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SEMANÁRIO

Bonapartismo judicial e militar, uma disputa entre irmãos

Thiago Flamé

Arte:@garatujas.isa

Bonapartismo judicial e militar, uma disputa entre irmãos

Thiago Flamé

Durante todo o processo eleitoral, de forma ainda mais aguda no domingo da votação e nos dias que se seguiram, assistimos a uma enorme degradação do sistema democrático e um crescimento de todas as forças autoritárias, ou, mais precisamente, bonapartistas. Enquanto Lula, o PT e as centrais sindicais pediram calma e moderação para suas bases, chamando o STF e a justiça a resolverem a situação, o bolsonarismo se radicalizou nas ruas, com o auxílio aberto da Polícia Rodoviária Federal e a passividade cúmplice das polícias estaduais e das forças armadas.

Em uma série de artigos desde a vitória de Bolsonaro, e mais precisamente desde o início da operação Lava Jato, temos discutido de diferentes ângulos a degradação da democracia capitalista no Brasil e o apodrecimento da chamada Nova República, do pacto social que se estabeleceu na saída da ditadura, e da democracia degrada a que este deu origem. Sob o impacto da crise capitalista, que golpeou o Brasil tardiamente, mas com uma enorme força na severa recessão de 2014/15 e sob a pressão dos EUA, o Brasil se converteu num laboratório de medidas de exceção, e num desafio de análise para a ciência política. Para dar conta dessa situação, a partir das ferramentas do marxismo revolucionário elaboramos novos conceitos, que extrapolam as análises marxistas clássicas, como o de bonapartismo judiciário e de golpe institucional. Longe de preciosismo ou de ecletismos teóricos, mostram toda sua vitalidade para entender a situação atual e o complexo processo de transição do governo Bolsonaro para o governo Lula/Alckmin.

Na última semana o que vimos foi uma escalada desse processo. Com o apoio da polícia rodoviária e de frações do agronegócio, um setor da base bolsonarista, os caminhoneiros, realizaram centenas de cortes de rodovia, levando o caos para algumas regiões do país e se desenvolveram atos relativamente massivos em várias regiões do país, que pediam uma intervenção federal ou militar para anular as eleições. A intenção por trás dessas mobilizações não era efetivamente desencadear um golpe militar, mas principalmente pressionar à direita o processo de transição para garantir posições à extrema direita. Neste pequeno ensaio, vimos um ensaio de bonapartismo militar em movimento, que nesse momento se apoiou numa força armada, no caso a polícia rodoviária, a diferença dos casos clássicos de bonapartismo, que se apoia em geral diretamente no exército, ainda que contando com a passividade cúmplice do conjunto das forças armadas. Inclusive vimos a mobilização extra institucional de setores de extrema-direita, nas ações de uma base bolsonarista ultra radicalizada nas estradas e contra votantes do Lula, o que fortalece ainda mais as tendências bonapartistas na situação. A correlação de forças geral que não permite um golpe militar, também não permite o surgimento do fascismo clássico, que se choca em primeiro lugar contra as organizações operárias . Carla Zambelli, a louca que quase atirou num homem negro do dia da eleição, simboliza essa correlação de forças ao fugir do país.

A principal força de oposição a essas medidas ficou a cargo do STF e do judiciário, com o apoio da grande imprensa, do governo dos EUA e dos países da União Europeia. E, também, de forma vergonhosa, do próprio PT, do PSOL e das centrais sindicais. Nesses dias suas ações, ou ausência delas, não só não convocando ações de massas contra o bolsonarismo, mas abertamente desestimulando qualquer resposta pela via da ação direta da classe trabalhadora e da juventude chamando a confiar nas instituições e na justiça. Como desenvolvemos adiante, um beco sem saída para enfrentar a extrema-direita, como se evidenciou no próprio domingo da eleição, quando Alexandre de Moraes, a figura proeminente do bonapartismo judicial por esses dias, simplesmente legitimou as ações descaradamente ilegais e golpistas da PRF, impedindo o povo de votar no nordeste e que depois se sentiu livre para apoiar descaradamente aos cortes de rodovias. Enquanto um impotente STF exortava à PRF que reprimisse os cortes, pequenos exemplos como dos estaleiros cariocas ou do povo pobre de São Matheus mostraram como se trata os germes de fascismo, tomando nas suas mãos e de forma exitosa a tarefa de liberar as vias, usando da legítima violência dos oprimidos contra a violência bolsonarista. Um movimento sindical minimamente combativo teria aproveitado a situação para mobilizar todas as suas forças e impor uma dura derrota física ao bolsonarismo radical.

