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Eleições presidenciais na França | Debates na esquerda frente às eleições francesas

O segundo turno das eleições francesas se aproximam reeditando o cenário de 2017, porém com diferenças importantes. 2022 vem depois de um mandato recheado de ataques neoliberais pelo governo Macron, aumento do espaço midiático para o discurso xenófobo e racista ultra-direitista e, sobretudo, 5 anos de intensificação da luta de classes no país e suas colônias. Frente ao real medo e ódio à extrema-direita de Marine Le Pen, a resposta está em escolher um direitista representante do empresariado imperialista que devasta a Amazônia ou apostar no que a juventude​​ francesa chama hoje de "terceiro turno social"?

Lina HamdanMestranda em Artes Visuais na UFMG

sábado 23 de abril de 2022 | Edição do dia

Imagem: estudantes se mobilizam entre os turnos eleitorais no dia 19 de abril: "Nem pátria, nem patrão. Nem Le Pen, nem Macron"

Mais um segundo turno de um falso dilema binário eleitoral

Mais uma vez o segundo turno nas eleições francesas se dá entre o direitista Macron - atual presidente, responsável por inúmeras políticas racistas e pela escandalosa repressão a manifestantes, em particular os Coletes Amarelos em 2018 - e Marine Le Pen - candidata de extrema-direita, com programa também racista e ultra-liberal, que combina um discurso nacionalista xenófobo com um pró-patronal e repressor.

Ela, candidata pelo Rassemblement National, busca agora fazer um papel de candidata “do povo” em oposição ao presidente que encarna a elite francesa, totalmente desconectado da realidade dos trabalhadores que levou a cabo 5 anos de contra-reformas, políticas racistas e autoritárias, tornando-se odiado pela juventude, pelos trabalhadores e setores marginalizados da sociedade francesa. Ou seja, a política de Macron sempre alimentou o crescimento da extrema-direita na França, pavimentando um clima reacionário no país.

Le Pen tenta envernizar seu projeto racista e reacionário, ao mesmo tempo em que busca dar garantias à burguesia quanto a sua capacidade de governar e canalizar a raiva popular, que ficou marcada nas imagens da radicalização dos Coletes Amarelos aos milhares incendiando a mais famosa avenida da Europa. Le Pen fala agora de referendos populares que promoveriam uma forma democrática de governar. Por trás deles está seu anseio de fazer mudanças racistas à Constituição, como radicalizar o controle imigratório ou a chamada “preferência nacional”, ou ainda proibir o uso de lenços na cabeça como, segundo Le Pen, “marca da ideologia islâmica”, que a candidata de extrema-direita compara com a proibição de fumar.

E diante do próximo período, que independente de qual candidato ganhar promete ser de aprofundamento de ataques neoliberais e reacionários, começa a surgir um setor na França, em particular na juventude, que se declara contra Macron e Le Pen, se recusando a cair na chantagem de um suposto voto “mal menor”. Um setor que tem certeza de que, independente de quem vença, o próximo mandato será de ataques, seja no terreno social, trabalhista, racial ou previdenciário.

Assembleia de estudantes da Sorbonne pós primeiro turno: organizando a resistência contra Le Pen e Macron

Crise de hegemonia no regime imperialista francês e passado recente de luta de classes

No primeiro turno vimos um grande número de abstenções, mais de 40% na juventude. Expressão da continuidade da crise de hegemonia do antidemocrático regime francês, em que vemos o enfraquecimento contínuo dos partidos tradicionais, sem o surgimento de candidaturas que conseguem emplacar. O sentimento geral com as eleições, já no primeiro turno, era de ceticismo e desânimo. Que contrastam com a radicalidade e a dificuldade de controlar as lutas recentes como a dos Coletes Amarelos, as multitudinárias manifestações anti-racistas, a greve dos transportes contra a reforma da previdência, além de vários outros importantes processos de luta da classe trabalhadora em greve. Parte desse espírito foi canalizado no primeiro turno nos 22% de votos recebidos pelo candidato da France Insoumise, Jean-Luc Mélenchon. Isso não significa que seu projeto deixava de ser de conciliação com as patronais e o regime, compartilhando os mesmos limites profundos que experiências do mesmo tipo, como Syriza e Podemos, guardando as devidas diferenças.

