Logo Ideias de Esquerda

Logo La Izquierda Diario

SEMANÁRIO

Cinema e Maio de 68 no intenso agora

Javier Gabino

Cinema e Maio de 68 no intenso agora

Javier Gabino

O cinema nos informa do presente, inclusive se se trata do passado", teria dito o historiador e cineasta francês Marc Ferro organizando grande parte de sua obra para demonstrar essa premissa. Pioneiro no uso da imagem como documento de história e outorgando-lhe um "status" similar ou superior ao texto, deixou em choque o mundo acadêmico de sua época que se sentia mais cômodo ordenando a história por escrito e em um relato linear fechado. Ferro faleceu no dia 21 de abril aos 96 anos vítima de coronavírus, o que constitui um lembrete de nossa crise atual.

"Há algo na imagem em movimento, e no que significa, que escapa às palavras. As imagens têm mais significados que as palavras. As imagens têm outros significados. Isto implica que qualquer explicação de um filme só é um pálido fantasma de sua visão", teria escrito o historiador estadunidense Robert A. Rosenstone em seu livro O passado em imagens, deixando em choque seus colegas ao propor elevar o cineasta ao "status" de historiador, com métodos e ferramentas de conhecimento às quais o texto não pode aspirar. Nem sempre sabemos o que estamos filmando" diz João Moreira Salles, diretor de No Intenso Agora (2017) nos primeiros minutos do filme.

O Brasil, para a mesma época, imagens de uma família que também não conheço. A câmera acha que está registrando os primeiros passos de uma menina. Sem querer, mostra também as relações de classe no país. Quando a menina avança, a babá retrocede. Ela não faz parte do quadro familiar e muito provavelmente sem que ninguém lhe peça, vai ocupar o fundo da cena, onde se confunde com os transeuntes".

A leitura que Moreira Salles faz desse registro casual -e do lugar da nana mulata nele- é tão evidente que leva à pergunta de por que esse significado estaria oculto quase para qualquer que veja a cena. Com esse olhar lúcido vai percorrer centralmente o registro fílmico do Maio francês e da Primavera de Praga, fragmentos do Brasil e da China da Revolução Cultural a partir de um disparador próximo: os registros amadores que sua mãe com 37 anos fez em uma viagem ao gigante asiático em outubro de 1966.

A mulher teria ido à China maoísta no que anotou como "a viagem mais fascinante de sua vida" e retratou um montão de gente feliz realizando atividades diversas: meninas dançando na escola, transeuntes que perambulam pelas ruas ou junto ao mar, lavandeiras em um arroio, jovens com o livro vermelho. "Ela foi buscar uma coisa mas encontrou outra: não o passado, mas a História em ação".

A História em ação é o que Moreira Salles descobre nas filmagens urgentes, caseiras, militantes ou televisivas que captam a política nas ruas e terminarão por "prestar testemunho" e nos dar uma enorme informação da história sem querer. Só tem que saber olhar. No intenso agora é um ensaio cinematográfico sobre política e também é um ensaio político sobre cinema, sobre imagem e som.

Uma das imagens que desconstrui nas suas múltiplas representações é a de Daniel Cohn Bendit, o lendário dirigente estudantil de 68 e hoje eurodeputado pelo Partido Verde Europeu, ao qual voltará durante todo o filme com um olhar crítico. Em uma de suas primeiras aparições Moreira Salles o descobrirá no teatro da televisão, o lugar exclusivo de comunicação do poder, onde os jovens dirigentes haviam sido convidados mas colocados em um espaço secundário da cena. Em apenas onze minutos, os cinegrafistas percebem a relação de forças e vão mudando os ângulos da câmera até que "Dani El Rojo" fica no centro do plano.

Quem ocupa o centro? Quem está no fundo, quem está "fora do campo", quem está mais alto numa conversa, quem ouve, quem fala, quem dorme, quem sorri, quem chora, como se vestem ou como usam o cabelo. Mas também descobrir se o registro da imagem é legal ou furtivamente. Tudo permite aproximar-se do 68 por cima dos muros do tempo.

O movimento estudantil americano foi mais libertário e radical que o francês? Por que os registros mostram que nos círculos de conversação, assembléias e reuniões, as mulheres escutam mais do que falam?

"E há os negros. Aqueles que aparecem ao longo de horas de material pesquisado, mesmo aqueles que se misturam com os estudantes, estão sempre nas extremidades do quadro, invariavelmente quietos e quase sempre terno…"

E as relações entre operários e estudantes? O que simbolizam as conversas que "não se dão à mesma altura" com os operários nos telhados ou as janelas das fábricas falando de longe? Estamos vendo a "desconfiança" que sentem e escreverá em suas memórias o jovem trotskista Alain Krivine que vemos aplaudindo em um comício?

No intenso agora é uma colagem pessoal e política, um documentário poético onde "qualquer explicação só é um pálido fantasma de sua visão". As imagens de arquivo não são apenas pesquisadas, encontradas e resgatadas, mas também são enriquecidas e relacionadas. E nessa montagem o documentário nos leva a emoções diversas, que vão brotando das reflexões e da sensação de sentir a eletricidade desdobrada em 68.

