreendeu que, “se se analisar de novo a experiência do padrão mundial de poder capitalista, nada permite verificar a homogeneidade histórica os seus componentes, nem sequer dos fundamentais, seja do trabalho, do capital ou do capitalismo”. Daqui que Quijano dê uma ‘prova irrefutável’ do erro de Marx: “por exemplo, o trabalho assalariado existe hoje, como no início da sua história, ao lado da escravidão, da servidão, da pequena produção mercantil, da reciprocidade” [10].

A primeira crítica de Quijano a Marx é que este viu uma tendência a homogeneização histórica “todo o tempo e de modo permanente” determinada pelo trabalho, o que leva a uma homogeneização do conjunto das sociedades de forma equalizada – como se Marx estivesse dizendo que todo o capitalismo internacional se tornará a Inglaterra. Sobre isso, nós realmente acreditamos que não é preciso um grande grau de conhecimento da obra de Karl Marx para ter claro que nada aponta em sua obra uma tendência à homogeneização indeclinável de todas as formas de trabalho e mesmo de capital, nem que Marx deixou de perceber o papel da colonização para o advento do imperialismo, gerando diferenças agudas entre as regiões do mundo. Isso porque é de Marx a expressão “desenvolvimento desigual”, que utiliza em seus apontamentos filosófico-metodológicos nos Grundrisse, e uma das coisas elementares de seu pensamento é que a burguesia é uma classe que não pode levar as suas tendências até o final.

Se olharmos economicamente, poderíamos citar a partir de sua obra que a criação do exército de reserva, pobres urbanos, lumpemproletários e outros setores vai conviver com a proletarização sempre crescente, porque é parte da lei geral da acumulação capitalista; ou ainda do ponto de vista do capital, as formas de desenvolvimento do capital financeiro, fictício, vão estar sempre atreladas às velhas formas industriais, comerciais e bancárias – para não falar dos proprietários de terra e os que vivem da renda da terra. E poderíamos observar também politicamente, uma vez que a experiência da Primavera dos povos de 1848 foi categórica em demonstrar que a burguesia se associou com classes proprietárias de terra do passado e na sua forma de poder em muitos países, ou seja, que mesmo o “paradigma” da Revolução Francesa, no qual a burguesia arrasta atrás de si as massas trabalhadoras, camponesas e pauperizadas para tarefas que avançam contra o Antigo Regime, já tinha sido superada pela reação burguesa.

Indo além, o desenvolvimento do marxismo no século XX apresentou um enriquecimento dessas concepções de distintos ângulos. Bastaria citar, o que é conhecido por Quijano, que uma das bases da reflexão na Rússia era a combinação entre os elementos “arcaicos” e “modernos” (usando os termos para seu próprio país) na economia, que levavam a que um país com uma classe dominante bastante reacionária organizada como o Czarismo tivesse uma explosão de crescimento industrial. Leon Trótski sintetizou essa reflexão na célebre expressão do “desenvolvimento desigual e combinado”, o que vai na contramão de qualquer visão de “homogeneização imparável” de Marx ou do marxismo.

Ou seja, na sua crítica a Marx, o autor peruano unilateraliza bastante as visões “homogeneizantes” e seletivamente se esquece do que os marxistas produziram décadas antes sobre a importância do aspecto racial (e o desenvolvimento desigual e combinado) para se pensar a América Latina - nem falar que exatamente no texto em que vai criticar o eurocentrismo do Marx o autor simplesmente não faz menção a obra de Mariátegui, como parte dessa tradição.

Totalidade e teleologia da história

A ênfase no aspecto “homogeneizante” do marxismo para Quijano, o leva para um problema maior quando ele busca dar uma fundamentação filosófica. Ele vai criticar que as determinações não podem ser “unilineares” e “unidirecionais”, pois avança em aspectos de compreensão do marxismo de forma sistêmica e orgânica, quase como se estivesse falando da teoria de Émilie Durkheim. O recurso não é novo, mas o sociólogo peruano dá novos contornos, a saber, transforma o marxismo em um positivismo, e em seguida faz a crítica. Certamente é bem mais fácil criticar um espantalho positivista do que uma teoria da emancipação dos trabalhadores.

Do ponto de vista filosófico, Quijano parte de um argumento retomado inúmeras vezes (e questionado de diversas formas) de que a teoria de Marx e o materialismo histórico seriam teleológicos, ou seja, que veriam uma evolução “unilinear e unidirecional” no plano histórico. A resposta a esse ponto já foi dada em muitos planos, mas gostaríamos de enfatizar um aspecto: o marxismo se fundou em uma crítica da filosofia do direito de Hegel, uma vez que mesmo o jovem Marx, contra toda a tradição iluminista e a filosofia alemã do seu tempo que via o “Estado baseado em leis racionais” como o cume do processo histórico, percebeu, ao contrário, que esse “Estado racional” era um instrumento de opressão de classes.