Essa foi a candidatura defendida, no primeiro turno, por Lula assim como pelo MES/PSOL no Brasil. Apesar de ter proposto medidas que se chocam ainda que de forma extremamente limitada (como a taxação das heranças de mais de 12 milhões de euros), Mélenchon estende a mão aos capitalistas. Apresentou um programa keynesiano como a melhor garantia para economia capitalista francesa, abstendo-se de atacar a propriedade privada do grande capital que estrutura a economia, e rechaçando promessas centrais como a de 32 horas semanais, com divisão de horas de trabalho entre os desempregados. “Meu programa não prevê o confisco de todo o capital. Defendo uma sociedade de economia mista, com público e privado”, insistia em tranquilizar os capitalistas recentemente.

Com a guerra na Ucrânia, o aumento dos preços e as reformas exigidas pelas classes dominantes, começando pelas aposentadorias, o conjunto de elementos que caracterizam o processo eleitoral francês anunciam um futuro potencialmente explosivo. De fato as eleições estão marcadas pelo predomínio de forças políticas reacionárias, com a direita e a extrema-direita juntos recebendo 68% dos votos válidos, mas a alta abstenção e os votos em Mélenchon podem dar um sinal distorcido de que os bairros populares e radicalizados, e a classe trabalhadora organizada poderão recuperar rapidamente sua força e seu espaço nas ruas. Esta questão é largamente minimizada pela esquerda francesa, de maneira mais ou menos explícita.

Fenômeno inédito entre turnos eleitorais: parte da juventude rejeita uma escolha reacionária

Se torna ainda mais problemático uma esquerda que alimenta ilusões institucionais e eleitorais quando vemos algo inédito no período entre turnos eleitorais: o surgimento pela base de um setor social que se revolta com o resultado eleitoral e recusa, após 5 anos de ataques contínuos pró patronais e racistas, a escolher entre "a cólera ou a peste". Nos dias 13 e 14 de abril, logo após o primeiro turno (10 de abril), mais de 600 estudantes se reuniram em assembleia geral em um anfiteatro da Universidade Sorbonne, uma das principais do país, e decidiram ocupar o prédio para exprimir seu ódio ao segundo turno e à suposta obrigação de escolha reacionária que ele oferece para os próximos 5 anos.

"Sorbonne ocupada contra Macron e Le Pen e seu mundo". Créditos foto : AFP

Macron tenta puxar pra si os votos do "bloco progressista" frente ao medo e ao ódio à extrema-direita. Mas retomando o autoritarismo que marcou seu último mandato, é com repressão que ele responde aos estudantes mobilizados. Em manifestação que levantava a bandeira "Ni Le Pen, ni Macron", defendendo o direito dos refugiados da guerra não ucranianos de estudar, centenas de manifestantes foram reprimidos ao redor da faculdade. A ocupação da Sorbonne também foi largamente atacada pela mídia e reprimida. Essa tentativa de intimidação busca evitar que as universidades e os estudantes sejam um polo central de organização da oposição de esquerda ao próximo presidente.

O sindicato SUD-Rail da estação de Paris Nord também saiu com uma posição contrária à "escolha entre a peste e a cólera", se recusando a se unir por trás de Macron e a continuidade de sua ofensiva contra os trabalhadores que ele está preparando. O sindicato chama pela construção de uma resposta "pelas greves e manifestações, independentemente do resultado do segundo turno".

A centro-esquerda e a esquerda institucional frente ao segundo turno

Partidos como o Socialista e o Comunista saíram direto do primeiro turno para declarar apoio a Macron, defendendo “tudo contra a extrema-direita”. O que fica explícito é que esse “tudo” não é nada menos do que institucionalismo e respeito à ordem burguesa de um dos principais países imperialistas do mundo, ainda que em decadência.

