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Análise Nacional | Atualizações da situação nacional do Brasil em 2023

Neste artigo expressamos a síntese das discussões feitas pelo Comitê Central do MRT, sobre as atualizações da situação política nacional. Lula está no comando do país há um pouco mais de um mês, e nesse ínterim uma série de acontecimentos, nacionais e internacionais, mostraram novas configurações da situação política e na correlação de forças no país. As reacionárias ações do dia 8, empreendidas por setores bolsonaristas e de extrema-direita, tiveram significados e resultados importantes, com transcendência internacional.

Danilo ParisEditor de política nacional e professor de Sociologia

quarta-feira 8 de fevereiro de 2023 | Edição do dia

Um novo cenário estratégico que havia começado a se desenhar após a vitória eleitoral de Lula ganhou novos contornos, com setores que se fortaleceram e se debilitaram dentro do regime político. Nesse contexto, tornou-se pública a terrível situação dos Yanomami, com centenas de casos de mortes, desnutrição e doenças infecciosas, um fato que se liga a elementos estruturais do país. Buscando apresentar um panorama e alguns apontamentos sobre vários desses temas, escrevemos esse artigo que atualiza definições e caracterizações da situação política nacional.

Nas relações internacionais Lula vêm se postulando como uma figura de peso, em pouco tempo, já emitiu sinalizações e posicionamentos em questões de relevo na geopolítica internacional, em especial está se propondo a ser um mediador do conflito da Ucrânia. Ainda que a resolução efetiva envolve fatores complexos, o importante é notar as pretensões, a partir do principal foco de conflito no mundo.

Completado o primeiro mês do novo governo, é possível identificar configurações importantes para análise do cenário estratégico no país. Os primeiros contornos são de um governo eleito através de uma Frente Ampla, que envolveu o apoio de diversos setores burgueses, da direita, e inclusive do capital financeiro, o que na composição do governo se ampliou ainda mais, ao mesmo tempo que conta com a integração direta de organizações de massas ao próprio governo, como é o caso das burocracias sindicais. Ninguém menos do que Luiz Marinho, figura forte da CUT, está no Ministério do Trabalho, e as centrais sindicais foram recebidas por Lula, em grande evento organizado em Brasília. São elementos de frente popular [1], que buscam submeter a classe trabalhadora aos grandes interesses capitalistas, nacionais e estrangeiros.

Através dessa configuração, buscam dar uma resposta à crise orgânica, ou seja, à crise de hegemonia que atravessa todas as instituições do regime, projeto que encontra inúmeras dificuldades de se concretizar, tanto do ponto de vista econômico, como pela persistência de uma base social que apoia a extrema-direita. Como característica muito importante, tudo isso ocorre em meio a um regime com bonapartismos em disputa.

Situação econômica

Por ora, as previsões das tendências econômicas feitas ano passado não apresentaram mudanças qualitativas. Algumas oscilações aparecem nos relatórios econômicos, como a subida de três décimos nas previsões de inflação (de 5,48% para 5,74%) segundo o último Boletim Focus. O Banco Mundial fez uma projeção para o PIB brasileiro de crescimento de 0,8% em 2023. No entanto, há muitas variáveis que podem alterar essas projeções. A esperada elevação da demanda chinesa, fruto da mudança na política de Covid Zero, pode gerar uma elevação da exportação de produtos importantes para o Brasil, como o minério de ferro e a soja. Por outro lado, a permanente guerra na Ucrânia, e os seus impactos econômicos é um fator de forte instabilidade e que pode produzir mudanças abruptas. Ao mesmo tempo, novas elevações nas taxas de juros dos EUA não estão descartadas, o que pode gerar alterações nos fluxos de capitais internacionais, e que podem impactar economicamente o Brasil.

Ao mesmo tempo, a questão econômica atravessa disputas e tensões políticas, que se relacionam a temas nacionais e internacionais. O governo Lula-Alckmin veio apostando em uma política internacional com uma retórica que destaca a proteção do bioma e dos povos indígenas brasileiros. E essa importância política não é sem motivos. No ano passado, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução que proíbe a importação em toda a União Europeia de produtos vinculados a desmatamentos ocorridos a partir de dezembro de 2019. A resolução prevê atingir esses produtos, independente do fato dos desmatamentos serem considerados legais ou ilegais em seus países de origem. Isso pode impactar todos um setor econômico, em especial do agronegócio, de muita importância, como carne, soja, café e entre outros.

Além dessa questão, acordos de preservação e recursos via crédito de carbono também podem ser uma fonte de recursos que o governo Lula buscará manejar. A Alemanha já prometeu destinar R$ 1,1 bilhão de reais, apenas nos primeiros cem dias de governo. Dinamarca, França entre outros países, também prometem contribuir com fundos com os mesmos objetivos, como o Fundo Amazônia.

A importância do tema da agenda ambiental, também se cruza com a localização que Lula busca construir com os imperialismos europeus. Ao mesmo tempo que pretende manter relações amistosas com EUA e China, busca na Europa aliados que possam criar acordos financeiros que tragam maiores fluxos internacionais de capitais, em uma espécie de “multilateralismo” econômico. Além disso, Lula busca atuar regionalmente na América-Latina, para fortalecer uma atuação em comum do Mercosul, e assim, barganhar melhores acordos internacionais. Lula busca aproveitar o prestígio que possui como governo com melhores relações no estrangeiro para alinhar os acordos dos países latinoamericanos aos interesses brasileiros, como é o caso do Acordo Mercosul-UE, que seria a maior zona de livre comércio do mundo. Da mesma maneira, busca que os países latinoamericanos lidem com a China de maneira unitária, especialmente para evitar competição com o agronegócio brasileiro, principal exportador regional de commodities para a China. Por exemplo, preocupa o governo as negociações de livre-comércio unilaterais entre China e Uruguai, e Lula promoveu um encontro com o presidente uruguaio Lacalle Pou, para evitar esse cenário. É importante remarcar que essa abordagem via Mercosul é um aceno de Lula para ganhar os favores do agro brasileiro, ainda muito ligado ao bolsonarismo.

