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Beethoven e a Revolução Francesa

Chris Wright

Imagem: @flaviagregorutti

Beethoven e a Revolução Francesa

Chris Wright

Recentemente se comemorou o 250º aniversário do nascimento, em Bonn, de Ludwig van Beethoven (1770-1827). Toma-se como referência o dia 17 de dezembro, dia de seu batismo, já que sua data de nascimento não é conhecida exatamente. Talvez seja o criador mais admirado do repertório musical ocidental denominado "clássico", com suas monumentais nove sinfonias, cinco concertos para piano, 32 sonatas para o mesmo instrumento, além de outras para violino e violoncelo, 16 quartetos de cordas, missas, sua música incidental e sua única ópera, Fidelio, entre muitos outros gêneros. A sua obra foi uma ponte, uma transição entre o classicismo e o período romântico, do qual muitos o consideram o "pai" (em seu aspecto musical). Esta transição e toda a sua vida adulta foram marcadas também pela Revolução Francesa e a luta contra o Antigo Regime na Europa, bem como pela derrota dos exércitos napoleônicos, a chamada “Restauração”, com a paz de Viena, uma cidade na qual residiu grande parte de sua vida. O artigo que apresentamos busca aprofundar a relação entre arte e política na obra de Beethoven para que, como diz o autor, “sintonizemos nossos ouvidos” e captemos o caráter subversivo de sua música, que está ligada aos ideais republicanos e revolucionários do “gênio de Bonn”, que nas grandes comemorações oficiais são totalmente esquecidas e neutralizadas, a ponto de sua música ter sido explorada por diferentes estados e regimes opressores. Chris Wright, Ph.D. em história dos EUA pela Universidade de Illinois, em Chicago, autor do artigo: Worker Cooperatives and Revolution: History and Possibilities in the United States, publicado na revista Dissent (dissentmagazine.com), afirma que, ao contrário, Beethoven é uma figura que pertence ao legado de quem quer subverter este mundo em suas raízes, antecipando aquele mundo em que “todos os homens serão irmãos” (parafraseando os versos de Schiller, do quarto movimento da monumental Nona Sinfonia), mas, primeiramente, deve-se lutar contra os poderes existentes para poder construí-lo.

Duzentos e cinquenta anos após o nascimento de Beethoven, somos confrontados com um paradoxo: sua música é conhecida e amada em todo o mundo, provavelmente mais do que a de qualquer outro compositor, mesmo quando seu real significado quase nunca é destacado, exceto em estudos críticos que não são lidos pelo público em geral. O que, aparentemente, não por desprezo, mas sim por ignorância. Ouvimos as famosas melodias pela milésima vez, seja em filmes, anúncios ou concertos, da terceira, da quinta, da sexta ou da nona sinfonia, de concertos de piano e sonatas ou peças de música de câmara. Mas o sentido da música tem sido ofuscado pelo seu uso excessivo. Ou seja, esquecemos, e não parecemos mais ouvir, a natureza intensamente política da música de Beethoven, sua natureza subversiva, revolucionária, apaixonadamente democrática e exaltadora da liberdade.

No ano do 250º aniversário do grande compositor, seria oportuno resgatar essa essência, afinar os ouvidos para captar a mensagem política e filosófica da música. Isso é especialmente apropriado em nosso tempo, quando há lutas democráticas contra um ancien régime decadente e corrupto, que tem algumas semelhanças com a era revolucionária de Beethoven, o desejo secreto e a esperança de efetivar "os direitos do homem". Beethoven pertence, de corpo e alma, à esquerda. Séculos depois de sua morte, sua música ainda mantém o poder de transformar, transfigurar e reviver, não importa quantas derrotas políticas sofreram seus partidários e espíritos afins.

Podemos começar com o mais famoso dos motifs de Beethoven: as notas com as quais a Quinta Sinfonia (1808) começa. Todos nós já ouvimos a lenda de que elas representam "o destino batendo à porta". A origem dessa ideia é de Anton Schindler, o conhecido secretário de Beethoven. Sir John Eliot Gardiner, maestro mundialmente famoso, tem uma interpretação diferente: ele capta a influência revolucionária do Himno del Panteón, de Luigi Cherubini, de 1794. “Juramos, de espada na mão, morrer pela República e pelos direitos do homem”, canta o refrão, ao ritmo de ta-ta-ta-taaam. Beethoven era um grande fã de Cherubini, para não dizer que era um devoto republicano, então, a teoria de Gardiner não é rebuscada. Na brutalizante, conservadora e repressiva Viena de 1808, Beethoven introduziu o toque de clarim da revolução nas notas de abertura de uma de suas sinfonias mais revolucionárias e napoleônicas. Não admira que os conservadores odiassem sua música!

