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DEBATE COM A ESQUERDA | Debate com Guilherme Boulos e os dilemas da esquerda

As duas últimas colunas de Guilherme Boulos na Folha de São Paulo se dedicam a analisar a situação atual do governo Bolsonaro e qual seria o caminho para derrotá-lo. São duas colunas diferentes mas que se complementam. Na primeira Boulos faz uma defesa de uma esquerda supostamente com ideais e princípios. Na segunda entrega o jogo: o caminho para derrotar seria esperar que o centrão se convença de tirar seu apoio a Bolsonaro e, para Boulos, as manifestações de rua devem ser o “empurrão que falta” para isso.

Diana AssunçãoSão Paulo | @dianaassuncaoED

quinta-feira 24 de junho de 2021 | Edição do dia

Sua reflexão tem início com a ideia de que o governo Bolsonaro mudou a régua da política brasileira. “Quem sempre foi da direita passou a ser chamado de ‘centro’. Quem de fato era de centro tornou-se ‘esquerdista’. E a esquerda virou ’extremismo’’’, diz Boulos. Mas essa é a régua vista do olhar da extrema-direita. Se analisarmos a política de fato de cada um desses setores a régua ficará invertida: a esquerda passou a adotar políticas de centro inclusive com figuras da esquerda, ou que se diziam de esquerda, migrando para partidos burgueses e golpistas - como por exemplo Marcelo Freixo -, o centro passou a atuar como base do governo de extrema-direita e por fim a direita buscando seu sentido de existência através da defesa dos planos de ajustes que, na prática, o próprio governo de extrema-direita está aplicando. Onde estaria o “extremismo” ou “radicalismo” da esquerda? Não está presente, é disso que se trata. A esquerda institucional sob o governo Bolsonaro não somente modera seu discurso como passa a ter uma política cada vez mais próxima do PT, que por sua vez está se adaptando o máximo possível para administrar o regime político golpista, com Lula deixando claro que “perdoa” os golpistas e não vai rever nenhum dos ataques históricos que foram realizados.

Isso fica claro quando em seguida Boulos fala do dilema da esquerda. “O que é preciso para derrotar Bolsonaro? É preciso fazer aliança com a direita tradicional nas eleições? É preciso abrir mão, ainda que momentaneamente, de nossos valores e propostas, em nome de uma plataforma de defesa da democracia?”, indaga. As próprias perguntas já dizem muito da argumentação que vem pela frente, ou seja, não passam pela mobilização dos trabalhadores ou pela necessidade de derrotar Bolsonaro com a força da nossa luta, ainda que Boulos tenha recorrido em vários momentos ao jargão de que “não é possível esperar 2022”. Por isso, para começar a responder o “dilema”, Boulos evoca algumas das frases que historicamente antecedem políticas de adaptação: “a luta exige amplitude” e “a esquerda precisa ter responsabilidade histórica”. E então diz que “não precisamos abrir mão das nossas propostas de combate à desigualdade, à fome, ao desemprego, com retomada de investimento público e enfrentamento aos privilégios”. Mas vejam que em nenhum lugar do artigo Boulos diz que não se deve fazer aliança com a direita tradicional nas eleições. Sim, é disso que se trata. O que ele diz é que a esquerda não precisaria se diluir e deveria defender essas pautas. Mas essas pautas são apenas um programa timidamente antineoliberal, reformista até o talo que pode ser encontrado em palavras até na boca de burgueses e golpistas. Vejam que, como dizia, de extremismo e radicalismo não sobrou nada para além de pouca verborragia, postura coerente com quem já sentou recentemente com o presidente do reacionário Republicanos, da Igreja Universal que abriga em suas fileiras ninguém menos do que Carlos Bolsonaro.