Outros, como Mélenchon (France Insoumise) e Poutou (Nouveau Parti Anticapitaliste), declararam “nenhum voto para Marine Le Pen”. De maneira implícita estão dizendo para seus votantes escolherem Macron neste próximo domingo. E para além disso, Mélenchon busca desviar o movimento de juventude que surgiu ineditamente entre turnos eleitorais, chamando por mais eleitoralismo e institucionalismo. Ao invés do "terceiro turno social" (ou seja, uma saída ao impasse reacionário pela via da organização desde já da resistência pela mobilização e pelas greves) que os estudantes ocupados na Sorbonne clamavam, Mélenchon apela por um terceiro turno nas eleições legislativas, chegando ao inacreditável discurso de que será "eleito primeiro-ministro da França" através dos votos nos candidatos da France Insoumise/Union Populaire nas eleições para deputados nacionais de junho, ainda que os deputados do partido de Mélenchon saibam perfeitamente que seria impossível obter, no quadro do sistema eleitoral francês, a maioria no Parlamento.

Acaba sendo outra forma de defender um voto em Macron, já que para ser primeiro-ministro, seria necessário que não fosse a extrema-direita de Le Pen na presidência. Mas sobretudo, é uma forma de continuar para sempre chamando a que sua base confie nos mecanismos eleitorais e institucionais em uma suposta defesa dos trabalhadores e setores oprimidos da sociedade, dando a ilusão de que como primeiro-ministro poderia ter uma política de oposição à política do alto empresariado francês, como um homem providencial. Uma lógica personalista e desmobilizadora que à sua maneira também vemos no nosso país.

As reações no Brasil frente ao segundo turno entre Macron e Le Pen

No Brasil, o reacionarismo racista e servil de Bolsonaro o aproxima mais politicamente de Le Pen, ainda que ela o ache um cão sarnento latino-americano. Ao longo de seus três anos de mandato, Bolsonaro entrou em choque com o atual presidente da França para defender sua política de "passar a boiada" sobre a Amazônia e seu negacionismo frente à pandemia. Mas Macron também não tem absolutamente nada de progressista. Sua política de capitalismo selvagem, com um leve discurso verde quando lhe convém, é para defender a hiper-exploração das florestas e dos trabalhadores brasileiros a serviço do lucro das multinacionais e do capital financeiro franceses. E o que alguns setores brasileiros reivindicaram como boa gestão da pandemia, na França é rechaçado como uma gestão desastrosa, autoritária, racista e anti-operária. Não por acaso, na última semana vimos Lula e Marina Silva postando fotos suas com Macron, mostrando a serviço de quem sempre estiveram: do servilismo ao imperialismo europeu.

O MES-PSOL saiu do primeiro turno contagiado pelos resultados eleitorais do candidato da France Insoumise/Union Populaire. Reivindicam que nem Mélenchon nem Poutou “ainda não declararam apoio ao Macron”, para concluir que "É importante bater a extrema direita no pleito do segundo turno, dia 24”. O Resistência-PSOL afirmou antes do primeiro turno que a ida de Mélenchon para o segundo turno “ainda que com todas as suas contradições, seria uma vitória das greves, das mobilizações, dos enfrentamentos ao desmantelamento dos direitos sociais e uma boa sinalização na Europa e para aqueles que resistem ao neoliberalismo e sua nova roupagem neofascista.” Nada novo ao usar da legítima repulsa ao reacionarismo da extrema-direita, para esconder sua adaptação à esquerda institucional. Enquanto o Resistência fala que Mélenchon seria uma vitória das greves, é bom lembrar que o mesmo falava que as eleições são um caminho “para economizar horas e horas de manifestações”. Ambas as correntes reforçam o caminho que a maioria de seu partido vem traçando no Brasil de uma deriva eleitoralista que os leva aos braços da candidatura de Lula-Alckmin e da federação com o partido burguês de Marina Silva. Em resumo, acabam caindo todos no bojo de Emmanuel Macron, um Dória ou um Zema imperialista, ignorando que a juventude francesa se ergue mostrando o caminho de rechaço à barbárie capitalista de Macron e Le Pen.

