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CPC da UNE: um teatro sob o signo da luta de classes (PARTE 1)

Luno P.

CPC da UNE: um teatro sob o signo da luta de classes (PARTE 1)

Luno P.

Mesmo em sua vida breve, a experiência teatral do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, o CPC da UNE, marcou a história do teatro brasileiro, sendo um tipo de "departamento de agitprop" em meio aos processos de luta de classes que tomavam a cena no Brasil e no mundo nos 50 e 60, profundamente influenciado pela política do Partido Comunista Brasileiro, o PCB e marcado pelas teorizações e disputas sobre o conceito de cultura popular. Neste ensaio de três partes, analisarei tal experiência sob o signo da luta de classes, buscando traçar os caminhos e rupturas dentro da arte teatral do CPC até sua criação, e sua dramaturgia como uma porta de entrada para o Teatro Épico de Brecht e Piscator no Brasil.

UM TEATRO DE AGITPROP?

Em sua obra A hora do teatro épico no Brasil, Iná Camargo estabelece 3 momentos que aparecem como generalização nas experiências históricas do teatro de agitprop, inclusive na União Soviética (COSTA, 2016, p. 102). O primeiro, diz respeito a criação de organizações de agitprop por estudantes, artistas e intelectuais simpatizantes da causa socialista. Já o segundo, diz respeito à aderência dos trabalhadores dentro dessas organizações, assim como a sua multiplicação geométrica. E por último, no terceiro momento, temos a derrota, assim como na Alemanha e na URSS, esmagado pelo fascismo de um lado e pelo stalinismo de outro. A particularidade do CPC da UNE, sendo essa primeira experiência de agitprop no Brasil, se dá pelo fato de ter passado para o terceiro momento - a derrota - sem ter passado pela segunda de maneira ampla [1]. A derrota, que na história do CPC tem como símbolo a sede da UNE em chamas, é expressão também da política de conciliação de classes do PCB, impedindo que a classe trabalhadora e o movimento camponês entrassem em cena frente a crise política e do regime em 1961, levando a frente a política de aliança com a burguesia, e que no debate artistíco e cultural se expressou na teorização sobre o nacional-popular. Desde esse prisma, o CPC se transforma num verdadeiro sonho interrompido, como define Beatriz Domont (1997), já eu, não sou adepto do exercício da "passadologia", dos infinitos "e se?", como metodologia para pensar os fatos históricos, mas é irresistível não sucumbir ao "e se esse sonho não tivesse sido interrompido?". Será que conseguiria romper com os limites da política do PC brasileiro? Será que avançaria rumo aos trabalhadores, não só mais encenando suas lutas, mas permitindo que os mesmos as encenassem? São questionamentos que ficam com a experiência, impossíveis de serem respondidos. Mas o que de fato interessa é que, mesmo em sua vida breve, não foram poucas as conquistas do CPC. Da abertura do caminho para as discussões sobre cultura popular, surgindo a busca por novas formas que levou os artistas do CPC a trazerem Brecht e Piscator para o Brasil, até o estabelecimento dos trabalhadores e de seus métodos de luta como um assunto também da atividade teatral, o peso que o CPC cumpre na história do teatro é enorme. Um peso que é riscado dos livros didáticos, das salas de aula, mas que é reavivado pela juventude que novamente busca um teatro que toma partido.

O QUE FOI O CPC?

O CPC, Centro popular de Cultura da UNE, foi um movimento cultural que reuniu um conjunto de jovens artistas do teatro, da música, do cinema, líderes estudantis e intelectuais sob a égide da construção de uma "cultura popular", e contou, em sua criação, com grandes nomes da história da arte brasileira como Oduvaldo Vianna Filho e Leon Hirzman. Seu regimento interno [2], aprovado em assembleia geral no dia 8 de março de 1962, estabelecia uma direção eleita (podendo ser dissolvida) e ligava o CPC como um órgão cultural da União Nacional dos Estudantes, porém mantendo a sua autonomia financeira e política em relação à entidade. Essa característica do CPC que, numa primeira vista, parecia ser contraditória, sendo ao mesmo tempo era o “órgão cultural oficial” da UNE mas ainda assim mantendo independência financeira e política da linha adotada pela entidade, num primeiro momento, não se tornava um problema, mas na medida em que se acentuava a disputa pela hegemonia do movimento estudantil, num cenário propício para o surgimento de novas organizações de juventude, como foi o caso do surgimento da Ação Popular (AP) a partir da ruptura dos quadros dirigentes mais politizados da Juventude Universitária Católica (JUC) [3], e consequentemente disputas em torno dos caminhos do CPC. A essa situação, Berlinck diz:

A UNE, por sua vez, era uma entidade que, a partir daquela data, “possuía” um órgão cultural sobre o qual não tinha qualquer controle. Essa ambiguidade não constituiu problema enquanto o movimento estudantil era relativamente coeso. Porém, entre 61 e 64, ele foi rapidamente se segmentando na medida em que seus membros eram arregimentados e até mesmo criavam organizações político partidárias divergentes. A segmentação política do movimento estudantil, por sua vez, se expressava na UNE e, na medida que isso ocorria, aumentavam as tensões entre as duas organizações. Assim, já em 63, havia um desejo unânime por parte da direção da UNE em subordinar o CPC. Este, por sua vez, resistia, dado que havia nascido independente e politicamente coeso (BERLINCK, 1984, p. 16)

Mesmo no aprofundar destas divergências, principalmente entre a Ação Popular, grupo dirigente da UNE até o golpe de 1964, e a juventude do Partido Comunista, que constituía a maioria dos militantes organizados no CPC, os docuemntos e relatos dos cepecistas apontam que a direção da UNE nunca buscou nem cercear a produção cepecista nem dissolver o CPC. Dois dos fatores cruciais para essa postura advinham do fato de que, em primeiro lugar, o CPC ajudava a nacionalizar a UNE e, em segundo lugar, a UNE não possuía os recursos financeiros suficientes para contratar profissionais com o mesmo nível de qualidade dos cepecistas. Essa dinâmica obrigava o CPC a ter uma organização formal clara que se traduziu como a forma de uma empresa prestadora de serviços. Esse elemento se contrapõe com as visões que enxergavam o CPC apenas como um grupo voluntarista e informal de jovens pequeno-burgueses apaixonados, ainda que as características voluntaristas predominassem e de fato os seus integrantes fossem em sua quase totalidade jovens universitários filhos de pequeno-burgueses. A isso, Carlos Estevam Martins, quando questionado sobre o financiamento da entidade e da atuação do CPC da Une Volante, diz:

A UNE recebia dinheiro do governo e, então, ela conseguiu financiamento para fazer a UNE Volante, que seria, basicamente, uma viagem da diretoria da UNE pelos vários estados da Federação, um contato melhor com as Uniões Estaduais de Estudantes. Mas como a UNE achava cada vez mais importante que o CPC fosse junto, ela tinha que pagar por isso. Uma coisa é certa: se a gente não atuasse como empresa, ‘tava frito (BARCELLOS, 1994, p. 83 e 84).

Em outras entrevistas coletadas por Barcellos, esse elemento das tentativas de sobrevivência do CPC como uma empresa também são marcantes. No depoimento de Ferreira Gullar, em contraposição com Estevam, ele aponta que a baixa experiência empresarial dos membros do CPC fez com que a tentativa de tornar o CPC uma empresa não desse certo, tomando como exemplo a criação da PRODAC, a distribuidora do CPC encarregada da circulação comercial de seus livros e discos:

O CPC não tinha dinheiro e ao mesmo tempo precisava ampliar suas atividades. Mas como fazer isso, sem dar nada às pessoas que ficavam lá 24 horas trabalhando? Decidiu-se então criar uma distribuidora de livros, a PRODAC [...] Só que as pessoas não pagavam, a gente não tinha experiência empresarial, enfim, foi uma grande confusão. O certo é que essa tentativa de transformar o CPC em empresa não deu certo (BARCELLOS, 1994, p. 214)

O funcionamento interno do CPC era dividido em departamentos subordinados a um Conselho Diretor composto pelos Coordenadores dos Departamentos e presidido pelo Diretor Executivo, esse responsável também pela parte financeira do CPC, todos esses subordinados à Assembleia Geral. Seu primeiro departamento foi o de Teatro, posteriormente dividido em dois subgrupos: teatro convencional e teatro de rua. Junto dele também foi criado o departamento de cinema, e, logo após, em 62, foi criado o departamento de Música, o Departamento de Arquitetura, de Artes Plásticas e o de Administração. Além desses, também foram criados o departamento de Literatura e o de Alfabetização de Adultos, porém estes últimos tendo seus integrantes cooptados para fazerem parte do MEC. Após a primeira UNE Volante, também foi criado o departamento de Relações, encarregado de manter contato sistemático com os outros CPCs pelo país. O primeiro diretor executivo do CPC foi Carlos Estevam Martins. Seu mandato durou um ano, até a eleição de Carlos Diegues, cujo mandato durou cerca de três meses e, seguido, com a sucessão de Ferreira Gullar, que dirigiu o CPC até seu encerramento pela ditadura.