Ainda que do ponto da política econômica Lula ressalte que pretende desenvolver medidas de "responsabilidade social", seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad, vem sinalizando medidas de cortes e controle de gastos, ou seja, de austeridade. Foi a sua primeira proposta como ministro, anunciando um pacote de cortes que segundo sua equipe econômica, se todas as medidas forem totalmente bem-sucedidas, seria possível transformar um déficit equivalente a 2,2% do PIB em um superávit de R$ 11 bilhões. A poderosa Financial Times, revista do mercado financeiro, foi elogiosa ao ministro, saudando entusiasticamente esse plano. Não é fortuito que Haddad tenha priorizado duas agendas para o primeiro semestre. A primeira delas a reforma fiscal e a segunda a chamada "nova âncora fiscal", que nada mais é do que uma nova forma de controle de gastos para que ninguém tenha dúvidas que o Brasil irá cumprir com rigor os compromissos e pagamentos da dívida pública, que drena grandes volumes do orçamento nacional.

Ao mesmo tempo, Lula defende um plano de investimentos, mas por ora sem apresentar um plano concreto. Há especulações na mídia sobre o “PAC do Lula”, em referência ao programa de aceleração do crescimento, que envolveria terminar obras inacabadas, investimento em rodovias, e ampliação do Minha Casa, Minhas Vida, em especial para os setores da primeira faixa (que têm menor renda). É nesse contexto que se dá os embates entre Lula e o presidente do Banco Central, Campos Netto. Lula quer a diminuição dos juros e uma meta da inflação maior para ter um gasto relativo maior, e por essa via dar alguma dinamicidade maior para a economia. A magnitude e alcance que projetos assim podem se efetivar vai depender de muitos fatores, como acordos com o primo legislativo, além de setores da burguesia internacional e nacional.

O papel internacional de Lula

Em meio a tudo isso, ocorreu em Buenos Aires o encontro de cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). Nele, Lula se postulou como uma forte liderança que terá importância nas contendas e disputas internacionais. Com efeito, podemos dizer que Lula já se tornou, pela experiência e habilidade política, a principal liderança da América Latina. A tal ponto que já conseguiu reunião particular com Biden, provavelmente irá se encontrar com Xi Jinping em março, e provocou na União Europeia uma reorganização rápida de planos para selar um acordo Mercosul-UE (paralisado em 2019) que seria negociado pessoalmente por ninguém menos que o chanceler alemão, Olaf Scholz. Isso reconfigura o tabuleiro regional, uma vez que dá lugar ao papel chave do Brasil como negociador privilegiado, depois de quatro anos de retração do Brasil no tabuleiro internacional com Bolsonaro.

Isso é importante para entender que os modos de submissão à política estadunidense e ocidental se dão de maneiras distintas entre os governos. O discurso de Lula joga com elementos de “autonomia regional” e uma postura de relativa neutralidade diante dos conflitos geopolíticos, daí sua proposta de buscar ser um mediador para a resolução da guerra na Ucrânia. Além disso, tem uma participação na configuração das Américas que é distinta da de Bolsonaro. Enquanto Bolsonaro participava das sanções a Cuba e foi um provocador direto na tentativa de golpe de Trump contra a Venezuela em 2019, Lula discursou na CELAC em nome de reativar a embaixada brasileira em Caracas e terminar o bloqueio a Cuba. No Uruguai, influenciou o governo Lacalle Pou a não acelerar acordos unilaterais com a China, o que joga a favor dos interesses de Washington e Bruxelas. Na Argentina, a presença de Lula foi disputada pelas frações em luta do peronismo, deixando mais nítido seu apoio à presidência de Alberto Fernández e diminuindo a importância de Cristina Kirchner (foi uma crise notada por toda a imprensa argentina que Lula e Cristina não se encontraram, um símbolo das dificuldades do kirchnerismo). Da proposta de financiamento pelo BNDES da construção de um gasoduto com a Argentina, com gás extraído de reservas amplamente questionadas por indígenas e ambientalistas (na região neuquina de Vaca Muerta), à proposta de uma moeda em comum para transações internacionais do Mercosul (ainda que o Brasil tenha “congelado” o afã do governo argentino, e deixado claro que não é prioridade), chegando à legitimação do governo golpista, com direito a fornecimento de armas e munições para a repressão, de Dina Boluarte, Lula mostrou como seu cacife internacional não só segue forte, como ganhou ainda mais relevo depois do que ocorreu no 8 de janeiro.