Daqui em diante o ponto de vista histórico de Marx coloca a ênfase na luta de classes como “motor” histórico, o que implica em um aspecto subjetivo (e político), que ao contrário do futuro estar definidos por um “thelos” histórico, por um fim que já estaria previsto na história de antemão, os trabalhadores teriam que teorizar, se organizar, travar batalhas, levar em conta os diferentes contextos, se quiserem sua emancipação. Assim, filosoficamente, a obra de Marx se sintetizava desde o início na consagrada “tese 11”, que diz que do que se trata é não só de “interpretar o mundo”, mas de transformá-lo, o que implica em uma noção de intervenção subjetiva em circunstâncias dadas, numa matéria em constante transformação.
Daqui que a própria vida de Marx foi um exemplo disso. Longe de um intelectual de gabinete que vaticinou o socialismo como “caminho unidirecional da história”, Marx esforçou-se longos anos até a criação em 1864 da Associação Internacional dos Trabalhadores. E nesse processo ampliou seu ponto de vista, particularmente acompanhando processos “não-ocidentais” após os anos 1850, e o conjunto das lutas internacionais. Entre os exemplos que poderíamos mencionar para o olhar para fora da Europa, valeria elencar [11]: as razões de Marx ter dado grande ênfase na internacional a que os trabalhadores europeus apoiassem a luta contra a escravidão nos Estados Unidos; o porquê depois de conhecer a luta na Índia, Marx vai escrever que esse país se tornou “A Índia agora é nosso maior aliado”; o fato de Marx ter se detido na elaboração sobre a China, partindo da consideração de que os “extremos se tocam”, e apontando que a revolução começando lá poderia chacoalhar a Europa; as bastante conhecidas trocas de carta com a revolucionária russa Vera Zassulich, em que Marx reflete exaustivamente que ao contrário de ter que passar por um período de capitalismo, era possível pensar as possibilidades de emancipação e o socialismo a partir da antiga comuna agrária russa (caso o processo se conectasse com uma revolução socialista, avançando internacionalmente). Vale ainda lembrar o interesse de Marx e Engels em processos da América Latina, daqui que acompanharam o massacre britânico contra insurreição jamaicana de 1865, uma denúncia que foi parte do primeiro panfleto da internacional, citado na epígrafe deste texto.

É só conhecer um pouco mais da obra de Marx para perceber a importância dos processos de luta de classes em seu pensamento e que, portanto, era para esses processos e sua influência subjetiva, e não por uma “mão invisível da história”, que se conformava a base de seu pensamento. Desses processos, vale mencionar, Quijano parece ter tido contato apenas com a questão russa [12], e diz que Marx chegou a reconhecer os problemas de sua perspectiva histórica, mas não deu o salto epistemológico correspondente. Para Quijano, assustaria saber que Marx se deteve sobre a escravidão nos EUA, sobre o colonialismo na Índia e China, sobre a questão nacional na Irlanda e Polônia, sobre a conhecida questão russa, e até América Latina fez contribuiçõies teóricas específicas.

Mas Quijano vai além, e tenta dar um contorno filosófico-metodológico para esse problema, dizendo que uma das maneiras de expressar o eurocentrismo era utilizar a categoria da “totalidade”. Vejamos os dois aspectos dessa abordagem. Primeiro, Quijano traça uma ligação entre a categoria filosófica e o eurocentrismo, dizendo que:

O eurocentrismo levou virtualmente todo o mundo a admitir que numa totalidade o todo tem absoluta primazia determinante sobre todas e cada uma das partes e que, portanto, há uma e só uma lógica que governa o comportamento do todo e de todas e cada uma das partes. As possíveis variantes do movimento de cada parte são secundárias, sem efeito sobre o todo e reconhecidas como particularidade de uma regra ou lógica geral do todo a que pertencem [13]

Chama a atenção como o argumento de Quijano tem que se basear em exagerar e exacerbar uma concepção. Sem querer fazer uma análise do discurso, a forma hiperbólica de se expressar é notável: a “absoluta primazia”. “uma e só uma lógica”, “do todos e de todas e cada uma das partes”, “variantes secundárias”, “sem efeitos”. Que enorme ênfase literária para transformar a categoria de totalidade, um dos eixos do pensamento dialético, em um manual positivista da história. É difícil para Quijano explicar se “o todo é determinante absoluto”, que leva a debater que o marxismo só via na Inglaterra a salvação histórica por ser o capitalismo mais avançado, o porquê a grande revolução proletária aconteceu num país que tinha como governo uma forma monárquica, o tzarismo, uma população em sua maioria esmagadora camponesa, e estava fora do “eixo ocidental” da Europa, a Rússia? E sim, Marx previu essa possibilidade e foi bastante entusiasta, não foi que ele olhou pra Rússia e disse: o capitalismo central está na Inglaterra, isso tem “primazia absoluta”, a questão russa é “secundária e sem efeito” e pouco importa as “particularidades”.

