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As “revelações” de Villas Bôas e as tensões no regime

Thiago Flamé

As “revelações” de Villas Bôas e as tensões no regime

Thiago Flamé

As revelações do General Villas Bôas não foram surpresa nenhuma. Qualquer olhar minimamente coerente sobre a realidade nacional já havia captado com nitidez o comprometimento do Alto Comando com o golpe de 2016 e o governo Bolsonaro. A pergunta que fica é, por que soprar esse braseiro agora, com uma espécie de confissão golpista?

O golpismo está no DNA do exército brasileiro. Durante o primeiro e segundo império era o imperador que exercia o chamado poder moderador. Independente das suas fundamentações constitucionais, na prática dava ao imperador um poder quase absoluto para arbitrar sobre as disputas no interior das classes dominantes da época – os senhores e traficantes de escravos. A garantia da ordem e da unidade nacional repousavam em última instância sobre o imperador. A partir da guerra do Paraguai, o exército vitorioso e temperado pelo massacre cometido contra o povo do Paraguai a serviço do Império inglês, passa a cumprir um papel cada vez mais preponderante, até que se incumbe da tarefa, em 1889, de por fim ao Império e fundar a república. É na década de trinta que o intervencionismo militar ganha ares de doutrina oficial. O General Góes Monteiro, peça chave no golpe de 1930 e do Estado Novo em 1937, cunhou a expressão: “é preciso fazer a política do exército e não política no exército”. Isso significava que o exército, unificado, deveria ter uma política ativa para garantir executivos fortes a nível federal e nos estados e garantir o desenvolvimento da infraestrutura e capacidade industrial necessárias à ação do exército.

Se auto-enganaram muitos democratas de gabinete acreditando que depois de 1988 o exército teria abandonado a cena política e adotado uma orientação mais “profissional”, deixando de lado seu intervencionismo tradicional. Em nenhum momento, no entanto, a máxima de Góes Monteiro, de que o exército deve fazer sua própria política, foi abandonada. Os militares garantiram seus interesses históricos na transição e na constituinte e depois se recolheram às casernas e aos bastidores. Mas sempre estiveram ali, com assessores do Alto Comando no Congresso, monitorando as crises políticas desde a queda de Collor, produzindo relatórios e participando da nomeação dos mais variados postos na máquina estatal.

Os interesses militares no Golpe de 2016

No período do lulismo, as forças armadas mantiveram uma posição de ambiguidade. Foram bastante agraciadas pelos governos petistas. A Marinha ganhou um peso enorme, inédito, com a descoberta do pré-sal. O projeto de submarino atômico com a França foi o maior projeto militar da história em valores. A Aeronáutica foi agraciada com a compra de caças, também da França. O exército também teve o seu, com a ocupação do Haiti pela ONU, com o comando nas mãos do exército brasileiro. Sobretudo o Haiti significou um campo de treinamento para os generais brasileiros. Ali treinaram as tropas para agir no policiamento direto da população civil e, mais do que isso, testaram um tipo de intervenção militar branca, praticamente governando o país através da tutela militar sobre o governo local. Mas, de conjunto, estavam vendo seu poder ser deslocado, com a marinha e a aeronáutica fortalecendo seus laços com as potências europeias.

O ano de 2015 marcou uma virada na política do exército, com a nomeação por Dilma do General Villas Bôas no comando da instituição, furando a fila de antiguidade no Alto Comando. Esse favorecimento ao General Villas Bôas tem que ser visto no contexto das concessões que Dilma tentou fazer à Lava Jato em 2015, cedendo para tentar parar a ofensiva destituinte. Cedeu o ministério da Fazenda para Joaquim Levy, do Bradesco. Cedeu na Petrobras, atendendo às exigências da Embaixada dos EUA. E nomeou Villas Bôas no exército.

O comando de Villas Bôas marcou uma acentuada viragem pró-EUA no exército. Uma série de convênios foram assinados já em 2015, entre eles a colaboração em um treinamento conjunto na tríplice fronteira com Peru e Colômbia, com a participação de militares dos EUA. Já existia como embrião a ideia que foi aplicada em 2019, em que a ajuda humanitária via fronteira brasileira foi chamada a jogar um papel chave na tentativa fracassada de golpe de Juan Guiado. A outra virada foi a intensificação da participação política dos generais, em especial do novo comandante, como fica evidente no seu livro. Nos bastidores, os generais, com Villas Bôas à cabeça, reforçaram a ação da Lava Jato.