Voltando à história e ao cinema, o historiador Rosenstone sugere uma ideia produtiva: que o método propriamente cinematográfico de abordar o passado é o experimental. Sem desmerecer o drama histórico hollywoodense, propõe que a pretensão do "filme realista" que buscaria "abrir uma janela ao mundo do passado" seria a forma que menos alcança seu objetivo. Enquanto que a colagem, a subjetividade desdobrada, a mistura de estilos, a invenção, a fusão de ficção e documentário, a exposição do método, ou seja, a linguagem cinematográfica liberada de toda atadura, permitiria aproximar-nos da complexidade sensitiva, sonora e vivencial do passado.

Mesmo que consideremos essa premissa como verdadeira, o problema são as imagens em um mundo dominado por imagens. Onde a maioria das pessoas forma sua idéia do passado através do cinema e da televisão, ou através de filmes de ficção, séries ou documentários produzidos em massa pela indústria cultural. A formação de sentido sobre elas é completamente assimétrica. Neste mundo as imagens devem ser discutidas, as do presente e as do passado.

O que foi o maio francês? O que aconteceu na primavera de Praga? Que imagens se formaram desses fatos em nossa memória coletiva? Moreira Salles com No Intenso agora nos convida a voltar a ver o que se esconde por trás do naturalizado.

A preocupação que parece estar a atravessar é semelhante às que o cineasta francês Chris Marker tomou em grande parte da sua obra. Mesmo na voz reflexiva e nos fragmentos de cartas que ouvimos em No intenso agora há um eco de São Soleil (1983). Nesse documentário Marker se pergunta como atua a memória sobre o presente, interroga-se sobre as derrotas de 68 e as imagens desses fatos. Falaria com seu companheiro Hayao Yamaneko, que daria uma solução ao problema: "Se as imagens do presente não podem mudar, vamos mudar pelo menos as do passado...".

Para mudar essas imagens do passado, Moreira Salles convida-nos a procurar algo tão humano e desejável como a alegria. Mas não pretende voltar a contar a história conhecida das felizes revoluções culturais dos anos 60. Em uma entrevista disse que sua motivação inicial foi descobrir as imagens de felicidade de sua mãe nos anos 60 e tentar entender por que entristeceu com o tempo, algo que o levou a pensar na geração de maio "e o fim da intensidade". Mas não se aproxima idealizando o 68, atreve-se a perguntar tudo, até qual foi a verdadeira origem dos mais famosos slogans libertários do Maio, e afirmar que nem tudo é o que parece. Na realidade tem uma abordagem bastante respeitosa mas crítica, embora talvez procure aí as causas de um mundo onde hoje não parece haver motivos de felicidade.

É nesse caminho que com a mesma intensidade com que percebemos a alegria, sentiremos a derrota da Primavera de Praga com os tanques soviéticos ocupando a cidade desde o registro de alguém desconhecido que filma escondido atrás das cortinas ("não há nada parecido no maio francês"). Ou poderemos ver a longa sequência conhecida da operária da fábrica Wonder que chora para não voltar a trabalhar depois que o Partido Comunista e a burocracia sindical entreguem a greve geral negociando aumento salarial "e não outro modo de vida".

No intenso agora é um filme nostálgico mas que nos oferece ao mesmo tempo antídotos a esse sentimento de perda. O primeiro é que não o esconde; assim exposta de maneira explícita, essa sensação pode ser tomada ou não, sabe-se sim que isso sente Moreira Salles. Qual é a sensação do telespectador?

Em segundo lugar, o que nos sugere o nome do filme?. Está claro que o cinema sempre é "um intenso agora" que obriga a imagem a voltar à vida cada vez que a reproduz, mas também pode entender-se como um filme (estreado em 2017) sobre fatos históricos, mas abordados desde um intenso agora de crise capitalista, guerras e protestos. O papel da TV e as forças repressivas, da velha ordem resistindo a toda ameaça, não estão fora do presente. Enquanto as perguntas que se colocam estão em vigor, em que consiste a união entre operários e estudantes? Como se pode preservar a espontaneidade de um processo de revolução sem cair na solenidade ou na auto-paródia? E, sobretudo, de que serve reclamar transformações sociais sem apresentar um programa revolucionário?

O documentário é dedicado ao diretor, ator e roteirista Eduardo Coutinho falecido em 2014. Falando do filme, Moreira Salles lembra que ele teria dito: "Há derrotas maravilhosas e há vitórias muito medíocres" para logo acrescentar que seu filme está "na perspectiva biográfica da derrota dos militantes, mas não na perspectiva histórica, porque não há derrota". É que, em definitivo, como teria dito Chris Marker, "a história só amarga aos que esperavam que fosse doce".

Traduzido por Dani Alves.


veja todos os artigos desta edição
CATEGORÍAS

[Carcará - Semanário de Arte e Cultura]   /   [maio de 1968]   /   [Arte]   /   [Cinema]   /   [Cultura]

Javier Gabino

Comentários