Poderíamos dar outros exemplos, mas queríamos apenas esclarecer um ponto que consideramos importante filosoficamente. Descrever a categoria de totalidade como eurocêntrica é no mínimo um anacronismo. Ou pelo menos teríamos que dizer que as raízes dessa noção antecedem em 2 mil anos a noção de “Europa”, quando Aristóteles, em sua A Política, disse que “o todo é necessariamente anterior à parte” [14].

Tanto é assim que o sociólogo busca depois mediar o ponto, reconhecendo a importância para se libertar de um “atomismo empirista” e de sua expressão contemporânea no chamado “pós-modernismo filosófico-social”. Daqui que entre a ideia “orgânica e sistemática” de totalidade e o empirismo atomístico aparece Quijano propondo um caminho intermediário, em que se reconhece que “as partes não são só partes”, de forma que “cada elemento de uma totalidade histórica é uma particularidade, e ao mesmo tempo, uma especificidade, e eventualmente, uma singularidade [15]”. Em seguida diz que a ideia de totalidade não é totalmente sem sentido, que existe um eixo comum, mas é preciso observar as descontinuidades. Em suma, parte de uma “devastadora” crítica ao eurocentrismo da categoria, para depois usar alguns dos elementos do debate dialético e dizer que a categoria tem sentido, só precisaria mediar melhor. Ou melhor dito, descreve a totalidade como uma regra “sistêmica e orgânica” da representação dos fenômenos, e depois critica o positivismo. Novamente, não é um grande mérito criar uma imagem positivista das coisas para depois ter o mérito de criticá-las, não? Em suma, much ado about nothing.

O termo “classe” é o problema? A análise do sujeito e o problema da estratégia

A essa altura já está claro que Quijano, em sua reflexão, parte do problema do eurocentrismo, mas coloca toda a ênfase na crítica ao materialismo histórico, bem ao sabor dos neoliberais da década de 1990 e 2000. Mas vale agora destacar que nesse processo o autor faz um movimento particular de crítica que é revelador: talvez a mais questionável de suas críticas, sobre a categoria de “classe social”, expresse bastante de suas inclinações estratégicas, ou seja, a certo vazio deixado pela sua crítica em torno das possibilidades de enfrentamento ao capitalismo e, poderíamos dizer, à chamada colonialidade do poder.

Isso porque Quijano argumenta que parte do eurocentrismo estaria em criar um sistema de classificações, que viria da biologia:

A ideia de “classe” foi introduzida nos estudos sobre a “natureza” ainda antes de ser sobre a “sociedade”. Foi o naturalista Linneo o primeiro a usá-la na sua famosa “classificação” botânica do século XVIII. Ele descobriu que era possível classificar as plantas segundo o número e as disposições dos estames das flores porque estas tendem a permanecer sem alterações no decurso da evolução [16]

É bem verdade que existe uma série de empreendimentos na sociologia (basta ver os famosos quadros do weberiano-positivista Parsons) de classificação meticulosa, sobretudo no funcionalismo, e que é passível de severas críticas. Mas o que isso tem a ver com a dialética, que parte de que não existe uma definição fixa para qualquer coisa, mas que deve se ater, pelo contrário, ao seu movimento?

A percepção de que a sociedade encontra grupos sociais, estamentos, castas, classes, com suas distintas definições, sem dúvida se apresentou em muitos momentos históricos, de diferentes formas. Mas Quijano em sua batalha por tornar o marxismo uma expressão do positivismo eurocêntrico quer encontrar na botânica do século XVIII as razões para utilizar-se o termo “classe social”. Ou seja, o autor está comparando um sistema de catalogação e classificação de milhares de espécies de plantas à análise da economia política e percepção de que a produção e reprodução da vida é feito por um setor, enquanto o outro explora a riqueza dessa produção, as classes sociais.