Nessa virada, os generais perseguiam objetivos mais gerais e objetivos corporativos. Queriam bloquear qualquer mínimo avanço em reabrir as feridas da ditadura, mas também estabilizar o governo central e permitir a ofensiva que o mercado financeiro exigia. Mas buscavam também se recolocar como a força dominante entre as três armas, hegemonia que esteve ameaçada nos anos do lulismo. Um dos setores que a Lava Jato atacou com mais virulência, além da Petrobras, foi o programa nuclear. Apesar da menor cobertura da imprensa, o primeiro preso importante da operação foi o Almirante Othon, chefe do programa nuclear e figura de destaque na área desde a década de oitenta.

Quando Mourão, ainda sob o governo Dilma, foi em público falar das “aproximações sucessivas” que o Alto Comando havia discutido que poderiam, hipoteticamente em algum momento, chegar até a intervenção militar. As declarações obrigaram Villas Bôas a ir a público. O desmentido mais confirmou que negou os planos. Naquele momento, o general já declarava que dentro dessas aproximações sucessivas as eleições de 2018 seriam um momento crucial. Essa primeira aparição dos generais já revelava duas questões decisivas: o acordo golpista do Alto Comando, mas também os matizes e diferenças políticas no seu interior. Ali era visível que existia um setor – que Mourão vocalizou – que queria acelerar os acontecimentos e outro, a maioria representada por Villas Bôas, que atuava com maior prudência, mas com os mesmos objetivos.

Essas diferenças fomos vendo ao longo de 2018, com os que foram apoiadores de Bolsonaro desde o início, como Heleno, que adotou um discurso com traços fascistas colocando o centrão como o maior mal do país. Outros como Villas Bôas só embarcaram no projeto Bolsonaro quando viram que não tinham outra opção. Outros ainda, como os generais do governo Temer, Etchegoyen e Luna e Silva (esse que agora vai assumir a Petrobras) foram os artífices da intervenção federal no Rio de Janeiro, ensaiando um “modelo haitiano” de tutela militar sobre o governo civil no Rio de Janeiro.

O governo Bolsonaro, apesar de não ser desde sempre o favorito do Alto Comando, foi visto como uma oportunidade. As diferenças seguiram se expressando no governo Bolsonaro, mas os objetivos comuns estavam sendo alcançados. Os projetos da marinha com a França sofreram um forte revés, foram muito atrasados e passaram a ter um controle maior por parte do exército. Foi fechado o acordo para o uso da base de Alcântara pelos EUA, o que vai render bilhões aos cofres do exército. O centro de gravidade da estratégia de defesa foi deslocado novamente do Atlântico para a Amazônia, num alinhamento profundo à política dos EUA para a região (um alinhamento que vai para além dos interesses do governo Trump) e atendendo aos interesses específicos do exército. Loteando a máquina federal, o exército se converteu numa das maiores empreiteiras do país e aumentou seu orçamento mesmo em tempos de crise econômica e ajuste fiscal – para não falar da reforma da previdência dos militares, que foi um grande presente que os generais deram a si mesmos, em detrimento de cabos, soldados e sargentos.

Agora, quando as consequências na imagem do exército se fazem sentir, ressurgem em novas condições algumas das divergências anteriores. A Lava Jato foi enterrada e abandonada pelos seus próprios criadores no Partido Democrata e no aparato estatal dos EUA. A derrota de Trump e a vitória de Biden impõe uma mudança de rumos também para o exército brasileiro – seria o momento, uma vez cumprida a “missão” que os amos do norte lhe entregaram, de começar a retirada. Mas oficiais que estão recebendo dois salários, comprando bacalhau, picanha e conhaque para si mesmos, fortalecendo seu poder ao longo do território podem não aceitar perder os postos que conquistaram.

As disputas entre o Alto Comando e o STF

Já falamos do papel moderador no exército ao longo do século XX e como ele se recolheu a partir da década de oitenta. Nesse recolhimento do exército um novo poder foi ocupando esse espaço, até se tornar a peça chave do golpe em 2016 e da política nacional desde então: o STF e a justiça.

Em palestra de 2014, e depois em várias entrevistas, o próprio ministro do STF, Dias Toffoli, abordou com bastante nitidez essas questões, ao afirmar que até 1985 o Exército cumpriu aquele papel de poder moderador, que teria herdado do império. E que o herdeiro desse papel do Exército seria o Judiciário, em especial o STF. Nas palavras de Toffoli: “O Supremo Tribunal Federal foi criado como herdeiro do poder moderador”.