UM OLHA ENTRE AS RUPTURAS

Mas para além de sua organização interna, para de fato entender o desenvolvimento até o CPC, é preciso entender esse movimento como parte de um processo de rompimento com o que caracterizou o teatro brasileiro na década de 1950, principalmente ao que diz respeito ao TBC - Teatro Brasileito de Comédia. Criado em 1948 e mantido por um grupo de empresários liderados por Franco Zampari, o TBC, que começou como um grupo de teatro amador, foi fruto do “boom” econômico do pós segunda guerra mundial e se construiu como o principal responsável no processo de profissionalização do teatro brasileiro, que no período anterior era baseado quase que apenas de Revistas e Comédias (NUNES, 1959). Esse processo teve como alicerce o apoio da burguesia paulistana, à qual Zampari pertencia e convenceu a financiar seus investimentos na área teatral. Tais investimentos foram o que permitiu um aperfeiçoamento técnico, a formação de platéia e a conquista de um elenco estável a partir da especialização de atores, cenógrafos, figurinistas e diretores, o que foram verdadeiras conquistas para o teatro brasileiro. Mas se de um lado primavam todas essas qualidades trazidas pelo TBC, no melhor estilo italiano, do outro lado, existia uma completa ausência de uma dramaturgia e repertório nacionais. Esta ausência se explica pela postura estética adotada pelo TBC, cujo centro de gravidade se dava na reprodução de símiles, no que diz respeito principalmente à estruturação dos espetáculos, do que se considerava o crème de lá crème do teatro europeu, mesmo frente a seu ecletismo de repertório teatral. Sendo assim, o TBC se apresentava como um teatro de uma classe - a burguesia - feito para ela e por ela. Com o fechamento do espaço para o investimento no teatro pela burguesia brasileira, somado ao baixo retorno por suas superproduções e a debandada de boa parte do seu elenco fixo para a criação de outras companhias teatrais, o TBC começa dar os primeiros sinais de falência em 1956. De sua queda, o TBC deixou pavimentadas as condições para a possibilidade de um teatro brasileiro de nível profissional, e é nestas condições que surge o Teatro de Arena, como aponta Berlinck:

O TBC reavaliou o teatro, conferindo-lhe seriedade e competência, porém não criou um público que pudesse tornar a empresa factível, nem ensaiou uma dramaturgia. Essa tarefa coube ao Teatro de Arena de São Paulo (BERLINCK, 1984, p. 8)

Diferente do TBC, o Teatro de Arena se apresentava como um teatro mais adequado às condições econômicas e sociais do país, um grupo semi-amador, sem estrelas, meio faz-tudo e sem uma linha de peças bem definida. Fundado em 1953, na cidade de São Paulo, através da iniciativa de Décio de Almeida Prado, naquela época professor da Escola de Arte Dramática - EAD, junto de Geraldo Mateus e José Renato, seus alunos. Essa iniciativa surgiu no 1º Congresso Brasileiro de Teatro, realizado no Rio de Janeiro em 1951, onde o tema central se desenvolvia nos desafios do “barateamento” do teatro brasileiro. O fato é que esse pequeno teatro da Rua Theodoro Bayma não tinha sequer relevância no teatro nacional em seus primeiros anos de existência, nem fazia frente contra outros empreendimentos de maior estatura e com maior apoio empresarial, o que obrigou o Arena a buscar um novo público, um que fosse ligado àquelas condições econômicas nas quais o Arena estava inserido. Mas aqui não nos serve adentrar profundamente na história dos primeiros anos do Arena, e sim no momento que marca uma inflexão e muda os seus rumos: sua fusão com o Teatro Paulista do Estudante, o TPE, em 1956.