O que é o bonapartismo judicial?

O conceito de bonapartismo foi utilizado por Marx e depois retomado de variadas formas pelos revolucionários no entre guerra, e em especial por Trótski (mas também por Gramsci, com seu conceito de Cesarismo), para explicar as crises das democracias burguesas e o surgimento de regimes ditatoriais. Como explicamos sistematicamente, o bonapartismo se diferencia do fascismo por não recorrer à mobilização extra institucional das camadas médias empobrecidas para destruir as organizações operárias, ou recorrer a ela de forma apenas auxiliar e episódica, se apoiando principalmente nas forças armadas tradicionais, podendo chegar a níveis diferentes de repressão contra as massas.

Quando a luta de classes entre as duas classes fundamentais da sociedade capitalista chega num impasse, em que a classe dominante já não consegue governar pelos seus mecanismos tradicionais, mas as classes subalternas não conseguem se impor por via revolucionária, a burguesia se vê obrigada a aceitar algum salvador, que sob a aparência de se colocar como árbitro acima das classes em disputa, se apoia nas forças armadas para salvaguardar os interesses gerais das classes possuidoras, ainda que possa se voltar contra frações dessas em nome de salvar o todo. A história conheceu diversos tipos e formas diferentes de bonapartismo. Na década de trinta, Trótski foi quem mais desenvolveu o conceito, para explicar as formas transitórias que assumiram os regimes políticos europeus sob a pressão da fascismo e no nazismo. Se o bonapartismo assume o poder sem uma derrota histórica da classe trabalhadora, dá lugar a governos débeis e transitórios, como todos os que na Alemanha precederam a ascensão de Hitler. Ou, pode dar lugar a regimes bonapartistas estáveis e duradouros quando se assenta sobre uma derrota histórica da classe trabalhadora. Pode ser inclusive que o fascismo, depois de impor essa derrota, se institucionalize numa ditadura bonapartista, como o caso de Franco no Estado Espanhol, que venceu a guerra civil em 1938/39 e estabilizou um regime bonapartista que durou três décadas.

Trótski também analisou os tipos específicos de bonapartismo nos países atrasados ou semi-coloniais, em que a classe dominante local é débil em comparação ao movimento operário e aos capitalistas estrangeiros. Nesses casos, podem se dar, grosso modo, duas formas diferentes do que ele chamou de bonapartismo sui generis, de esquerda ou de direita. No primeiro caso, o governo tende a se apoiar nas massas, na classe trabalhadora ou inclusive em setores do campesinato, para negociar com o capital estrangeiro melhores condições de subordinação. No segundo, se apoia no imperialismo para impor contra a classe trabalhadora local uma brutal repressão. Na história brasileira, Getúlio Vargas, de acordo com cada período dos seus governos, representou as duas formas de bonapartismo. Nos casos clássicos o bonapartismo se apoia no poder executivo e nas forças armadas e governa através de uma figura demagógica e muitas vezes popular. Mas mesmo nos casos clássicos não pode-se descartar que o papel de bonaparte seja cumprido por uma instituição ou uma junta. Olhando para a ditadura militar brasileira, ainda que presidente militar jogasse um papel fundamental, o governo de fato era exercido pelo Alto Comando do exército, que de fato escolhia o presidente. O próprio Gramsci, ao discutir o seu cesarismo ou falar do salvador que se eleva nos momentos de crise para se impor pela força, já considera que não é obrigatório que o César seja um indivíduo. O que nunca foi elaborado pelo marxismo, foram as formas transitórias de bonapartismo, que não se apoiam no poder do executivo, mas sim do judiciário, como no caso brasileiro.