O papel de liderança regional que Lula rapidamente assumiu tem efeitos sobre nossa discussão política, já que o Brasil se torna responsável em nova escala pelas movimentações na América Latina. Setores da esfera petista, como Breno Altman, saudaram como “autonomia do imperialismo” o fato de Lula ter negado enviar munições para tanques alemães que seriam mandados para a guerra da Ucrânia. Entretanto, e enquanto Lula denunciava as pretensões golpistas dessa base reacionária da extrema-direita, dava sustentação e apoio ao governo golpista de Dina Boluarte do Peru, respaldado pelo mesmo imperialismo dos EUA. Depois do encontro, está fechando um acordo de vendas de blindados para Argentina, que serão usados para a repressão aos trabalhadores e ao povo pobre. Na própria CELAC, o chanceler de Lula, Mauro Vieira, encontrou-se com a chanceler peruana, Ana Cecilia Gervasi, a fim de estreitar relações entre os países. Não suficiente, convidou Boluarte para sediar um encontro com Lula em Belém. Isso em meio a uma repressão estatal selvagem, que conta com auxílio de cartuchos vendidos pelo Brasil, depois que o governo Lula autorizou o envio do pedido do Estado peruano de reabastecimento de gás lacrimogêneo e munições em 10 de janeiro. Uma atuação reacionária do governo Lula-Alckmin, que buscou legitimar um governo golpista desde sua posse. Mesmo após o assassinato de quase 60 manifestantes, segue mostrando seu comprometimento com setores das classes dominantes e do próprio imperialismo dos EUA para a manutenção do governo golpista no Peru. Não é casual que a nova embaixadora dos EUA disse que "Biden vê Lula como líder global".

Lembremos que para a teoria neorreformista, o antiimperialismo fica em segundo plano diante da suposta hipótese de conseguir demandas mínimas a nível nacional (no caso do Brasil, a esperança de que Lula reverta algumas das atrocidades de Bolsonaro no plano dos direitos democráticos). O PSOL na prática é parte do governo Lula, inclusive com ministério e se cala completamente diante do que se passa no Peru, e mesmo correntes como o MES (que levanta o apoio “à luta democrática no Peru”,) tem todo o cuidado para não atrapalhar as relações do partido com o governo Lula. O resultado de um pensamento político dessa natureza é separar a luta de classes à escala nacional da luta de classes internacional, em especial dos povos oprimidos pelo imperialismo. Não é possível conceber qualquer forma de “antiimperialismo” apoiando a direita assassina latinoamericana respaldada por Washington.

O 8 de janeiro

Para analisar a situação política concreta do país, é incontornável uma análise detida do 8 de janeiro, pois foi um evento que modificou a situação política no país. Como estamos diante do primeiro mês do novo governo, muitas questões ainda estão se desenvolvendo, e portanto ainda precisam ser analisadas posteriormente. Entre várias delas, a relação de Lula com o parlamento. Mesmo nesse caso, os eventos do 8 também serviram para uma reaproximação maior entre Lula e Lira, ainda que submetido a barganha de cargos e do controle do orçamento, como não poderia deixar de ser.

Segundo os órgãos de governo, 8 mil pessoas, com um contingente oriundo de diversas cidades das mais diferentes regiões do país, promoveram invasões e depredações no interior dos prédios dos três poderes.

A facilidade como entraram no Congresso Nacional, no Palácio do Planalto e no plenário do STF, de imediato, levantou o debate sobre a participação das forças de segurança e militares. Afinal, mobilizações muito maiores, protagonizadas por trabalhadores e movimentos sociais jamais estiveram próximas de algo parecido sem que ocorresse uma violenta reação do Estado.

Duas semanas após às ações, o comandante do exército foi substituído, alimentando a tese de que o que teria ocorrido seria uma tentativa frustrada de um golpe militar. O próprio Lula, na primeira entrevista exclusiva após o dia 8, afirmou que teve “a impressão que era o começo de um golpe de Estado”. Diante das enormes variedades de análises, muitas delas que possuem objetivos políticos claros, buscaremos apresentar uma interpretação dos acontecimentos, e seus impactos na correlação de forças no país.

As reações internacionais

A reação internacional aos acontecimentos foi imediata e enérgica. Condenaram as ações não apenas aqueles países considerados mais alinhados ao governo Lula, como praticamente toda a América Latina, além de poderosos imperialistas como Biden e Macron, mas até variantes da extrema-direita, como Giorgia Meloni na Itália e Benjamin Netanyahu em Israel.

As relações orgânicas entre as Forças Armadas brasileiras e o imperialismo dos EUA é um elemento estrutural para compreensão da natureza do que ocorreu no dia. Como dito, os EUA não só condenaram as ações, como emitiram inúmeros sinais de advertência prévios aos acontecimentos, antes mesmo do processo eleitoral. Uma diferença declarada com a ala bolsonarista das Forças Armadas, em função não de um apreço por valores democráticos, mas para evitar que um declarado aliado de Trump pudesse se fortalecer no país mais importante do Cone Sul. Com um veto de Washington, não é possível considerar que o Alto Comando empreenderia uma aventura como a que ocorreu. Mais do que isso, em eventos dessa natureza, e mais ainda, para a interpretação da política do Alto Comando, é importante considerar alguns fatos para buscar deduzir quais eram as posições em disputa. Vamos a eles.

O papel do Alto Comando

Mourão, em seu último dia como vice-presidente, aproveitou a ida antecipada de Bolsonaro para os EUA para emitir uma declaração pública, na qual deixou expresso uma clara diferença com a política até então levada pelo ex-presidente. A declaração, que enfureceu a família Bolsonaro, continha a seguinte afirmação:

“Lideranças que deveriam tranquilizar e unir a nação em torno de um projeto de país deixaram com que o silêncio ou o protagonismo inoportuno e deletério criasse um clima de caos e de desagregação social e de forma irresponsável deixaram que as Forças Armadas de todos os brasileiros pagassem a conta, para alguns por inação e para outros por fomentar um pretenso golpe.”

Sinteticamente, Mourão culpa Bolsonaro por fomentar um “clima de caos e desagregação social”, deixando a bomba no colo das Forças Armadas. É muito difícil conceber que uma declaração com essa importância, proferida por um general e transmitida em cadeia nacional, ainda com o crachá de “presidente em exercício”, não tenha sido articulada, ou como mínimo, aprovada pelo Alto Comando. Um sinal evidente de maior diferenciação entre o Alto Comando e Bolsonaro.