Beethoven era filho do Iluminismo e assim permaneceu durante toda a vida. No final do Século XVIII, Bonn, onde nasceu, estava imersa no pensamento mais progressista da época: Kant, o filósofo da liberdade, era um tópico muito animado de discussão na universidade, assim como seu seguidor Friedrich Schiller, o poeta da liberdade, inimigo apaixonado dos tiranos de todo o mundo. O jovem Beethoven foi fortemente influenciado por Eulogius Schneider, cujas palestras assistiu. Schneider, um dos mais importantes jacobinos alemães, era tão radical que, em 1791, foi expulso da liberal Universidade de Bonn, assim que ingressou no Clube Jacobino de Estrasburgo, na França (lá foi nomeado promotor do Tribunal Revolucionário, enviando com entusiasmou os aristocratas à guilhotina, até perder sua própria cabeça alguns anos depois). O republicanismo de Schneider permaneceu com Beethoven, mas era Schiller quem Beethoven adorava.

O poema de Schiller, "An die Freude" (conhecido aqui como Ode à Alegria), impressionou imensamente Beethoven. Ele planejou desde o início musicá-lo e, finalmente, o fez na Nona Sinfonia. Mas ele também estava apaixonado pelas obras idealistas e heróicas de Schiller, como Os Ladrões, Guillermo Tell e Don Carlos. Quando era jovem, escreveu suas próprias idéias sobre este trabalho: "Faça o bem sempre que puder, ame a liberdade acima de tudo, nunca negue a verdade, mesmo antes do trono." Décadas depois, o encontramos exclamando em uma carta: “Liberdade!!! O que mais se quer???" Certa vez, ele escreveu em uma carta: “Desde a mais tenra infância, meu zelo por servir nossa pobre humanidade sofredora, de qualquer forma, por meio de minha arte, não foi comprometido por nenhum motivo menor. Estou muito feliz por ter encontrado em você um amigo dos oprimidos”. O historiador Hugo Leichtentritt conclui: “Beethoven foi um democrata apaixonado, um republicano convicto, mesmo em sua juventude; ele foi, de fato, o primeiro músico alemão a ter fortes interesses políticos, ideais e ambições.”

A propósito, sua primeira composição importante foi a Cantata pela Morte de Joseph II, um tributo sincero e comovente ao reformador esclarecido, que morreu em 1790. Beethoven, que nunca gostou da hierarquia, simpatizava totalmente com os ataques de Joseph ao poder da Igreja Católica e da aristocracia austríaca. Seu desprezo pelos aristocratas era tal que, anos depois, escreveu uma nota insultuosa a um de seus mais generosos benfeitores, o Príncipe Lichnowsky: “Príncipe, o que você é, você é pelas circunstâncias e por nascimento; o que eu sou, estou sozinho. Existem e sempre haverá milhares de príncipes, mas só existe um Beethoven”. Até seu senso de moda era democrático. Uma mulher que o conhecia escreveu uma lembrança de seu comportamento nos salões vienenses aristocráticos: “Ainda me lembro claramente de Haydn e Salieri sentados em um sofá... ambos cuidadosamente vestidos à moda antiga com perucas, sapatos e meias de seda, enquanto Beethoven veio vestido à moda informal típica do outro lado do Reno [isto é, da França, N.T.], quase mal vestido”. Agia “sem modos, tanto em seus gestos, quanto em seu comportamento. Era muito arrogante. Eu mesmo vi a mãe da Princesa Lichnowsky... ajoelhar-se diante dele enquanto ele se aconchegava no sofá, implorando para que tocasse algo. Mas Beethoven não tocou."

Beethoven teve um fascínio por Napoleão durante décadas, principalmente porque o "pequeno cabo", que conquistou a Europa por seus próprios esforços, não era um aristocrata. "Admirou a ascensão de Napoleão, que veio de tão baixo", comentou um oficial francês com quem fez amizade em 1809. "Isso se ajustava às suas ideias democráticas." A coroação de Napoleão como Imperador, no entanto, não se encaixava nas ideias de Beethoven, como sabemos pela anedota de como ele furiosamente arrancou a capa da Sinfonia Eroica (1804), sua terceira sinfonia, à qual, incrivelmente, dada a repressão política em Viena, pretendia originalmente chamá-la de "Bonaparte". “Então ele é apenas um homem comum!” Beethoven se enfureceu. "Agora ele também pisoteará todos os direitos do homem... e se tornará um tirano!" Vinte anos depois, durante o auge da era da Restauração, seus pontos de vista foram suavizados: “Antes, eu não poderia ter tolerado [Napoleão]. Agora penso de forma completamente diferente”. Por pior que fosse, Napoleão não era o desprezível imperador Francisco II ou, pior ainda, o chanceler do Império Austríaco, Klemens von Metternich.