Daqui que Quijano chega ao ponto de apontar uma “marca naturalista, positivista e marxo-positivista da teoria das classes sociais”. Para nós é tão simplista essa argumentação que nos leva a perguntar, por que Quijano busca uma ênfase tão exacerbada contra o reconhecimento de um sujeito social da transformação e emancipação, a classe trabalhadora? Por que pensar sobre esse sujeito e compreendê-lo como classe já seria fonte de todos os pecados para esse sociólogo?

Sem mediações, o próprio autor revela sua posição ao dizer o seguinte, que serve quase como uma síntese de seu argumento:

Por agora, creio ser necessário indicar, apenas, em primeiro lugar, o meu ceticismo em relação à noção de “sujeito histórico”, porque remete, talvez inevitavelmente, para a herança hegeliana não de todo “invertida” no materialismo histórico. Ou seja, a um certo olhar teleológico da história a um “sujeito” orgânico ou sistêmico portador do movimento respectivo, orientado já numa direção determinada. Tal “sujeito” só pode existir, em qualquer caso, não como histórico, mas, pelo contrário, como metafísico [17],

Ou seja, todo o enquadramento de Quijano do marxismo a um positivismo, com um thelos histórico, com uma perspectiva “unilinear e unidirecional”, que cria, por conseguinte, soluções não-históricas, mas metafísicas, desemboca num ponto que queremos remarcar porque é decisivo: não é um detalhe a palavra eleita por Quijano, o que está em jogo é seu ceticismo em relação a noção de sujeito histórico.

Daqui que o que se revela é uma diferença de estratégia. Enquanto o marxismo está pensando as formas de organização da classe trabalhadora em âmbito internacional para enfrentar o capitalismo, Quijano expressa seu ceticismo com um sujeito histórico da transformação e propõe uma “virada epistemológica”, o que serve bastante aos propósitos acadêmicos e para a sua mal elaborada crítica ao “materialismo histórico”, mas expressa uma enorme debilidade e descrença de mudança diante dos problemas apontados.

O estudo da formação do capitalismo, a espoliação da América Latina e a consideração de que o racismo contra o negro e contra as populações indígenas é uma marca fundamental a ser estudada, é algo que já estava colocado explicita e detidamente por um grupo de marxistas algumas décadas antes das elaborações de Quijano - além de amplamente debatido na tradição marxista prévia, mas que são bem-vindas também em sua obra. Que exista nesse sentido uma certa divisão geográfica do mundo, ligada à divisão internacional do trabalho, que implica em formas ideológicas de políticas de opressão, é algo que sem dúvida devemos desenvolver em nossa reflexão, especialmente nos países da periferia do capitalismo.

Os limites da teoria decolonial vão se expressar quando justamente as fronteiras geográficas imaginárias tornam-se maiores que os embates de classe no interior dos países e internacionalmente. Isso porque agora no Peru de Quijano existe um grande processo de mobilização contra uma ditadura de um governo golpista, inclusive com setores trabalhadores e também indígenas à frente do processo, e temos que apoiar ativamente, aprender sobre o processo, refletir estrategicamente, pensando nas possibilidades da revolução social no século XXI. Mas ao mesmo tempo nos dias em que escrevo essas linhas está ocorrendo uma histórica greve geral na França, uma das potências imperialistas, com a classe trabalhadora entrando em cena em muitos dos setores estratégicos da sociedade e, vale dizer, com uma forte composição de imigrantes africanos em muitas dessas batalhas. Também não tenho dúvida que devemos apoiar com determinação esse processo, tirar lições, fortalecer internacionalmente – e seria de um reducionismo gritante tratar um processo como esse de forma diminuta por se dar na França, um país europeu.

O que está em jogo, levando em conta um contexto de imperialismo, é o enfrentamento entre o capital internacional e a classe trabalhadora internacional. Perder isso de vista acaba jogando estrategicamente contra a unificação da classe trabalhadora, que como dizia Marx, não tem pátria, nem fronteiras. O que não significa que a divisão territorial do trabalho do mundo tenha pouca importância, nem os aspectos raciais e étnicos envolvidos, pelo contrário, por tudo que já foi dito. Deixamos para terminar as palavras enfáticas de León Trótski a partir do México, América Latina, em 1938, compreendendo claramente essa questão:

O futuro da humanidade está inseparavelmente ligado ao destino da Índia, China, Indochina, América Latina e África. A simpatia ativa, a amizade, o apoio dos verdadeiros revolucionários, socialistas e democratas honestos está completamente ao lado desses povos – que constituem a maioria da humanidade – e não ao lado de seus opressores, não importa com que tipo de máscara política se apresentem [18]


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FOOTNOTES

[1Na compilação de textos Epistemologias do Sul, de Boaventura de Sousa Santos, Anibal Quijano desenvolve algumas de suas ideias contidas na reflexão desde o início dos anos 1990 no texto “Colonialidade de poder e classificação social”, que pode ser acessado em português e tomaremos como uma de nossas bases, por estar mais desenvolvida, nesse em particular, sua polêmica com o marxismo.