E a contenda entre eles segue expressando sinais públicos. Carlos Bolsonaro, o filho mais próximo do pai e que controla suas redes sociais, publicou em seu perfil pessoal a seguinte mensagem : “Tenho vergonha do que se transformou a essência do alto escalão das Forças Armadas do Brasil de primeiro de janeiro de 2023 em diante”.

Como outro pólo nesse conflito, é provável que Lula siga encontrando dificuldades e tensões entre os militares, as declarações de Etchegoyen e os tuítes do Mourão, podem sinalizar que os militares vão buscar construir uma “oposição institucional” ao governo Lula - ao menos enquanto não houver uma mudança na situação - isso é, sem apelar recorrentemente a ameaças ou bravatas golpistas, mas disputando por seu programa econômico, político e cultural a partir de vozes da reserva, como por exemplo parece ser o papel que Mourão se dispõe a cumprir. Esse setor, tão logo o governo encontre algum desgaste ou entre em alguma crise maior, pode voltar a atuar mais ofensivamente, seja atuando com seu papel de tutela, ou para fortalecer outras variantes mais próximas ao seu programa, como Tarcísio de Freitas ou Romeu Zema.

Por esses elementos, não é possível interpretar como uma ação que foi executada pelo Alto Comando, ao estilo de uma tentativa de “golpe militar” clássico. Se assim fosse estaríamos diante de outra correlação de forças completamente diferente. Do mesmo modo, seria equivocado não considerar que o Alto Comando tinha relatórios de inteligência sobre o que poderia ocorrer no dia 8. Desse modo, é possível que no cálculo inicial dos generais, fosse esperada uma ação com menos danos e repercussão. Isso é, um evento com distúrbios e enfrentamentos com as forças de segurança, mas que se mantivesse em um relativo controle. Fosse um cenário assim o Alto Comando poderia manter uma postura dúbia, querendo se apresentar como uma instituição necessária para a tutela da situação de polarização política. No entanto, como se viu, as cenas da invasão e atuação dessa base da extrema-direita no interior do prédio dos três poderes tiveram um impacto muito importante, porque ocorreu por fora de uma correlação de forças concreta, e isso trouxe consequências para o conjunto das Forças Armadas. Essa constatação, evidentemente, não significa considerar que seja um Comando mais “legalista” ou mais distante das ideias da extrema-direita. Menos ainda significa desresponsabilizar politicamente as Forças Armadas dos acontecimentos. Elas foram fundamentais para a ascensão e manutenção de Bolsonaro no poder, por atacar direitos elementares, e por seguir fortalecendo uma base social reacionária. Por isso, não está em questão que o Alto Comando é um dos principais responsáveis pelo fortalecimento e manutenção do bolsonarismo no Brasil, mas, de buscar as raízes e a natureza dos eventos que se desenvolveram no dia 8.

As movimentações bolsonaristas

Em eventos como esse, é possível que nunca venha a público toda a articulação e envolvidos, uma vez que acordos e negociações são feitos nos bastidores, e parte dos seus resultados pode ser a preservação de alguns desses responsáveis. No entanto, algumas conclusões são possíveis diante da realidade. Uma primeira constatação é que, para que a ação se efetivasse, da forma como ocorreu, é evidente e inegável que houve apoio e articulação de setores vinculados à efetivos militares e à segurança pública. Caso contrário, o contingente de alguns milhares seria facilmente obstruído, como inúmeras vezes ocorreu em manifestações em Brasília.

A estreita relação política de setores de baixas e médias patentes das Forças Armadas com o bolsonarismo é um fator fundamental para a análise dos cálculos do Alto Comando. Fenômenos que não são restritos apenas nas Forças Armadas, mas também nas polícias. É sintomática que, empesquisa feita pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 40% do policias entrevistados considerasse as demandas do que ocorreu no dia 8 de janeiro como legítimas, mesmo após toda a repercussão negativa. Isso é uma grande questão para o Alto Comando. Houve expressões de insubordinação, e isso é uma grande preocupação, que envolve problemas de Estado. Ainda que a situação não tenha evoluído para um descontrole, do ponto de vista de médio e longo prazo, são tensões que os comandos da política e do exército não querem conter.

Novas imagens divulgadas recentemente mostram a Tropa de Choque do DF desfazendo a barreira que haviam montado previamente para bloquear a passagem para o Congresso e para o STF, o que confirma o que era óbvio. Pelas cenas, fica evidente que se a tropa não deixasse as pessoas passarem, a situação teria transcorrido de forma muito diferente. Por um lado, isso expressa uma característica que não é uma novidade: que as bases policiais são simpatizantes da extrema-direita, e isso é um elemento que gera um nível identidade, e portanto, de colaboração. Mas ao mesmo tempo, para uma movimentação de “liberação” do caminho, como se vê nas imagens, sem dúvida foi necessário alguma ação do próprio comando. Isso aponta para um nível de articulação e comprometimento de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Bolsonaro e ex-secretário de segurança do DF, e do próprio comando da Polícia Militar.

O seu secretário executivo, que o substituiu enquanto ele estava de “férias” em Orlando, declarou que foi Torres quem definiu o tamanho do contingente e atuação das forças policiais no dia 8. Também declarou que Torres não o "apresentou aos comandantes das forças policiais" antes de viajar aos Estados Unidos, na mesma cidade que o próprio Bolsonaro. Não bastasse isso, após a expedição de seu mandato de prisão, foi encontrado na casa de Torres um documento com o rascunho de um decreto de estado de defesa para ser cumprido contra o Tribunal Superior Eleitoral, após a divulgação dos resultados eleitorais.