Matías Maiello desenvolveu uma reflexão teórica, apoiando-se nos debates da Alemanha pré Hitler, e partindo do cenário internacional, o surgimento deste novo tipo de bonapartismo. Como ele colocou e retomamos aqui, o “bonapartismo de toga” é sobretudo uma forma intermediária, em situações menos agudas da luta de classes, que não suprime o conjunto do regime democrático burguês, mas lhe impõe fortes restrições autoritárias: “O modelo - tomando o caso brasileiro - seria uma casta judiciária que se propõe como garantidora da legalidade burguesa ao mesmo tempo em que a viola para chegar aos seus fins. Um Poder Judiciário que se propõe, em nome do "Estado de Direito", assumir boa parte das tendências bonapartistas do regime necessárias para superar os elementos de crise política e econômica. Uma intenção de judicializar cada vez mais a anunciada luta de interesses para contê-la dentro da ordem burguesa.”

Se apoiando na definição de Trótski sobre o papel do capital estrangeiro em países como o Brasil, Maiello também explica de onde o poder judiciário tira sua força: “O papel decisivo do capital estrangeiro é fundamental para entender a capacidade de arbitragem do Poder Judiciário em uma situação como a atual onde o imperialismo norte-americano retomou uma agenda mais agressiva com a América Latina. Vendo o caso do Brasil, com a tentativa de remodelação do regime político - de resultado ainda incerto -, com o disciplinamento das chamadas "global players", o avanço sobre a Petrobras, o ataque aos setores da tecnologia de ponta, etc., não é aventureiro dizer, que um setor do imperialismo norte-americano busca constituir o bonapartismo judiciário como uma via de ingerência para impor seus interesses.”
Se pensamos nos interesses dos EUA no Brasil a empreitada foi extremamente bem sucedida, todas as global players foram facilmente liquidadas. A estratégia geopolítica da burguesia brasileira, que era parte do pacto da Nova República, foi derrotada. O deslocamento da estratégia de defesa brasileira das fronteiras terrestres – em que historicamente se concentraram, como força garantidora da ordem interna e continental, (papel cumprido na guerra do Paraguai a serviço da Inglaterra, ou mais recentemente na colaboração com as ditaduras na operação condor) – havia sido substituído pela concentração na chamada fronteira marítima, foi revertida. O maior símbolo dessa nova estratégia de defesa nacional havia sido a colaboração com a França na construção de um submarino nuclear, a cargo da Odebrecht, o que permitiu ao governo Lula o sonho de mediar um acordo nuclear com o Irã, que irritou profundamente a administração Obama, que também via com maus olhos a intromissão francesa no seu pátio traseiro. A lava-jato, não à toa, se voltou com a maior fúria contra esses dois pilares através dos quais a burguesia brasileira buscava negociar em melhores condições a sua subordinação. O bonapartismo judicial, representando esses interesses dos EUA, arrebentou a Petrobras e o governo Bolsonaro avançou fortemente nessa destruição com a privatização da maioria das refinarias. Também o exército, que apesar de ter ganhado o prêmio de consolação com a liderança das tropas da ONU no Haiti, que se converteu numa grande escola de tutela sobre um governo civil para todo o generalato, estava vendo seu papel de primeiro violino das forças armadas ameaçado pela marinha, teve uma completa confluência com a lava-jato para desmontar o projeto nuclear brasileiro e voltar a estratégia de defesa nas fronteiras continentais. O único militar preso pela lava-jato, e que não contou com a possibilidade de nenhuma delação premiada, foi o Almirante Otto, chefe do programa nuclear brasileiro desde os anos oitenta e na ocasião presidente da Eletronuclear. Em troca desse apoio ao bonapartismo judiciário, o exército aprofundou a colaboração militar com os EUA, efetivando o primeiro exercício militar comum com os EUA em território sul americano, um ensaio de “ajuda humanitária” no território amazônico e o lucrativo aluguel da base de Alcântara, sob administração militar. Sob o governo Bolsonaro vimos que esse exercício não havia sido feito em vão, e foi implementado na prática com a tentativa de golpe contra o governo Maduro na Venezuela em 2019, numa ação apoiada por todos os setores da política estadunidense, de Trump a Bernie Sanders.

O STF como novo poder moderador

Aprofundando um pouco mais no emblemático caso brasileiro, que já se converteu num exemplo clássico deste novo tipo intermediário de bonapartismo, em que uma potência estrangeira, os EUA, se apoiam na casta judicial para se impor contra a classe trabalhadora e setores burgueses locais, vamos retomar um conceito próprio da nossa história, o chamado “poder moderador”. Apesar de não figurar em nenhuma constituição desde a instituição da República via golpe militar em 1889, com o fim do império os militares tomaram para si o papel de poder moderador, que exerceram ao longo do século XX. Nos últimos anos o STF assumiu para si esse papel, que vem crescentemente desempenhando e que atualmente chegou ao seu ápice.