"Nem Macron, nem Le Pen. Revolução"

Dada ao potencial da luta de classes que pode marcar os próximos cinco anos no país dos Coletes Amarelos, nada mais urgente que rechaçar o caminho conciliatório que busca tirar a centralidade da auto-organização popular e dos trabalhadores para colocar no caminho da conciliação de classes. Mais urgente agora, oposto a qualquer discurso que busque encontrar algo de menos pior em Macron, é a preparação para as lutas que estão por vir, construindo uma oposição ativa nessas eleições ao lado dos estudantes que ocupam suas faculdades escrevendo nas paredes ”nem Macron, nem Le Pen. Revolução” e indo às ruas em defesa dos refugiados da guerra da Ucrânia que não possuem passaporte ucraniano que não estão tendo direito a se matricularem nas faculdades francesas, diferentemente dos ucranianos, uma filtragem claramente racista frente a crise imigratória que se aprofunda na Europa.

Construir um bloco de resistência capaz de enfrentar a situação que se avizinha, seja qual for o resultado das eleições, implica a independência do regime, a recusa absoluta de participar da menor tentativa de uma frente republicana de apoio a Macron, mas também uma batalha contra as ilusões colocadas em uma vitória eleitoral que substitui a auto-organização e as lutas por vir. E essa lição é preciso ser trazida para o Brasil.

É evidentemente compreensível a escolha daqueles que votaram em Mélenchon na esperança de evitar um segundo turno entre Macron e Le Pen. Mas a esquerda que defendeu um voto em Mélenchon promove ilusões profundas na possibilidade de reformar um sistema em crise ou de combater o "fascismo" nas urnas. Mas há de notar que essa posição, assim como a de não declarar voto nulo no segundo turno, é uma capitulação que desarma a juventude, os trabalhadores, as mulheres, os negros, os imigrantes e os lgbtqia+ para os enfrentamentos do próximo período.

Na França e no mundo, é preciso de uma nova esquerda revolucionária, anti-racista, feminista, ambientalista, anti-imperialista. Um projeto militante, ancorado nas lutas, em cada local de trabalho e estudo, e politicamente intransigente e independente das saídas que fingem ser “menos piores”, mas que em cada canto do mundo pavimentam o caminho para o fortalecimento da extrema-direita.

Foi ao redor dessas ideias que o Revolution Permanente, organização irmã do Esquerda Diário na França, batalhou pela candidatura de Anasse Kazib na França. Defendendo a liberdade de circulação e de estabelecimento de imigrantes no país, seu direito ao voto, se opondo a todas as medidas autoritárias do governo, e suas leis racistas. Buscando, ao lado de diversos trabalhadores que estiveram nas recentes greves no país, estudantes, coletivos antifascistas e LGBTs, levantar um programa que alimente a auto-organização em vistas de por fim à miséria e ao desemprego em massa, atacando os lucros bilionários das patronais imperialistas que exploram dos trabalhadores franceses e de diversos países colonizados e semi-colonizados pela França.

Como afirma o último editorial do Révolution Permanente, "defender uma orientação revolucionária significa também lutar para sair desse impasse e convidar, contra a maré dos aparatos reformistas de esquerda, a se opor ideológica e politicamente a essa binaridade [das eleições]. De fato, é no confronto contra o ’macronismo’, em todos os movimentos de resistência e mobilização que sua política gerou, nos últimos cinco anos, que nasce o impulso da luta contra a direita e a extrema direita e os anticorpos necessários contra Le Pen. Estando os trabalhadores e setores populares unidos, há muito menos terreno para a extrema direita ocupar. Por isso, a urgência parece-nos ser de trabalhar por essa unificação, lutando contra a extrema-direita sem apelar ao voto em Macron e trabalhando para mobilizar o nosso campo social".




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