Esses elementos também podem indicar um envolvimento do próprio Bolsonaro. Após o dia 8, Bolsonaro teve que dar uma declaração dúbia, condenando os atos de “vandalismo”, no entanto comparando-os com os atos da esquerda. Essa declaração já é um produto da nova correlação de forças que se produziu após a ação. Somado a isso, frente à associação evidente, a declaração também tem objetivos de autopreservação frente a uma ofensiva maior do regime político.

Para que o 8 fosse possível, também foi necessário apoio financeiro e logístico. Não apenas pela saída de uma centena de ônibus rumo à capital federal, como também todos os recursos utilizados para a manutenção dos acampamentos. Ao que tudo indica, diversos setores econômicos ligados a Bolsonaro exerceram papel ativo para o financiamento dessas ações. Setores ligados ao garimpo, extrativismo, uma ala do agronegócio, varejistas intermediários, pequenos e médios empresários, entre outros.

Recentemente veio à tona a denúncia do senador Marcos Do Val sobre possíveis articulações golpistas entre Bolsonaro e Daniel Silveira. O senador já mudou três vezes suas versões, ora comprometendo mais Bolsonaro, ora retirando sua responsabilidade. Até mesmo o envolvimento da GSI e de órgãos de espionagem de Estado entraram no roteiro das narrativas do Senador. Até onde essa nova crise pode levar não está claro, com a possibilidade de processo mais ofensivo contra Bolsonaro, que possa envolver a retirada dos seus direitos políticos e até mesmo prisão, como especulam setores da mídia. Sobre essa última possibilidade, não é um movimento simples, nem imune a riscos. Tudo irá perpassar um cálculo político, levando em consideração que Bolsonaro conseguiu, nas últimas eleições, 49% dos votos e ainda guarda uma reserva importante de apoiadores no Brasil. O pedido de extradição de Bolsonaro feito por Senadores americanos a Biden, com o argumento de colaborar nas investigações contra o ex-presidente, incrementam essa crise. Há também especulações de que a movimentação de Marcos do Val é proposital do bolsonarismo para impor uma CPI e colocar Alexandre de Moraes sob suspeita.

Esses fatos apontam em um sentido de que essa base social pode voltar a encabeçar outras ações, em momentos de mudanças conjunturais do país. Ainda que ações assim estejam contidas na conjuntura, Bolsonaro irá atuar para ser a figura que represente essa camada radicalizada e opositora, e poderá estar por trás de articulações políticas para mantê-la com algum nível de coesão.

As duas almas do bolsonarismo e o programa militar

Assim, o 8 de janeiro foi uma expressão das duas almas do bolsonarismo. Por um lado, se expressou sua base social, conectada com extratos militares médios e baixos (além da reserva e conexões com alto mando), frações burguesas como alas do agronegócio, além de parcelas de uma pequena burguesia reacionária. Um setor que pressiona permanentemente para a radicalização, e que pode continuar fazendo ações desse tipo, ainda que esteja muito mais debilitado que em momentos anteriores. Por outro, mostrou o comprometimento com forças no interior do regime, que atuaram como facilitadores da ação (como parece ser a atuação de Torres e do próprio Bolsonaro), ou buscando não se indispor com essa base social (como é o caso das Forças Armadas). Nesse último caso, foi um alto preço pago pelas Forças Armadas, que se debilitaram na conjuntura, uma vez que estavam muito comprometidos com essa base que realizou as ações do dia 8. Isto é, para manter seu peso como “poder moderador” frente a um país polarizado após as eleições, buscou preservar uma política que lançava dúvidas sobre o processo eleitoral, e encontrou no polo mais radicalizado de sua base o vetor que atuou por fora da correlação de forças e acabou por fortalecer seus adversários e competidores.

Isso quer dizer que o projeto dos militares e o bolsonarismo não são coisas idênticas e indissociáveis. Para compreender um pouco dos objetivos políticos dos militares, é importante uma passada de vista sobre o programa de país apresentado pelos Institutos Villas Bôas, Sagres e Federalista denominado “Projeto de Nação, O Brasil em 2035. Em síntese é o projeto de nação dos militares até 2035, com um programa ultra liberal na economia, e repleto de regionalismos culturais e nos costumes. Bolsonaro foi sustentado pelos militares, porque era quem mais se aproximava da efetividade desse programa. Antes de sua ascensão, e sem a radicalização política impulsionada pelas elites nacionais, o modus operandi e os interlocutores políticos eram outros. Do mesmo modo, a identificação entre militares e Bolsonaro não é permanente nem sem contradições, menos ainda imune a transformações. Os pontos de contato entre Alto Comando e bolsonarismo dão indícios de estresses e conflitos, e não é descartado que na evolução dos acontecimentos ocorra uma separação maior, mas tampouco podemos descartar reaproximações e novos arranjos a depender da dinâmica política nacional.

O significado na troca do comando do exército

Nesse contexto, porque Lula trocou o comando do exército e qual o seu significado? Pela complexidade dos acontecimentos, é incontornável uma apreciação factual dos acontecimentos, não pela sua importância em si mesmo, mas para desenvolver hipóteses sobre a relação de Lula com o Alto Comando.

Além do dia 8, dois eventos parecem ter sido os desencadeadores dessa troca. O primeiro, o impedimento da prisão dos setores que estavam acampados em frente ao quartel militar de Brasília, logo após as ações do 8, e o segundo, a resistência em cancelar a nomeação de um braço direito e ajudante de ordens de Bolsonaro do Comando de um Batalhão em Goiânia, o chamado Coronel Cid. A hipótese mais provável é que o segundo foi a gota d’água para troca no comando do exército.

