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Comentários ao livro Nós Mulheres, o Proletariado de Josefina Martínez

Alessandra Teixeira

Comentários ao livro Nós Mulheres, o Proletariado de Josefina Martínez

Alessandra Teixeira

"O livro que a argentina Josefina Martínez nos presenteia é um registro ao mesmo tempo histórico e contemporâneo acerca do papel estratégico que ocupam as mulheres para o processo de acumulação e de reprodução social sob o capitalismo".

No dia 24/06 ocorreu o lançamento do livro “Nós mulheres, o proletariado” de Josefina Martínez na Universidade Federal do ABC, em São Bernardo/SP. A mesa contou com mediação de Maíra Machado, professora da rede estadual em Santo André/SP e apresentadora do podcast Feminismo e Marxismo, e presença de Letícia Parks, co-autora do prefácio do livro junto a Diana Assunção e militante do Pão e Rosas, e Alessandra Teixeira, Professora adjunta da Universidade Federal do ABC - UFABC, coordenadora do grupo de Pesquisas Resistências, controle social, memória e interseccionalidades. Reproduzimos a seguir a intervenção de Alessandra na mesa de lançamento.

O livro que a argentina Josefina Martínez nos presenteia é um registro ao mesmo tempo histórico e contemporâneo acerca do papel estratégico que ocupam as mulheres para o processo de acumulação e de reprodução social sob o capitalismo.

Além de trazer à tona o debate de sua sobre-exploração – apropriação do tempo e a exploração do trabalho feminino para a acumulação, tema aliás já bastante debatido pelos feminismos marxistas e socialistas – a autora resgata o protagonismo das lutas coletivas das mulheres para a superação das opressões e violências sistêmicas (não só de gênero) sob o capitalismo. Lutas essas sempre tão apagadas, mas que são incontornáveis para uma compreensão das resistências e conquistas dos trabalhadores/as que se deram ao longo da modernidade, e que refletem formas variadas de enfrentamento ao capital – desde expressões mais conhecida como greves, motins, protestos até insurgências variadas, que reinventam expedientes outros de mobilizações como o contemporâneo ciberativismo e outras formas de resistência.

Ao mesmo tempo, esta obra permite mais uma vez interpelar as representações e as narrativas, também históricas e contemporâneas, pretensamente dominantes, do feminismo liberal e “civilizatório”(pra usar aqui uma expressão da feminista decolonial Françoise Vergès), em suas fabulações e marcos históricos (como as chamadas “ondas feministas”) que tendem a omitir e secundarizar as lutas das mulheres operárias e suas agendas de vanguarda pela socialização do cuidado, pelos direitos sexuais e reprodutivos e pelo trabalho, inclusive como fatores decisivos e imprescindíveis para as conquistas legais ao longo do século XX, como o direito ao voto e ao divórcio por exemplo.

O livro ainda permite adensar as relações entre marxismo e feminismo, trazendo novos aportes teóricos e analíticos possíveis a enfrentar configurações contemporâneas do capitalismo, como a discussão sobre a colonialidade e pós-colonialidade e sua contribuição à interpretação das dinâmicas que se instalam hoje no contexto de uma renovada divisão internacional do trabalho no panorama da globalização. Assim, renovados fluxos migratórios produzem sujeitos indocumentados e “ilegais”, úteis para a superexploração através sobretudo do papel que a precarização da mão de obra feminina (e assim que a feminização da pobreza) desempenha na geografia da globalização neoliberal, ou sejam, a inserção precária de mulheres imigrantes (e racializadas) nas cadeias internacionais produtivas, especialmente permeadas pelo racismo e a xenofobia e pela violência sistêmica.
Os casos relatados por Martínez trazem ainda a atualidade e o caráter de sindemia que a COVID 19 carrega, por ter precarizado ainda mais essas relações já em si precarizadas, quer das trabalhadoras superexploradas da indústria têxtil - marcadas pela subcontratação de uma mão de obra em geral imigrante, jornadas exaustivas e ininterruptas em condições de insalubridade - quer na deflagração do caráter essencial mas continuamente desvalorizado, e sobre-explorado das trabalhadoras da limpeza e de cuidado.

Limpando hospitais, escritórios e empresas (“os espaços que o patriarcado neoliberal precisa para funcionar” tomando emprestada mais uma expressão de Françoise Vergès), ou na linha de frente do trabalho de cuidado e no trabalho doméstico (sub)remunerado, em todas essas facetas, o trabalho essencial, embora extremamente desvalorizado dessas, que essas mulheres exercem estão a evidenciar que a crise contemporânea do capitalismo é sobretudo uma crise sociorreprodutiva, como aponta a filósofa Nancy Fraser. Essa crise vem a escancarar, assim, a falácia da privatização e da terceirização da esfera da (re)produção societal pregada pela cartilha neoliberal, e sustentada pelo ideário conservador e autoritário expresso fortemente através das máximas do cisheteropatriarcado capitalista contemporâneo, na retórica da valorização da família e da subordinação da mulher, na destruição do estado social, dos direitos sociais, da proteção social, das formas coletivas e compartilhadas de cuidado, do comum, das experiências e saberes coletivos e socializados em espaços como as escolas, ou espaços comunitários, ou territórios de produção cultural, de lazer, etc.