Esse curso do STF causa divergências no interior do exército. Por mais golpista que seja o posicionamento de Villas Bôas no comando do exército, ainda expressa uma política de manter o máximo possível o exército como um segundo violino do bonapartismo institucional, encabeçado pela corte suprema, pelos procuradores e… por alguns juízes de primeira instância. Já a intervenção no Rio de Janeiro e, mais ainda, assumir a casa civil do governo Bolsonaro mostram já uma situação onde o exército assume o papel principal. O ano de 2020 foi um ano de extrema tensão entre STF e o Alto Comando. Ao determinar que governadores e prefeitos poderiam decidir pelas medidas de quarentena, o STF desagradou fortemente o exército, que vê nisso uma descentralização com potencial disruptivo do pacto federativo.

Se evidenciou uma disputa entre dois poderes para cumprir o papel de poder moderador, por ver quem seria a instituição bonapartista predominante.

As tensões abertas por Villas Bôas e a questão Lula

Não chegamos, no momento atual, próximos do grau de tensão de 2020, quando inclusive generais foram convocados pelo STF a depor. Mas o livro de Villas Bôas e o embate verbal que se seguiu entre o general e o ministro Fachin indicam que a situação pode se agravar.

Junto com as revelações de Villas Bôas, Bolsonaro iniciou trocas importantes no seu governo. Nomeou o general Luna e Silva para a Petrobras, dando um novo protagonismo para o ministro da defesa de Temer, que desde o fim do governo Temer estava nas sombras. Nomeou Paulo Skaf e o general Heleno para o Conselho da República – que é quem avalia sobre intervenções militares e zela pelo equilíbrio entre os poderes da república. E promete mais alterações em postos chave para a semana que vai entrar.

Podemos traçar em geral dois cenários do que representam e de como podem evoluir no próximo período essas disputas. A prisão de Daniel Silveira é um símbolo da defensiva das forças próto-fascistas que sustentam, pela direita, o governo Bolsonaro. Os milicianos, o mago da Virgínia, os generais anti-centrão perderam espaço e poder, Bolsonaro se apoia mais profundamente no centrão de Lira, na articulação política dos ministros generais. Podemos ler a ação de Villas Bôas no sentido de parar esse processo, constranger e humilhar o STF emparedar o Congresso. A prisão de Daniel Silveira seria um revés desse curso, a nomeação de Luna e Silva e Heleno tentativas de reequilibrar a balança. Nessa hipótese, podemos esperar um agravamento da crise dos próximos dias e semanas e uma contra ofensiva de generais e Bolsonaro depois da prisão de Daniel Silveira.

Porém, uma outra leitura é possível. Com a posse da Biden e o avanço da ofensiva neoliberal, setores do Alto Comando podem estar tentado um curso de retirada de posições na política e de normalização democrática do regime político pós-golpe e encontrando resistência. A confissão de Villas Bôas, envolvendo na conspiração todo o alto comando, poderia ser uma forma de constranger seus pares a aceitar dar alguns passos atrás e criar as condições políticas para Lula ser reabilitado, talvez passando por algum acordo que envolva ele não se lançar como candidato em 2022. Nessa hipótese a prisão de Daniel Silveira seria um passo a mais para reduzir o poder do bolsonarismo mais extremado, que está na defensiva. Se for isso, veremos alguma reação de Bolsonaro, como a nomeação de Heleno, para conservar os generais mais ligados a si e os milicianos com algum poder no planalto, alguma gritaria e retórica para esconder esse revés interno, mas a crise tenderá a se amainar daqui em diante.

Seja como for, os futuros desdobramentos vão revelar o que está por trás dessas ações de Villas Bôas. Em qualquer dos cenários, a classe trabalhadora e a juventude não têm nada a ganhar apoiando uma ala contra a outra. É lamentável, por exemplo, a postura da esquerda de aplaudir a ação do STF, amparado nos seus poderes bonapartistas e numa lei da ditadura militar. Mantendo completa independência das duas alas, seja qual for a disputa em curso, a classe trabalhadora pode aproveitar essas brechas para se colocar. As mobilizações na Petrobras já são uma mostra do faro certeiro da classe trabalhadora, que ao sentir a crise entre os de cima, se coloca em movimento. Seria extremamente significativo se a juventude e outros setores da classe trabalhadora seguissem pelo mesmo caminho.


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Thiago Flamé

São Paulo
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