Em relação ao primeiro, foi filmado e repercutido na mídia os blindados do exército impedindo a entrada do batalhão da PM, já comandada pelo interventor federal nomeado por Lula, Ricardo Cappelli. No entanto, há motivos para acreditar que apesar da tentativa de prisão imediata, chegou-se a um acordo, não sem alguma dose de tensão, para que ocorresse apenas no dia seguinte, e assim evitar a prisão de membros da chamada “família militar". Até mesmo a esposa de Villas Bôas estava em um deles, daí a necessidade de evitar prisões que envolvessem figuras assim, que poderiam produzir crises maiores.

O que nos leva então ao segundo episódio que envolve o tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid (Coronel Cid). Além de íntimo colaborador do ex-presidente, ele agora é alvo de investigações sobre movimentações financeiras do próprio Bolsonaro, portanto uma indicação altamente questionável para assumir o cargo. Foi essa figura que, no ano passado, foi nomeada para comandar o 1º Batalhão de Ações de Comandos (BAC), em Goiânia, uma unidade de elite da Força Terrestre, localizada a poucas horas de Brasília. Com uma importância militar relevante, reverter a nomeação de Cid para comandar um batalhão de forças especiais era uma questão importante não apenas para Lula, mas para muitos setores do regime político. Frente a resistência do ex-comandante-geral, general Julio Cesar de Arruda, em não nomear Cid, a saída encontrada foi a nomeação de um novo comandante, o general Tomás Ribeiro Paiva. Após o novo comandante assumir, o próprio Cid enviou uma carta solicitando que fosse adiada sua nomeação, e o ministro da Defesa, José Múcio, afirmou que ele não será nomeado a outro cargo enquanto as investigações estiverem ocorrendo.

Além desses fatores, o mais importante deles, é que era necessário um sinal político que precisava ser dado. Se por um lado, como fundamentamos, o Alto Comando não esteve à frente das ações do dia 8, com articuladores e promotores, sua política dúbia acabou por comprometê-los com as ações. Diferentemente do Capitólio dos EUA, quando as Forças Armadas rapidamente atuaram para condenar as ações extremistas, aqui os militares buscaram uma localização de complacência e espera.

Portanto, a manutenção do comandante do exército já não tinha condição política de se manter. Do mesmo modo, não houve a renúncia dos comandos da aeronáutica e da marinha, expressando ao mesmo tempo algum nível de acordo para essa saída. O contraste é evidente ao compararmos com a crise militar durante o governo Bolsonaro, quando a imposição da saída do ministro da Defesa, Fernando Azevedo, provocou a renúncia coletiva dos três comandantes. Em síntese, ainda que com rusgas e tensionamentos, não foi uma ruptura ou uma imposição unilateral de Lula contra o Alto Comando. Esses elementos apontam para uma saída negociada, com Lula e o regime político que é seu aliado, em clara vantagem em suas posições.

Uma opinião corrente entre analistas e teóricos busca apresentar Arruda com uma orientação bolsonarista e Tomás Ribeiro como legalista, evocando inclusive o seu passado como ajudante de ordens de FHC. Na imprensa, circulam informações de que teria sido o general indicado por Alexandre de Moraes em dezembro, mas que Lula preferiu seguir o critério da antiguidade e nomear Arruda.

Fato é que as declarações que Tomás Ribeiro deu, quando ainda chefiava o Comando Militar do Sudeste, defendendo o resultado das urnas e a despolitização das forças, tiveram um impacto significativo. No entanto, as declarações de Tomás foram posteriores ao dia 8, quando a crise militar já estava instaurada. Provavelmente foram declarações preparatórias para sua posterior nomeação como comandante-geral. Todo um movimento que compunha esse sinal político, que também era destinado para as tropas e estratos médios de oficiais: O seu conteúdo foi bem delimitado, e o recado claro. Assim afirmou o agora comandante geral:

"Quando a gente vota, tem que respeitar o resultado da urna. Não interessa. Tem que respeitar. É isso que se faz. Essa é a convicção que a gente tem que ter. Mesmo que a gente não goste.”

No entanto, antes que se crie novamente a divisão entre generais golpistas e supostamente democráticos, operação instalada pela grande mídia, é importante notar que Tomás Paiva não foi só chefe de gabinete de Villas Boas, como fez parte ativa da elaboração do famoso tuíte durante o julgamento de Lula no STF. Criar alas “legalistas” e "golpistas" entre os generais tem como objetivo relegar a um setor todos os pecados militares, mas mantendo a confiança nos setores que podem ser considerados como confiáveis. Uma expectativa que a grande imprensa alimentou durante todo o governo Bolsonaro, e que foi frustrada em diversos momentos que os militares mostraram seu comprometimento com a agenda da extrema-direita.

Na realidade, está claro que os militares não vão abandonar seu projeto de buscar uma localização estrutural de poder moderador, ainda que por ora tenham se debilitado conjunturalmente após o dia 8. A preservação do Alto Comando e de setores do generalato, não só em relação ao 8, mas também a todos do governo Bolsonaro, será um componente para os próximos passos dos militares, em busca do seu projeto político próprio.