[2Aníbal Quijano. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs). Epistemologias do Sul. 2009

[3Anibal Quijano. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina, p. 108

[4Idem

[5Georg Breitman. Quando surgiu o preconceito contra o negro. São Paulo: Edições Iskra, p. 55

[6“O negro dócil é um mito. Escravos em navios escravistas se atiraram ao mar, fizeram longas greves de fome, atacaram as tripulações. Há registros de escravos que subjugaram a tripulação e tomaram controle do navio levando-o até o cais, um feito de extraordinária audácia revolucionária. Na Guiana Britânica, durante o século XVIII os negros se revoltaram, tomaram controle da colônia holandesa e a controlaram por anos. Eles se retiraram para o interior, forçaram os brancos a assinar um tratado de paz e permanecem livres até o dia de hoje. Todas as colônias do caribe, principalmente a Jamaica, São Domingos e Cuba, as maiores ilhas, tiveram seus quilombos, formados por negros audazes que haviam fugido para o interior e se organizado para defender seus direitos. Na Jamaica, o governo britânico, após tentar em vão extingui-los, aceitou sua existência através de tratados de paz, respeitados escrupulosamente por ambos os lados durante muitos anos, e então rompidos pela traição britânica. Na América, os negros organizaram cerca de 150 revoltas de destaque contra a escravidão. O único lugar onde os negros não se rebelaram é nos livros de historiadores capitalistas”. CLR James. A Revolução e o negro. São Paulo: Iskra, 2019, p. 20-21

[7Descreve da seguinte forma: “nos finais do século XIXI, como um produto da hibridação marxo-positivista no tardio Engels e nos teóricos da Social-Democracia europeia, especialmente alemã, com amplas e duradouras reverberações entre os socialistas de todo mundo. Segunda, a canonização da versão chamada marxismo-leninismo, imposta pelo despotismo burocrático estabelecido sob o stalinismo a partir de meados dos anos 1920. Finalmente, a nova hibridação desse materialismo histórico com o estruturalismo, especialmente francês, depois da Segunda Guerra Mundial”

[8Anibal Quijano. Colonialidade e classificação social, p. 89

[9Nos chama a atenção que o autor não se refira aos bolcheviques, a Gramsci e outros autores, e que coloque no mesmo bojo desde Engels até o estalinismo, chamando tudo de “materialismo histórico”. Vamos nos ater às suas críticas a obra de Marx, mas já partimos de alertar que é um mecanismo recorrente na academia confundir o marxismo com as barbaridades feitas pelo estalinismo na URSS.

[10Anibal Quijano. Colonialidade do poder e classificação social. In: Boaventura de Sousa Santos; Maria Paula Meneses (org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: alameda, 2009, p. 81

[11O livro de Kevin Anderson, “Marx nas margens”, tem sido uma obra de destaque ao resgatar esses aspectos. Ver também entrevista realizada por André Barbieri com o autor disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=Y-azugWUCds

[12“Marx manteve-se, é verdade, até quase final do seu trabalho, dentro da mesma perspectiva saintsimoniana, eurocêntrica, de uma sequência histórica unilinear e unidireccional de sociedades de classe. Contudo, como muito bem se sabe agora, ao ir-se familiarizando com as investigações históricas e com o debate político dos ‘populistas’ russos, percebeu que essas unidireccionalidade e unilinearidade deixavam fora da história outras experiências históricas decisivas. Chegou, assim, a ser consciente do eurocentrismo da sua perspectiva histórica. Mas não chegou a dar o salto epistemológico correspondente” Idem, p. 92

[13Idem, página 83

[14Aristóteles, Política (trad. António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes, Lisboa, Vega, 1998), p. 55

[15Grifos do autor. P. 86

[16Idem, p. 96

[17Idem, p. 102-103, grifos nossos.

[18Leon Trótski. O facismo e o mundo colonial. São Paulo: edições Iskra, 2009, p. 97
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Iuri Tonelo

Recife
Sociólogo e professor. Um dos editores do semanário teórico do Ideias de Esquerda, do portal Esquerda Diário. Autor dos livros "No entanto, ela se move: a crise de 2008 e a nova dinâmica do capitalismo" e "A crise capitalista e suas formas". Atualmente é pesquisador na PPGS-UFPE
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