Essa localização do STF e do poder judiciário, que cada vez se dá poderes de controle da vida social e política muito além daqueles que a própria constituição prevê, foi inclusive elaborada pelos ministros do Supremo. Já em 2014, antes mesmo de se desencadear a ofensiva da lava-jato, o ministro Dias Toffolli teorizava sobre esse novo papel do STF, numa palestra intitulada Poder moderador no Brasil, militares e o judiciário.

Depois de lembrar que era um poder que a constituição de 1824 previa para o imperador, Toffoli afirmou que a partir da República foi o exército quem exerceu esse poder, mas que “Ao final do regime (militar), em 1985, eles haviam perdido esse papel de poder moderador. Houve um divórcio claro entre os militares e as camadas mais populares.” E prossegue, falando sobre o papel do STF: “Hoje ele é o poder moderador, é o que tira a sociedade de seus impasses.” Para Toffoli, esse poder do STF, que por mais que ele tente ligar ao espírito da constituinte, é abertamente extra constitucional, consiste no fato de que o STF é chamado para resolver os impasses que o sistema político não consegue resolver por si mesmo. Extrapolando suas prerrogativas constitucionais, o STF passou a interferir em todos os aspectos da vida social e política, atuando como legislador e se arrogando poder de destituir parlamentares, limitar poderes presidenciais, regular a disputa política e eleitoral.

As eleições de 2022 e a escalada do intervencionismo judicial sob o pretexto de defender a democracia dos golpes bolsonaristas, estão consolidando esse papel de poder moderador que o bonapartismo judicial assumiu no regime do golpe com a lava-jato, o impeachment e a prisão arbitrária de Lula. Em nome do combate ao golpismo vale tudo, como outrora o combate à corrupção justificou todo tipo de arbitrariedade. O STF já havia inovado, em termos de autoritarismo, ao se tornar promotor e juiz nos processos sobre fake news, deslocando a procuradoria geral. Agora, o TSE arroga novos poderes de intervenção e o poder de tirar sites e matérias do ar em duas horas. Nenhuma dessas medidas, que fortalecem um poder discricionário dos juízes que se voltará contra a esquerda e o povo assim que a classe trabalhadora levante a cabeça, servem para combater a extrema direita. Nada disso impediu a eleição para o Senado de Mourão, de Damares Alves, de Marcos Pontes, nem debilitou a votação de Bolsonaro, que se fortaleceu e se institucionalizou.

Força material e força moral: as relações recíprocas entre o bonapartismo militar e o judiciário

Na implementação do golpe institucional de 2016 e sua continuação na prisão arbitrária de Lula essas duas forças reacionárias atuaram juntas a serviço das classes dominantes. O judiciário, liderando a ofensiva golpista, se apoiou, como desenvolvemos acima, no exército. Sua atuação conferiu a legitimidade democrática e deu ares de legalidade para a ofensiva golpista, desencadeada pela grande mídia, em especial a Rede Globo. O exército permaneceu apenas nos bastidores, avalizando todo o processo, chantageando os ministros do STF que vacilavam nos momentos críticos, ao demonstrar a força moral que a campanha da grande mídia em conjunto com a legitimação do golpe pelo judiciário se apoiavam no poder físico dos quartéis.

Em 2016 era evidente que o bonapartismo judiciário e o bonapartismo militar em que o bolsonarismo se apoia são duas expressões do mesmo processo de degradação do regime de 1988, numa democracia extremamente degradada que vai cada vez mais engrossando seus contornos autoritários. Foi na sombra da Lava-Jato e do bonapartismo judicial que o bolsonarismo e a extrema-direita militar se fortaleceram e se desenvolveram, para sob o governo Bolsonaro reivindicar um lugar próprio do regime político.