Legitimação maior do governo, fortalecimento do judiciário e maior debilitamento do bonapartismo militar

A declaração de Tomás Ribeiro, e a substituição do comando do exército, expressa portanto uma correlação de forças no país, marcada por uma maior debilidade relativa das Forças Armadas. Desde os momentos preparatórios ao golpe institucional até a ascensão do governo Bolsonaro, viemos de uma ascensão do poder político dos militares, ainda que com oscilações conjunturais. O resultado das ações do 8, no entanto, impuseram um momento de maior fragilidade. Isso não significa que o bonapartismo militar foi golpeado estruturalmente, e vai deixar de atuar politicamente. Contudo, o isolamento internacional e o desgaste interno produziram um revés, que impõe uma posição mais defensiva. Os resultados, evidentemente, foram favoráveis para o governo Lula-Alckmin e o setor do regime que o apoia.

Alexandre de Moraes e o STF estão sendo avaliados como grandes baluartes do estado democrático de direito, pela parcela da população que votou em Lula e por aqueles que condenaram as ações do dia 08. Praticamente todos os setores de esquerda, com raras exceções, embarcaram no “salvacionismo” judiciário. Ao mesmo tempo, o grau de ativismo e arbitrariedade da Corte vêm subindo de maneira exponencial. Aproveitando-se do argumento de “resguardo da democracia”, está se fortalecendo um poder super autoritário, com uma concentração de poderes inédita, e que logo voltará a atacar os trabalhadores. A esquerda que ovaciona Alexandre de Moraes, faz parte de uma operação para deletar a memória política de amplos setores. Querem virar a página da prisão arbitrária de Lula, da autorização das reformas, do apoio ao impeachment, à Lava-Jato, e de ataques a direitos operários, como a revogação do piso da enfermagem e a suspensão do aumento dos salários dos professores de Minas Gerais.

O que se busca é criar novas formas de legitimidade nesse regime apodrecido, uma legitimidade cada vez mais apoiada em setores sem voto, como é o caso do judiciário e sua mais alta corte. Para a dominação burguesa é uma questão decisiva após muitos anos de uma forte crise de hegemonia. Para fortalecer suas próprias posições, Lula atuou percebendo a oportunidade que tinha sido colocada pela realidade. A descida da rampa do Planalto, de braços dados com todos os governadores e membros dos diferentes poderes, Lula queria emitir um forte sinal de unidade, em busca de uma maior estabilidade.

No entanto, as consequências e desdobramentos após o dia 8 estão longe de apontar uma superação da crise de hegemonia que atravessa por anos o país. Ao contrário, segue existindo uma situação de polarização política nacional, e ampla votação que Bolsonaro conquistou alguns meses atrás é uma expressão categórica disso. Parcelas importantes desse eleitorado, ainda que não possam não concordar com as ações do que ocorreram em Brasília, não vão passar automaticamente a nutrir uma maior simpatia por Lula. É um contingente populacional que é suscetível a ideias de direita e extrema-direita, e podem ser fermento de descontentamento com o governo em outros momentos. Sobre essa base os militares vão continuar atuando, assim como Bolsonaro e outras variantes políticas desse espectro.

A política que busca a “pacificação” e a “reconciliação nacional”

É preciso acompanhar a situação nacional em dinâmica, e analisar qual nível de maior pactuação pode ou não se desenvolver. Como desenvolvemos, para além da polarização social, persistem forças bonapartistas com muita força no regime político, que podem entrar em novos choques e conflitos. Agora, somado aos dois bonapartismos (militar e do judiciário), Lula e sua relação com setores de massas, é um novo componente com capacidade sui generis para buscar consolidar outra força bonapartista a partir do presidencialismo de coalizão, cujos arranjos ainda estão por se dar. Historicamente no Brasil, a figura presidencial é constituída de uma enorme concentração de poderes, o que contribui estruturalmente para constituir contornos bonapartistas em torno do presidente, ainda mais em uma democracia cada vez mais degradada.

Contudo, foi significativa a declaração de Lira após sua reeleição, declarando que o verdadeiro “poder moderador” no Brasil é o legislativo. Se o legislativo vai atuar de maneira mais combinada com Lula, ou com maiores distanciamentos, é algo que a realidade irá mostrar. Por ora, parece haver um acordo de uma atuação em comum, mas com sinais de tensão. Tanto Lira quanto Pacheco emitiram sinais que pretendem atuar como garantidores de toda a agenda neoliberal, o que pode gerar atritos com as propostas de adequações e ajustes que Lula possa querer implementar nessa agenda. Do mesmo modo, o próprio alinhamento de Lula com o bonapartismo judiciário pode sofrer mudanças. Basta lembrar que foi esse mesmo setor, que ainda que em outra situação política muito diferente, decidiu voltar suas armas contra Lula e o PT.

É um elemento importante para o cálculo da correlação de forças, que os dois candidatos apoiados por Lula tenham ganho as eleições para a presidência da Câmara e do Senado. Ainda sim, Rogério Marinho, o candidato apoiado por Bolsonaro, recebeu mais de um terço dos votos no Senado, o que mostra reservas desses setores oposicionistas de direita e que podem querer alçar novas investidas no futuro. Lira, que foi uma peça chave para o governo Bolsonaro, agora parece buscar novos pactos e acordos com Lula. Ainda assim, não é uma aliança estável e pode estar suscetível a crises no futuro. Fato é, que os acordos que envolveram Lula, Lira, Pacheco, e chegando até o STF de Alexandre de Moraes, expressam a degradação do regime político de 88, no qual Lula pretende encabeçar uma busca por sua legitimidade.