O TPE era um grupo de teatro amador criado em 1955 como política cultural dos militantes do PCB para os jovens secundaristas, com o principal objetivo de atrair esses jovens para as fileiras do partido. Seus principais fundadores foram Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho e Vera Gerte, junto de Ruggero Jaccobi, que também já fora ligado ao Partido Comunista Italiano. A ideia central do TPE era a de se desenvolver um teatro popular, alinhado às massas trabalhadoras e populares, por isso toda circulação de suas peças se dava em escolas e sindicatos. Pelo fato de não terem espaço físico para a montagem de suas peças, Jaccobi procurou o jovem Teatro de Arena para formarem uma parceria que se estabeleceu em três acordos fundamentais, como aponta Berlinck retomando os Termos do Acordo entre o Teatro de Arena e o Teatro Paulista do Estudante, assinado por José Renato, Gianfrancesco Guarnieri, Rogério Duprat e Oduvaldo Vianna Filho:

“a) formação de um numeroso elenco que atuará sob a denominação de Elenco Permanente do Teatro de Arena, simultaneamente no palco do Teatro de Arena e em espetáculos externos, divulgando a arte cênica em fábricas, escolas e cidade do interior do Estado; b) formação de um movimento teatral de apoio às obras e autores nacionais, bem como de divulgação teórica e prática dos problemas do teatro; c) ajuda ao já consagrado Teatro de Arena por parte do TPE que o considera uma instituição de grande utilidade para nossa cultura e, ao mesmo tempo, ajuda do T.A. ao TPE através de aulas, formação de novos elementos e contato permanente com o palco” (BERLINCK 1984, p. 10)

Logo após essa fusão, o TPE deixou de existir, com boa parte de seus participantes se integrando ao Teatro de Arena, causando uma profunda mudança rumo a um Arena que cada vez mais se estabelecia como um “novo grupo”. É a este novo grupo e nesta revolução interna no Arena, fruto da pressão dos jovens militantes do TPE que empurravam os caminhos do Arena em direção das grandes questões nacionais, a quem podemos melhor identificar uma ruptura mais definida com o teatro do TBC, deixando marcas na história brasileira, como aponta Guarnieri:

A fundação do TPE representou um marco, não só na história do teatro paulista como na história do teatro brasileiro. Foi o embrião de todo pensamento e posicionamento do Teatro de Arena de São Paulo tal como se celebra hoje (GUARNIERI 2005, p. 24)

Além disso, a contratação de Augusto Boal, recém chegado dos Estados Unidos e carregando em sua mala uma farta experiência de fruição experimental ocorridas no teatro da Universidade de Columbia, acaba também por potencializar esse novo momento do Teatro de Arena. Porém, tal cenário se enfrentava constantemente com os assédios do mercado do entretenimento e com uma subsequente crise financeira que tomava conta do Teatro de Arena, o que quase significou sua falência em 1957, não fosse o sucesso da montagem de Eles Não Usam Black-Tie, por José Renato e escrito por Guarnieri, um texto que é basilar para entender a formação até o CPC, sendo um primeiro momento da entrada de cena da classe trabalhadora e a luta de classes tomando os palcos, ainda que escondida entre a linguagem dramática que a suprimia, elemento que melhor será desenvolvido posteriormente neste ensaio. Com a crise, Vianinha havia voltado para a casa de seus pais no Rio de Janeiro e Boal foi dirigir Dercy Gonçalves, mas o sucesso de Eles Não Usam Black-Tie os trouxe de volta. Já em 1959 lançaram Vianinha como autor teatral com a montagem de Chapetuba Futebol Clube, escrita no Seminário de Dramaturgia no Arena. A partir das dramaturgias escritas no Seminário de Dramaturgia e com a chegada de Boal, o Arena transformou sua própria forma de organização, que neste momento começou a rumar num sentido mais radicalmente de equipe, ou seja, o fim de posições estanques, com todos os integrantes sendo parte integral não só dos processos de criação mas da gestão comercial, intelectual e da orientação estética do Arena. Para além disso, as obras de Guarnieri e Vianinha marcaram radicalmente o sentido que seguia a dramaturgia brasileira. Num primeiro momento, como aponta José Renato, essa mudança de sentido se deu em relação ao público:

Começávamos a firmar a opinião de que o diálogo com o público brasileiro se fortalecia na medida em que colocávamos em cena a nossa língua viva, nossos costumes, nossos problemas, nosso jeitão, enfim, em detrimento da invasão constante de uma problemática importada que predominava nos nossos palcos (apud BERLINCK, 1984, p. 11)

Mas, já em 1959, essa mudança também se expressa com um sentido de criação de arte que toma partido, ou seja, que seja uma arma de ação dos explorados e oprimidos. Que sirva para discutir as questões mais sensíveis que atravessavam o Brasil, da desigualdade à fome, ao desemprego e também aos métodos de luta da classe trabalhadora e campesinato - das greves, paralisações - que já haviam adentrado em Eles Não Usam Black-Tie, num sentido de elevação da consciência de classe. A essa nova dramaturgia, Guarnieri define de tal modo:

“Não vejo outro caminho para uma dramaturgia voltada para os problemas de nossa gente, refletindo uma realidade objetiva, do que uma definição clara ao lado do proletariado, das massas exploradas. Para analisarmos com acerto a realidade, para movimentarmos nossos personagens em um ambiente concreto e não de sonho, o único caminho será o aberto pela análise dialética-marxista dos fenômenos, partindo do materialismo filosófico (...) Não há possibilidade de uma definição do artista em sua arte sem que antes se defina como homem, como elemento da sociedade, como participante ativo em suas lutas (...) Nenhuma literatura de gabinete surpreenderá o nervo de nossas atribulações. A cultura popular, empírica, a arte popular, fruto direto dos mais autênticos sentimentos populares, são fontes inesgotáveis de ensinamentos e inspiração; são elementos indispensáveis para uma apreciação acertada de tudo o que diz sobre a vida, o homem, a sociedade. A pretensiosa e vaga aspiração à verdade absoluta somente poderá ser perniciosa para todo artista jovem. Errar com o povo será sempre menos danoso do que errar contra ele (...). Sonhamos com um teatro que atinja realmente as grandes massas. Com espetáculos realizados para todas as classes e não apenas para uma minoria (...). Sem uma determinação do Estado será impossível levarmos o teatro às massa populares. As Cias. não podem fazer frente aos problemas econômicos (...). O ideal de um teatro popular precisa ainda ser conquistado. Essa conquista deverá ser feita no terreno político (...). Nós, autores jovens, determinados a criar uma dramaturgia popular, não podemos ficar a tecer considerações sobre os males de um teatro de público tão restrito. Devemos continuar em nossa obra a fazer um teatro de bases populares, contando as possibilidades, conquistas e lutas de nosso povo, impondo uma cultura popular, demonstrando à minoria que vai ao teatro o que ela ignora, não perdendo oportunidades de uma vez ou outra, realizarmos espetáculos para as grandes massas e, na prática, através de uma luta política, batalharmos pelas reivindicações atuais sentidas de nosso povo, colocando entre elas, o teatro” (apud BERLINCK, 1984, p. 12)

Essa definição é interessante pois nela aparecem elementos basilares para o que viria a ser parte das teorizações relacionadas à construção da cultura popular, principal objeto de discussão e disputa do CPC, no qual posteriormente iremos nos debruçar. Mas essas definições chocavam com um dilema perfeitamente expresso por Vianinha com a ideia de que “ o Arena era porta-voz das massas populares num teatro de cento e cinquenta lugares”. Essa clara limitação de como chegar às massas populares da qual fala Vianinha se somava ao descompasso do Arena enquanto empresa, produzindo choques em seu interior. Esse descompasso propiciou ainda mais que o Arena ficasse afastado das camadas populares, fazendo com que o Arena não chegasse a armar um teatro de ação, mas sim um teatro inconformado. É frente a esses dilemas que começa a surgir um movimento de rompimento de Vianinha com o Teatro de Arena. Após a temporada de Eles Não Usam Black Tie e Chapetuba Futebol Clube, assim como com a estreia de Revolução na América do Sul, no Rio de Janeiro, entre os anos 1960-1961, Vianinha decide escrever e montar uma peça chamada A Mais Valia Vai Acabar Seu Edgar, e, para isso, vai atrás do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) em busca de auxílio para entender melhor o conceito marxista de mais-valia. É neste momento que Vianinha tem seus primeiros contatos com Carlos Estevam Martins, também filiado ao PCB na época. Desse contato, Vianinha começa também a se aproximar da experiência do Movimento de Cultura Popular (MCP) do Recife, o que posteriormente serviria de grande exemplo para a construção do CPC.