Um problema novo se coloca agora, que vem se desenvolvendo desde a vitória de Trump nos EUA e de Bolsonaro no Brasil, quando a divergência de interesses entre setores da burguesia e do imperialismo estadunidense provocou a fratura do bloco golpista de 2016 e colocou o bonapartismo militar e o judicial em campos enfrentados. A virada na política do STF, que ao longo do governo Bolsonaro atuou como força de contenção do Bolsonarismo, avançou na reabilitação de Lula e, como dissemos, ampliou seus poderes de árbitro nessas eleições, não é uma ruptura com a orientação anterior. Corresponde aos interesses da fração imperialista representada no Partido Democrata que voltou a governar os EUA, de retirar do governo brasileiro um aliado de Trump, depois que os objetivos fundamentais por trás da Lava-Jato e do golpe de 2016 foram cumpridos e as chamadas global players brasileiras neutralizadas. Corresponde também aos interesses das principais frações da burguesia brasileira, que também conquistaram enormes vantagens na aplicação das reformas trabalhista e da previdência, e com o conjunto dos ataques, e agora querem estabilizar um novo regime político e garantir o conquistado. O bonapartismo militar, que se fortaleceu sob Bolsonaro e em relativo conflito com o STF, ao mesmo tempo em que se apoia no bolsonarismo, aliado ao trumpismo e nas frações mais radicalizadas do agronegócio brasileiro que lhe dão sustentação, também não deixa de estar ligado com os setores Democratas do estado dos EUA.

O STF fortaleceu enormemente seu poder moderador, no entanto, não conta com a força material das armas para se impor, se diferenciado nisso do bonapartismo clássico que se apoia diretamente nas forças armadas para se elevar como árbitro em situações em que o choque entre as classes fundamentais da sociedade capitalista, a burguesia e o proletariado, leva a um equilíbrio temporário das forças. Por isso, essa nova forma de bonapartismo corresponde a situações intermediárias, ou preparatórias, em que não está colocada a luta aberta entre burguesia e proletariado, como esteve nos casos analisados por Trótski na década de trinta.

Esse limite do bonapartismo judiciário para enfrentar situações de embate entre revolução e contra revolução se expressa também como limitações parciais da sua atuação quando se trata não dos enfrentamentos abertos da luta de classes, em que se faz necessário o uso direto da força para a sustentação da ordem capitalista, mas da disputa política entre frações da classe dominante, em que o componente da correlação de forças propriamente militar não entra como um fator de primeira ordem na definição da correlação de forças.

Em alguma medida esse fator é um dos que explica a dificuldade do judiciário em liquidar de forma muito mais rápida com os bloqueios bolsonaristas, que se apoiavam num reduzido contingente mobilizado. Na medida em que a força policial que seria responsável por desfazer os bloqueios, a PRF, diretamente os apoiava, isso limitou a capacidade ação imediata do poder judiciário. Ao contar com o apoio aberto da PRF e com a cumplicidade passiva das polícias militares e do exército, uma reduzida força bolsonarista conseguiu sustentar suas ações muito além do que poderia ter feito sem ela. O bonapartismo judicial, essa inovação política do século XXI que se apoia em mecanismos do regime democratico burguês para avançar em medidas autoritárias mantendo a aparência de legalidade, é funcional enquanto se apoia numa hegemonia social que lhe garante a autoridade. Essa dificuldade inicial pode ser revertida ao longo das próximas semanas e meses, e não podemos descartar uma contra ofensiva do STF contra essa base mais radicalizada do Bolsonarismo, na medida em que o STF possa fazer pesar na balança os fatores em que atualmente se apoia seu poder, o governo dos EUA, a maioria da classe dominante brasileira, a grande imprensa e na legitimação da Frente Ampla encabeçada que conquistou uma maioria popular.

A situação não chegou até esse ponto limite na última semana. O poder moderador do STF se apoiou na legitimidade social e na ingerência imperialista para forçar o recuo da extrema-direita, que não pretendia levar a situação ao desenlace final. Se fosse essa sua intenção, pouco poderiam fazer os ministros do STF além de bradar e vociferar. A PRF se afirmou como a força armada mais abertamente bolsonarista e com sua ação de cunho golpista, busca preservar interesses bem materiais e não uma mudança de regime. Mas o ensaio reacionário serviu aos propósitos da extrema-direita bolsonarista, que demonstrou capacidade de mobilização dos seus destacamentos de vanguarda e que pode contar com um forte apoio de massas da sua base reacionária, composta pelas classes médias tradicionalmente reacionárias que se radicalizam desde 2016 e por camadas populares desiludidas com um sistema político que nunca lhes deu nada. Foi a influência estreita do imperialismo dos EUA, através dos laços diários entre as forças armadas estadunidenses e as brasileiras, que serviu de complemento para a bonapartismo judicial nesses dias de tensão. Também jogou um papel para limitar a ação da extrema-direita, que do contrário poderia ter prosseguido não para desferir um golpe, mas para conquistar melhores posições no processo de transição, a ação espontânea de setores do movimento de massas, das camadas populares no norte do Espírito Santo, dos estivadores cariocas e das torcidas organizadas, que mostraram onde está a força material que pode se chocar e triunfar sobre a nefasta aliança da extrema direita extra institucional, de tipo fascista, com as forças do bonapartismo militar que estimula e controla esses bandos protofascistas.