A Eroica é, possivelmente, a mais revolucionária das sinfonias de Beethoven, talvez por isso tenha permanecido sua favorita, pelo menos até a Nona. John Clubbe, autor de Beethoven: The Relentless Revolutionary (2019), acredita que os famosos dois primeiros acordes da Eroica, que soam como tiros de canhão, representam os canhões disparados pelos exércitos de Napoleão marchando pela Europa. “Os acordes lembram o mundo da Revolução [francesa]: exuberante, exagerada, colossal. Eles são chamados para despertar um público sonolento”, em Viena e em todo o mundo. Beethoven detestava o vienense complacente, apolítico e frívolo de sua época, intimidado pela repressão e censura em um silêncio sibarita. A sinfonia está cheia de suas técnicas de interrupção quintessencial, incluindo contrastes dinâmicos repentinos, dissonância extrema, ruído colossal, dimensões enormes, densidade de ideias, explosão de formas e convenções e até mesmo uma trompa francesa extra para criar a atmosfera de revolução. Tudo isso serve para comunicar a essência permanente da música de Beethoven: a luta, que termina em triunfo. Não é uma mera luta pessoal, como sua luta contra a surdez; é uma luta coletiva, universal, atemporal, uma guerra contra os limites, por assim dizer, artística, criativa, moral, política, até mesmo espacial e temporal. A caracterização de John Eliot Gardiner é precisa: Beethoven representa a luta para trazer o divino para a Terra. (Gardiner o compara com Bach e Mozart, o primeiro representa o divino na Terra, o último nos dando a música que se escutaria no céu).

“Se ouvimos Beethoven, mas não ouvimos nada da burguesia revolucionária - o eco de suas consignas, a necessidade de realizá-las, o clamor por aquela totalidade em que a razão e a liberdade devem ser garantidas - não estamos entendendo Beethoven melhor do que aqueles que não conseguem acompanhar o conteúdo puramente musical de suas obras”, escreveu Theodor Adorno. Beethoven era tão político que, no final da vida, alguns de seus amigos se recusaram a jantar com ele: ou estavam cansados ​​de sua constante politização ou temiam que os espiões da polícia os escutassem. "Você é um revolucionário, um Carbonário", escreveu um amigo seu em seu livro de conversas em 1823, referindo-se a uma sociedade secreta italiana que havia desempenhado um papel em vários levantes nacionais. Beethoven manteve a fé no Iluminismo, muito além do ponto, e se tornou anacrônico para seus contemporâneos.

Está além do escopo deste artigo traçar o humanismo exortativo de Beethoven em todas as suas permutações musicais, desde a poesia bucólica da Sexta Sinfonia (ele tinha um amor quase panteísta pela natureza), até "a paz que ultrapassa todo entendimento” da mais recente sonata para piano, com a deslumbrante variedade de formas e conteúdos no meio de tudo isso. No entanto, não podemos ignorar a única ópera que escreveu, quer na sua forma inicial (como Leonora), quer na sua forma final, quase dez anos depois, como Fidelio (1814), que pretendia dedicar aos gregos que lutavam pela liberdade na guerra contra o Império Otomano. Esta foi uma oportunidade para o grande democrata expressar em palavras suas convicções. As palavras, a música e o enredo da ópera são inequívocos: neles "a Revolução não é representada, mas recriada como num ritual", como dizia Adorno.