A peça A Mais Valia Vai Acabar Seu Edgar, que contava com a colaboração de Leon Hirzman, começa a ser montada e ensaiada no pátio da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Brasil. Já rompido com o Teatro de Arena, Vianinha, junto de Hirzman e de Estevam Martins procuram a UNE para propor a realização de um curso de história da filosofia a ser realizado no auditório da UNE, ministrado pelo filósofo José Américo Peçanha como continuação da experiência iniciada com A mais-valia vai acabar, e desse curso, que contava com cerca de 800 alunos, é que surge o CPC da UNE.

Mas o desenvolvimento até aqui exposto sobre os caminhos do Arena ao CPC seria completamente parcial e insuficiente por fora de entender os movimentos políticos que se estabeleciam no Brasil e no mundo. Esta nova subjetividade dos artistas que fundaram tal experiência foi moldada por profundas crises, como foi a crise de 1960, quando a economia brasileira estava corroída por uma onda de desemprego, inflação e queda nos investimentos, o que fez com que em todo o pré golpe de 64 houvesse greves e uma profícua atividade dos trabalhadores nas cidades e no campo, o que sem dúvidas dava medo na espinha dos militares e da burguesia frente à possibilidade de que esses processos de luta de classes se desenvolvessem em uma revolução, como foi em Cuba em 1959. Aqui dou atenção principalmente às Ligas Camponesas, que marcavam também a luta no campo. Daniel Matos e Edison Urbano remarcam, em seu texto O processo revolucionário que culmina no golpe de 64 e as bases para a construção de um partido revolucionário no Brasil, a força que esses processos desempenhavam no campo, tornando a questão agrária parte do centro da luta de classes no Brasil.

Não é de se surpreender que a questão da terra acabaria também por ser parte do centro de interesse da dramaturgia cepecista, vide as peças camponesas de Vianinha, Quatro quadras de terra e Os Azeredo mais os Benevides, das quais não tratarei neste ensaio. Parte desses movimentos político-ideológicos se expressavam também no peso da adaptação aos nacionalismos burgueses, que vinha desde o ISEB - Instituto Superior de Estudos Brasileiros, criado pelo governo de Juscelino Kubitschek em 1955. Essa adaptação surgia no contexto de mudanças no cenário político brasileiro, da renúncia de Jânio Quadros ao governo de João Goulart e sua política das “Reformas de Base”. Junto a isso se deu também a política das frentes populares e de aliança com a burguesia nacional, política oficial do PCB, que também se traduzia na defesa das “Reformas de Base” de João Goulart. Porém, a todos esses elementos reservarei a segunda parte deste ensaio, onde adentraremos nas teorizações sobre cultura popular dentro do CPC.

REFEFÊNCIAS:

BARCELLOS, Jalusa. CPC da UNE: uma história da paixão e consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.

BERLINK, Manuel Tosta. O Centro Popular de Cultura da UNE. Campinas: Papirus, 1984, (Coleção krisis).

COSTA, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2016.


. Nem uma lágrima: teatro épico em perspectiva dialética. São Paulo: Expressão Popular: Nankin Editorial, 2012.

COSTA, I. C; ESTEVAM, D; BOÂS, R. V.(Orgs.). AGITPROP: cultura política. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

DOMONT, Beatriz. Um sonho interrompido: o Centro Popular de Cultura da UNE (1961 – 1964). São Paulo: Porto Calendário, 1997.


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FOOTNOTES

[1Destaco a ideia "de maneira ampla", pois ainda é possível enxergar ínfimos vislumbres do segundo momento com a experiência do CPC de Santo André, feito majoritariamente por operários e ligado ao Sindicato dos Metalúrgicos.

[2Manuel Tosta Berlinck, em sua obra O Centro Popular de Cultura da UNE é uma fundamental referência nos estudos sobre a história do CPC. È nessa obra que se encontram documentos sobre o funcionamento do CPC.

[3ruptura que se deu frente à deliberação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que proibia que os "jucistas" pudessem assumir cargos dentro das organizações do movimento estudantil
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Luno P.

Professor de Teatro e estudante de História da UFRGS
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