As bases do crescente poder do judiciário e das instituições sem voto

Como já desenvolvemos em uma série de artigos o Brasil, retomando conceitos do revolucionário italiano Antonio Gramsci, o Brasil vive uma longa crise orgânica, uma incapacidade das classes dominantes estabilizarem um novo regime de domínio frente a deslegitimação geral das instituições da Nova República e a falta de consciência e de organização da classe trabalhadora e das massas para que imponham sua própria saída através da mobilização. Frente à recessão de 2014/15 o golpe de 2016 foi uma tentativa de resolver pela direita a crise de legitimidade escancarada pelas manifestações de junho de 2013, num processo que se mostrou mais contraditório e tortuoso do que os golpistas esperavam.

Na ausência de um novo ciclo expansivo da economia mundial, como o que contou o lulismo no seu auge, que se prolongou por alguns anos depois de 2008 em função da dinâmica específica da crise capitalista internacional e frente a uma situação internacional cada mais tensionada, apesar de conseguir impor uma longa ofensiva reacionária, a classe dominante tem tido enormes dificuldades em estabilizar e consolidar um novo regime político. Frente a crise dos partidos tradicionais e o surgimento de todo tipo de fenômenos bizarros e transitórios, que em última instância são expressão da crise histórica da burguesia, que se vê obrigada a recorrer a lideranças políticas de um ator porto e de um pistoleiro do submundo carioca, como Frota e Daniel Silveira, o que se destacam e ganham força são justamente as castas judiciária e militar, muito mais coesas e estáveis do que os partidos e suas representações parlamentares sujeitas a pressão do voto e mais suscetíveis ao estado de ânimo das suas bases sociais.

Sob os governos petistas cresceu e se fortaleceu os pólos de poder ligados ao agronegócio e às novas regiões pujantes economicamente no país, ligadas ao negócio da soja e do gado e à expansão das fronteiras agrícolas no norte e no centro oeste. O fortalecimento desse setor deslocou o equilíbrio de poder que ainda que precariamente se mantinha entre as classes dominantes tradicionais, com seu centro de gravidade no complexo agroindustrial sobretudo do sudeste. Junto com esse deslocamento, também os partidos de direita tradicionais como o PSDB e o MDB perderam posições e entraram em uma crise estrutural. O tamanho da crise do PSDB, o partido que aglutinou a direita neoliberal nas condições do pacto de 1988, é um índice da profundidade desse deslocamento.

A ruptura do bloco autoritário que conduziu a Lava-Jato, a deposição de Dilma e a continuação do golpe em 2018 se deve à própria diferenciação de classes no seu interior. Os setores mais ligados aos pólos econômicos tradicionais, com uma estrutura de classes mais complexa e com a existência de um forte movimento sindical e popular organizados, ainda que sob a direção do PT, viram a necessidade de operar o retorno a formas de legitimação democrática para garantir as reformas e ataques econômicos alcançados. Na ausência de lideranças políticas próprias, esse setor, com o apoio da administração Biden que não quer a continuação de um governo alinhado ao trumpismo no principal país da América do Sul, reabilitou Lula. O pacto de Lula com Alckmin, o candidato favorito dos golpistas de 2016, é o resultado de que esse setor impôs suas condições ao candidato petista, que aceitou pacatamente a tutela do judiciário e de parte do bloco golpista. O Bolsonarismo e seu militarismo se fortaleceu justamente das regiões que são o pólo dinâmico do agronegócio, entre os setores que relincham como seus cavalos, gritando orgulhosos do seu Brasil que “deu certo”, o Brasil da soja, do gado e das finanças, em que o trabalhador é convertido em um empresário de si mesmo e foi bem pior nas regiões metropolitanas, nas periferias e muito minoritário entre o movimento operário mais organizado.