Fidelio tira as amarras do idealismo de Beethoven, assim como o movimento para coro da Nona Sinfonia, uma década depois. O enredo é simples (e aparentemente baseado em eventos reais que ocorreram durante a Revolução Francesa). Leonora, disfarçada de um jovem chamado Fidelio, consegue um emprego em uma prisão, onde suspeita que seu marido, Florestan, está detido por motivos políticos. Na verdade, ele está morrendo de fome lentamente em uma masmorra, por ter denunciado os crimes do diretor da prisão, Pizarro. O ministro Don Fernando chegará no dia seguinte para investigar as acusações de crueldade na prisão, por isso Pizarro decide matar Florestan para manter em segredo sua existência e sua prisão injusta. Fidelio e alguns outros são enviados à masmorra para cavar uma sepultura; enquanto isso, eles libertam a maioria dos prisioneiros, pelo menos temporariamente, para se reunir no pátio e ver o sol mais uma vez. Quando chega a hora de Pizarro matar Florestan, ele se aproxima com uma adaga, mas Fidelio pula entre ele e Florestan se revela, para surpresa de todos, como Leonora. Ele ameaça Pizarro com uma pistola, mas naquele momento ouve-se um clarim distante, anunciando a chegada do benevolente ministro. Pizarro acaba preso, enquanto Leonora liberta Florestan de suas correntes e é celebrada, por seu heroísmo, pela multidão de prisioneiros emancipados.

O simbolismo e os significados alegóricos da ópera não são difíceis de discernir. Beethoven acreditava na coragem e no heroísmo das mulheres tanto quanto na dos homens, o que o moveu para contemplá-los e representá-los. Durante toda a sua vida permaneceu sincero e puro aos seus valores, como também em sua "personalidade totalmente indomável" (para citar Goethe), como uma criança ingênua lendo Schiller pela primeira vez. Sem dúvida, é essa qualidade que move o público, que inspira os flash mobs com milhões de visualizações no YouTube, e que tornou sua música imortal. A maior arte é sempre afirmativa em espírito, e ninguém é mais profundamente afirmativo - ou tem mais direito à afirmação, à luz de seu terrível sofrimento - do que Beethoven.

O espírito de sua música é tão simples quanto o de seus modelos, como Sócrates e Jesus: o bem triunfará sobre o mal; você tem que valorizar a liberdade, mas viver com seriedade moral, sempre desafiando a autoridade; amar os outros, mas não de forma local, à maneira do nacionalismo, mas de forma universal; nunca comprometa os próprios ideais ou a sua integridade; e acima de tudo, lutar pela emancipação. "A liberdade continuou sendo o motivo fundamental do pensamento e da música de Beethoven", escreve Clubbe. Para Beethoven, isso significava a liberdade republicana de participar ativamente da política, ou a liberdade de criar, pensar e falar o que quer que seja, em qualquer lugar. Política "como arte de criar sociedade, uma sociedade que expressa uma vida mais rica e plena", era sua matéria preferida, segundo seu biógrafo W.J. Turner.

Há algo de incongruente no comparecimento daquela elite abastada e luxuosamente vestida nas apresentações públicas das sinfonias e concertos de Beethoven, dada a expressão tão revolucionária, democrática e humanitária de sua música. Essas são as ironias que ocorrem quando a especificidade histórica da arte é negada ou esquecida e apenas um vago senso de prazer estético permanece. No entanto, mesmo o puro prazer estético é significativo. A música é primorosamente bela e revigorante: nenhum compositor na história é mais humanista do que Beethoven. Como Leonard Bernstein disse uma vez:

“Não houve nenhum outro compositor que falou tão diretamente a tantas pessoas, jovens e velhos, educados e ignorantes, amadores e profissionais, sofisticados e ingênuos. Para todas essas pessoas, de todas as classes, nacionalidades e origens raciais, esta música fala de uma universalidade de pensamento, de fraternidade humana, de liberdade e amor.”

O fato de até os reacionários de hoje poderem amar Beethoven, embora perversamente, sugere o quão universal é sua música.

Voltemos, então, com novos ouvidos e mentes abertas ao “primeiro grande democrata da música”, nas palavras de Ferruccio Busoni. Vamos nos inspirar nele e em nossas próprias lutas para humanizar e democratizar o mundo. Não esqueçamos dos aspectos mais nobres do patrimônio de nossa civilização, frente ao deserto cultural que são os Estados Unidos neste século XXI.

Richard Wagner chamou sua própria música de "a Música do Futuro". Esperemos que Beethoven seja a verdadeira Música do Futuro e que a humanidade um dia seja livre.

Artigo original: "The Revolucionary Beethoven" - Dissent Magazine, de 25/09/2020.

Tradução para o Espanhol e Introdução: Guillermo Iturbide.

Tradução para o Português: Ana Dyonisio.

"Eroica" (2003), dirigido por Simon Cellan Jones, é um filme de ficção sobre a estreia, em Viena, da Terceira Sinfonia (1803), considerada por muitos como o "nascimento" do romantismo musical. Ian Hart, o protagonista de Terra e Liberdade, de Ken Loach, interpreta Beethoven.


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