Contudo, ao mesmo tempo que esse diagrama levou a uma sobre-exploração das mulheres pobres, racializadas e imigrantes, às custas de um “empoderamento feminino” de apenas de 1% das mulheres, ele tem propiciado, em outro sentido, insurgências e mobilizações COLETIVAS que se dão no coração desses processos de exploração, que renovam os termos do que pensamos como luta de classes, apontando que novas subjetividades podem e têm emergido justamente dessas fronteiras de disputa em que mulheres se reconhecem ao mesmo tempo como imprescindíveis ao capital e assujeitadas pela interseção de opressões, atualizando assim a noção marxista de “consciência de classe”. É isso que dá mais uma vez sentido à excelente escolha pelo título brasileiro pelas autoras que prefaciam o livro - Leticia Parks e Diana Assunção - posicionando as mulheres como os mais pungentes sujeitos do proletariado hoje (e talvez não só hoje como o próprio livro nos lembra).

Ora, se Marx definiu o proletariado como o verdadeiro sujeito revolucionário, único capaz de protagonizar a revolução que ponha fim a todas as formas de exploração e alienação por ser aquele sujeito que as vive na sua maior plenitude – por ter sido despojado de propriedade, da natureza , dos outros seres e de si mesmo, não tendo assim mas nada a perder – podemos compreender que somos (nós), mulheres trabalhadoras, que melhor acessamos essa condição – de uma despossessão ou expropriação tamanha a qual, aliada ao reconhecimento de que toda a riqueza é por nós produzida, irrompe em nós a consciência e a responsabilidade do nosso papel revolucionário para a superação das formas de exploração que nos oprimem e que acarretará, por consequência, a superação de todas as outras formas de exploração na sociedade. Por isso mesmo somente em nós tal consciência pode se apresentar de maneira unicamente disruptiva. Nós, mulheres, o proletariado.

Como podem se dar os termos da mobilização coletiva das mulheres, passo seguinte à tomada de consciência para o processo revolucionário, levando em conta o diagrama de desigualdades e violências, e o passado colonial que nos atravessa no Brasil?

Nesse ponto eu gostaria de destacar a absoluta centralidade que o trabalho doméstico “por delegação”, precarizado, desvalorizado e racializado, ocupa na vida das mulheres trabalhadoras e são expressão dos arranjos desiguais e violentos que atravessam todo o tecido social no Brasil. Assim, se queremos falar de proletariado no país, não podemos tirar os olhos das mulheres desempenham o essencial, mas também perigoso, insalubre e mesmo cruel e sobretudo invisibilizado trabalho de limpeza e de cuidado. Martínez também destacou a importância do trabalho doméstico (sub) remunerado pelas imigrantes latinas na Espanha, pelas mulheres do leste europeu na Europa ocidental e, de um modo geral, pelas mulheres racializadas - indígenas do Paraguai e Peru que trabalham em casa de famílias de elite branca na Argentina, sendo uma das expressões que atinge a noção de “trabalho escravo” que dá título ao livro.

Diana Assunção e Letícia Parks, acertadamente, justificam a alteração do título da edição brasileira pois não podem deixar de marcar a importância que a escravidão de sujeitos sequestrados da África durante quase 4 séculos representou na experiência fundacional do nosso país e suas marcas e reinvenções absolutamente presentes e definidoras das dinâmicas atuais, sobretudo da exploração das mulheres negras no país. O trabalho doméstico “terceirizado” ou “por delegação”, e toda a exploração, precarização, desprestígio e enfim violência, com que ele é representado e exercido majoritariamente por mulheres negras e indígenas no Brasil, tem um papel destacado e incontornável se pretendemos falar de mulheres trabalhadoras, proletariado e consciência de classe no país.

Prolongamento e herança da escravidão colonial e imperial no país, o trabalho doméstico foi normalizado desde o fim da escravização como seu prolongamento. Há inúmeros registros na literatura, em pesquisas históricas, e no cotidiano de milhões de famílias ainda hoje, das práticas de escravização de mulheres tomadas por famílias brancas (ou não racializadas) ainda quando crianças, para o exaustivo e extenuante trabalho doméstico, gratuito, sem descanso, sem liberdade, e por toda uma vida. Sempre acompanhada pela menção cordial e pacificadora de ser “da família "ter sido pega “para criar", não é de se espantar assim que entre 2020 e 2022 tenham sido noticiadas (talvez pela primeira vez) casos de mulheres sendo resgatadas nessas condições - algumas tendo passado uma VIDA INTEIRA com uma única família em diversas gerações, como nos casos de Madalena resgatada em 2020 aos 48 desde os 8 anos), e dona Madalena resgatada em 2022 ao 77 (também desde os 8 anos com a mesma família)! A prática de “ter” uma empregada doméstica (o verbo utilizado no discurso nativo é esse mesmo), quer na condição análoga à escravidão, ou de superexploração, levou e ainda leva milhões de famílias de classe alta e média a “confinar” essas mulheres (mesmo as não escravizadas) aos odiosos “quartos da empregada”, criação nacional que foi muito bem retratada pela escritora Eliane Alves Cruz na obra “Solitária", cujo título é bastante sugestivo.