Um futuro governo Lula será um governo fortemente limitado pelos seus pactos com a direita, e sujeito a uma constante tutela do judiciário, que cada vez mais tem consolidado, graças ao apoio da grande mídia, das finanças e do imperialismo do EUA sob a direção de Biden, o papel de última voz frente a agudização da disputa política.

Uma força que se voltará contra o movimento de massas

É um terrível espetáculo que assistimos, dos partidos que se reivindicam socialistas e até revolucionários, como o PSOL e suas correntes internas (pensamos aqui sobretudo na Resistência e no MES, que seguem tentando falar em nome de um trotskismo que não existe nelas mais do que como uma tênue identificação emocional) e a quase totalidade das suas correntes internas, se adaptando em larga escala à Frente Ampla e à tutela judicial e do mercado financeiro a que Lula se submete sem reservas. Esse mecanismo relegitimou o judiciário, justamente entre o setor de massas que quer o fim do governo Bolsonaro. Cada uma de suas medidas arbitrárias, o poder de ser promotores, juízes e advogados de defesa nos processos que envolvem o STF, o poder de depor deputados, que se consolidou no caso Daniel Silveira, o poder de censura que se amplia no combate às fake news bolsonaristas (como se viu agora no caso da suspensão das redes de Nikolas Ferreira), cada uma dessas armas reacionárias se legitimam com os aplausos da esquerda que se reivindica socialista, além do próprio PT. Hoje se aplaude o autoritarismo judicial por criar a falsa sensação de segurança institucional contra o bolsonarismo, amanhã será contra nós que se voltará o judiciário para defender as instituições.

Essa postura é hoje justificada pelo argumento de que o mais importante é tirar Bolsonaro, e enfrentar a extrema direita que mostrou sua força nas ruas e nas urnas. Se constroem falsas ilusões que vão custar caro, já estão custando. Uma parte da esquerda – como o MES, e de uma forma menos lulista o próprio PSTU – que se tornou “lavajatista crítica” em 2015/16, insiste no mesmo erro, só que agora de forma totalmente acrítica. O erro dessa postura não consiste só em que depois o judiciário fortalecido e legitimidado pela esquerda e pelos sindicatos se voltará contra a esquerda e os sindicatos, mas que ao longo de todo o governo Bolsonaro essas armas não enfraquecem a extrema-direita. Não é possível derrotar o bolsonarismo, e os interesses que ele representa, se utilizando das armas do bonapartismo judiciário, que representa historicamente os mesmos interesses.

A dinâmica dessa disputa reacionária, como tentamos mostrar, é de fortalecimento de ambos os blocos autoritários, em detrimento dos interesses da classe trabalhadora e do povo. O judiciário impede a ação dos Daniel Silveira, das Sara Winter e dos Robertos Jefferson do bloco bolsonarista, evitando as ações mais loucas de extrema direita, que podem provocar a contra ofensiva popular. Bolsonaro sofre certa limitação na sua liberdade de movimentos, mas se favorece amplamente ao ter a oportunidade de moderar o discurso se colocando como vítima para sua base mais dura, conquistando fortes posições em toda as instituições e se garantindo como uma forte oposição ao novo governo.

Esse ciclo reacionário que já dura seis anos no Brasil só pode ser quebrado através da mobilização de massas, das greves, através da luta de classes. Além de alguns momentos em que a juventude se colocou, o único setor social que permaneceu ativo e sistematicamente mobilizado foram os povos indígenas. A fúria do ataque contra as populações originárias provocou uma resposta sistemática. Nos grotões do país, nas áreas mais isoladas, o bolsonarismo foi mais longe na aplicação prática do seu discurso. O que se coloca agora, que ficou evidente que a extrema direita, em última instância, não pode ser contida pelas instituições que servem aos mesmos interesses históricos. O que a força eleitoral do bolsonarismo e sua ampla presença nas instituições do estado mostrou que o único caminho para derrotar a extrema direita é quebrar essa passividade e construir nas ruas a única unidade, a única frente única, que pode derrotar o bolsonarismo: da classe trabalhadora, com o povo negro e os povos originários, com a juventude, as mulheres e todos os setores oprimidos.


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Thiago Flamé

São Paulo
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