Junto a isso, o governo Lula vem apostando em atribuir uma maior importância para os temas relacionados à questão negra e indígena no Brasil. Em relação ao primeiro, foram nomeado para cargos importantes, importantes figuras e referências do movimento negro. As pautas sobre representatividade e afirmação da identidade negra, são um ativo que o governo irá buscar apresentar, em contraste com o choque à direita nas relações raciais que o bolsonarismo buscou promover, com a tese de que não existe racismo no Brasil. No entanto, mesmo que se busque política nesse sentido, a questão negra é um problema estrutural, e a violência policial, os problemas de moradia, a precarização do trabalho, entre vários outros temas, vão seguir existindo, e inclusive com contornos mais dramáticos após tantos anos de ataques. Do mesmo modo, a questão indígena, que por mais destaque que Lula busque dar ao seu Ministério Indígena, esse é um problema estrutural no Brasil, que não vai permitir uma coexistência pacífica entre o agronegócio e os povos indígenas, como Lula sugere ser possível acontecer.

Junto a isso, os editoriais dos grandes meios de comunicação, pedem pacificação e reconciliação nacional com os militares. Lula não deixou por menos, e na primeira reunião com os generais, apresentou seu plano de investir quase 9 bilhões na Defesa. A aposta é irrigar com recursos públicos a germinação de uma pacificação maior com as Forças Armadas. Nessa reunião, esteve acompanhado por Josué Gomes, presidente da FIESP e o presidente da Embraer, para mostrar seu comprometimento no desenvolvimento de uma produção industrial-militar. É a política da velha conciliação lulista, para buscar algum nível de pactuação com os reacionários generais das Forças Armadas brasileiras, responsáveis pelo país ter chegado até essa situação.

Do mesmo modo, o Judiciário aumenta seus poderes, e está atuante para punir quem entrou na sede dos três poderes, de forma exemplar. Desse modo, querem mostrar que medidas estão sendo tomadas, ao passo que preservam os setores das patentes mais altas. Ao mesmo tempo, mantém Anderson Torres preso, Ibaneis Rocha afastado, e agora com as denúncias de Marcos Do Val, não está descartado que possam iniciar algum nível de ofensiva contra a família Bolsonaro. No entanto, não é simples uma ofensiva contra uma figura que teve uma votação expressiva, e que guarda um capital político de apoio social. Nesse contexto, multiplicam-se escândalos de mau uso do dinheiro público, seja através das centenas de milhares de reais gastos no cartão corporativo, ou no desvio de recursos que deveriam ser destinados para assistência aos indígenas em Roraima.

Do ponto de vista econômico, a situação não é disruptiva, e Lula aposta em buscar bons acordos internacionais para promover taxas de crescimento que surpreendam um pouco do que é esperado. Ao mesmo tempo, mostrou sua capacidade em conter processos da luta de classes, evitando a primeira paralisação nacional que teria no seu governo a partir da mobilização dos entregadores,e para isso contando com o apoio das burocracias sindicais. Ainda assim é relevante a ameaça de uma paralisação de entregadores há poucos dias do governo eleito, o que mostra que segue uma grande insatisfação social com as condições de vida e falta de direitos por uma parcela importante da classe trabalhadora. Tal insatisfação com a degradação das condições de vida e a corrosão dos salários, que pesa sobretudo nos setores mais precários, também se expressa em greves econômicas como dos terceirizados da refinaria da Petrobras em Canoas/RS e também a dos operários da MRV em Campinas.

Em favor de uma maior repactuação, se insere a contribuição de praticamente toda a esquerda e das burocracias sindicais. Em especial o PSOL e a CUT (PT) que, enquanto derramam elogios intermináveis à atuação do judiciário e de Alexandre de Moraes, não dedicam nenhuma palavra para um chamado à organização dos trabalhadores para lutar pela revogação das reformas e de todos os ataques que passaram nos últimos anos. No caso do PSOL, não poderia ser por menos, já que agora passou a integrar efetivamente o governo. Por ora, esse setores tão pouco pretendem construir uma mobilização ativa à situação dos Yanomami, como também lutar por saídas estruturais que impeçam a ofensiva de latifundiários e garimpeiros contra as terras indígenas.

A situação dos Yanomami também possui uma relação direta com os militares. São históricas as relações dos militares com a Amazônia, e sua política de “integração” dos indígenas, que nada mais é do que atacar suas condições de vida e explorar economicamente suas terras. São inúmeras as denúncias de envolvimentos de policiais e soldados diretamente com os garimpeiros. Heleno atuou diretamente para facilitar esse tipo de atividade, e Mourão recebeu pessoalmente uma importante figura do garimpo, enquanto ainda era vice-presidente.

Como viemos afirmando, junto com todos aqueles que odeiam o legado do governo Bolsonaro é necessário lutar para que a classe trabalhadora, auto-organizada, tenha uma posição independente para unir a luta por nenhuma anistia ao alto mando civil e militar sem confiança no Estado e nas instituições do regime, com uma resposta imediata à crise Yanomami. Imediatamente é preciso rechaçar fortemente o papel do governo Lula em todo apoio político e permissão de envio de armas e munições ao governo golpista no Peru. Junto a isso, é fundamental erguer um programa operário que responda aos grandes problemas sociais estruturais, em especial a revogação integral de todas as reformas e privatizações, a começar pela trabalhista que destrói e precariza a vida de milhões de trabalhadores colocando de pé uma enorme campanha contra a precarização do trabalho.


[1“Frente Popular” é a coalizão dos representantes do proletariado com a burguesia, cujo objetivo fundamental é conter a ação independente da classe trabalhadora. Os elementos da Frente Popular presentes do atual governo Lula decorrem da incorporação das entidades de massas, em particular sindicais (mas também ligada aos movimentos sociais), ao próprio governo, que tem uma ampla base social no movimento operário e popular, o que é uma clara característica frentepopulista, mesmo que não estejamos diante de uma "Frente Popular" clássica (que emergiu em processos de revolução e contrarrevolução, por isso colocamos “elementos”)





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