O trabalho doméstico desempenhado por mulheres (a maioria negra) no país expressa a realidade –oficialmente - das 6,7 milhões de mulheres no país (10% da PEA feminina), e representando Categoria profissional mais destacada entre mulheres e sobretudo mulheres negras, permanece, contudo, a mais desprotegida socialmente, sendo que apenas 20% em 2019 eram formalizadas e tinham alguma proteção social. A luta dessas mulheres, em diferença à realidade da Argentina de recente mobilização por sindicalização como nos conta Josefina, é marcada por um longo percurso de embates pelo reconhecimento e regulamentação da profissão, pelos direitos trabalhistas e pela proteção social, desde praticamente a abolição.

Laudelina Campos lutou pela sindicalização desde os 1930, fundando a primeira associação em 1934, sempre profundamente aliada ao movimento negro. A sindicalização legal veio tardiamente, e a exclusão da CLT nos anos 1940 foi a prova definitiva que a burguesia e o estado patrimonialista brasileiro não abririam mão facilmente dos privilégios e da violência racial e de gênero (interseccional) que erigiram esse estado e que organizaram toda uma ordem social, muito bem azeitada pelo mito da democracia racial, responsável por retardar o dissenso e as reivindicações radicais por direitos. As trabalhadoras domésticas foram as ÚLTIMAS a terem seu reconhecimento jurídico no país — nem mesmo a CF de 1988 as equiparou aos trabalhadores em direitos, mantendo praticamente intacto o pacto feito com a casa grande de manutenção da escravidão ou de seus resquícios na figura da empregada doméstica. A luta dessas mulheres na Constituinte teria desdobramentos finalmente com a PEC das domésticas, apenas em 2013 e em sua regulamentação em 2015, sendo a ÚLTIMA CATEGORIA PROFISSIONAL no país a conquistar RECONHECIMENTO JURÍDICO PLENO.

O trabalho doméstico remunerado e a questão do cuidado e da DST no país é o que expõe, talvez de modo mais eloquente, a fratura que ocorre entre as mulheres, promovida pelos marcadores interseccionais, o que dados da PNAD IBGE de 2019 (pré-pandemia) contribuem para atestar. Embora a divisão sexual do trabalho atinja a todas as mulheres (nos diferentes grupos raciais os homens desempenham menos da metade de horas de horas que as mulheres nos afazeres domésticos), a taxa de participação (inserção no mercado de trabalho) é muito diferenciada entre as mulheres brancas e negras, chegando as brancas sem filhos a alcançar o mesmo patamar dos homens, 73%. Mesmo quando têm filhos, as mulheres brancas conseguem uma taxa bastante superior à das negras com filhos: 62% contra apenas 49% das mulheres negras com filhos. Quando as mulheres negras não têm filhos, sua taxa de ocupação é de 63%, portanto inferior àquela alcançada pelas brancas na mesma condição, e igualando-se a essas quando mães, o que denota a desvantagem socioeconômica das mulheres negras e sugere que assumem a responsabilidade pelo cuidado mesmo quando exercem a maternidade, ao mesmo tempo que indica que as mulheres brancas, quando têm filhos, podem contratar outras mulheres para delegarem o trabalho de cuidado.

Se a fratura entre as mulheres é indiscutivelmente existente, ela nem por isso é incontornável. Esses dados nos convocam a pensar os termos de uma coalizão urgente e necessária, para além do possível. O epílogo do livro de Josefína conclama a nós, as mulheres de todo o mundo, a unir-nos, através da luta e com vistas à superação das opressões e explorações. Como vamos pensar os termos regionais ou locais dessa convocação frente às nossas idiossincrasias que marcam a condição das mulheres numa sociedade atravessada pelo “racismo mascarado” (que nos fala Lélia Gonzalez), pelas reinvenções das relações de escravidão justamente nas casas de família através da apropriação do corpo, da alma, da vida, dos sonhos das mulheres negras? Como tornar essa união possível se não enfrentando as contradições fundantes dos privilégios de raça e classe entre as mulheres, para suprimir suas raízes, voltando agenda prioritária às mulheres “que limpam o mundo” buscando efetivar seus direitos e proteção social, sua valorização profissional, equidade salarial e econômica, além da socialização do cuidado e responsabilização coletiva e estatal da reprodução social - enfim justiça social para alcançar a sua dignidade e a sua emancipação - pois só assim a emancipação e a libertação de todas (todes e todos) será mesmo possível.


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Alessandra Teixeira

Professora adjunta da UFABC
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