A coluna de Boulos não é nenhum convite a refletir sobre nenhum dilema, porque na realidade ele parece não ter nenhuma dúvida: o recado que dá é de que é necessário sim ter amplitude e se aliar com quem for preciso para derrotar eleitoralmente Bolsonaro e nesse caminho seguirão falando de pautas democráticas gerais como símbolo de “não diluição” de um projeto pretensamente de esquerda. Em geral, quando a esquerda reformista fala de "amplitude", busca ampliar-se sempre à direita, que representa a ínfima minoria da sociedade; abandonando, ao mesmo tempo, a esmagadora maioria da sociedade, os trabalhadores, cujos interesses são rifados na fogueira sacrificial da "responsabilidade histórica". Responsabilidade histórica com o quê? Nesse caso, com os limites do regime golpista, que nem sequer assoma nas reflexões de Boulos. Vivemos num mundo fantástico em que toda a direita virou esquerda, esse é o conto com que Boulos adormece os milhões que são alvejados pelos ataques "amplos" de seus parceiros de frente. Porém, o verdadeiro dilema continua: um programa antineoliberal reformista serve para quê, se quando a dita esquerda governa de fato, como em Belém, onde o prefeito do PSOL se prepara para uma reforma da previdência, mantém salários abaixo do salário mínimo e se reúne com a bancada evangélica bolsonarista? Mais uma vez, extremismo e radicalismo? Não, Boulos, a tua régua tá invertida.

É por isso que em sua última coluna “As ruas e a história”, reivindicando as manifestações dos dias 29/05 e 19/06, Boulos enfatiza o programa que teria sido eixo das mobilizações: a defesa do impeachment de Bolsonaro. Mas, como nenhum analista do país considera factível que ocorra agora um impeachment, nem Lula e nem ninguém da esquerda considere isso como uma possibilidade real, Boulos é obrigado a assumir que “É verdade que o impeachment encontra um grande obstáculo na aliança do governo com o centrão, feita à base de distribuição de emendas e ministérios”. E então que Boulos apresenta sua verdadeira estratégia: as manifestações de rua seriam de pura pressão pro Centrão mudar de posição. Nas suas palavras: “(...) a queda de popularidade de Bolsonaro (...) pode mudar o ambiente no parlamento. Se forem forçados a escolher entre o cálculo da própria reeleição e a fidelidade ao governo, não hesitarão. O grito das ruas pode ser o empurrão que faltava”. Mais uma vez não se trata de derrubar Bolsonaro com a força da mobilização, avançando para um plano de lutas real com assembleias de base em todas as estruturas operárias e estudantis, e nos bairros populares, construindo uma forte paralisação nacional. Se trata de fazer dessas manifestações pura pressão para que o Centrão “mude de política” e quem sabe, mesmo que seja difícil, quase impossível, ninguém acredita nisso mas quem sabe, o Congresso aprovar o impeachment. Nesse caso, a "pura pressão" ainda teria cumprido um papel não menos importante para Boulos: o favorecimento eleitoral de Lula para 2022.

Por isso, também em seu texto Boulos segue “mas para além da viabilidade do impeachment..”, o que já deixa claro que nem mesmo Boulos considera viável o impeachment. Então, para que as manifestações? Boulos diz que seriam uma espécie de “barreira popular contra a marcha autoritária de Bolsonaro”. Mas até quando essa barreira? Aí voltamos ao “não é possível esperar até 2022”. Para Boulos na prática se trata disso: manifestações de pressão ao Centrão pelo impeachment que por um lado não está colocado como viabilidade concreta, mas por outro abriria espaço a um governo do general Mourão. Estas manifestações terão o efeito de disputar forças com o bolsonarismo até 2022 para objetivos eleitorais que quanto mais próximo estiver as eleições maior será a amplitude defendida por Boulos e outros setores da esquerda para “derrotar Bolsonaro”, preservando o regime que o ergueu. Porque para essa esquerda a força das ruas serve só como pressão parlamentar e não como auto-organização real da classe trabalhadora ao lado da juventude tendo poder de paralisar os grandes bastiões da nossa classe para atacar os lucros capitalistas. Isso sim seria uma política radical diante do bolsonarismo inclusive para varrer todo esse regime do golpe com uma nova Constituinte livre e soberana não deixando livre nenhuma das instituições do golpismo. E não a amplitude de Boulos que também pode ser traduzida como “Frente Ampla”, sempre à direita e que na prática é um obstáculo para unificação dos trabalhadores e da juventude para barrar os ataques do governo nas greves e nas ruas.




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