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Desventuras em série de Jabbour sobre Xi Jinping e o Estado chinês

André Barbieri

Desventuras em série de Jabbour sobre Xi Jinping e o Estado chinês

André Barbieri

Nesse artigo, debatemos com algumas concepções de Elias Jabbour, que saiu a campo para representar a política de Pequim no Brasil após o XX Congresso do Partido Comunista Chinês.

O 20º Congresso do Partido Comunista Chinês se encerrou com a confirmação do inédito terceiro mandato de Xi Jinping como líder máximo do aparato burocrático partidário. Ao assumir um terceiro mandato, Xi elimina de facto o sistema creditado para as transições ordenadas de liderança de 2002 e 2012. Discutimos em detalhe os bastidores e resultados do Congresso, aqui e aqui. Como marco histórico, o 20º Congresso subordinou a economia à segurança nacional como o foco central da China para o futuro, em meio às disputas tecnológicas e militares com o imperialismo norte-americano, cuja agressividade anti-China não tem paralelo sob a administração Biden.

Nesta terceira entrega sobre o assunto, debatemos com algumas concepções de Elias Jabbour, que saiu a campo para representar a política de Pequim no Brasil. Expôs sua visão em live própria e em conversa com Breno Altman para o Opera Mundi. Não fez muito mais do que os delegados no próprio Congresso haviam feito: legitimar o todo poderoso Xi Jinping como novo timoneiro chinês. Para o autor, o poder incontestável de Xi foi merecido por ter “vencido os desafios históricos” que se propôs. Os desafios mais difíceis, entretanto, estão pela frente, e nada está garantido ao líder máximo que navega em águas tempestuosas, não apenas diante da agressividade imperialista ianque, mas diante das crises internas com a desaceleração estrutural da economia, o desemprego na juventude e o revigoramento da luta de classes no país.

Contestamos em detalhe os argumentos esgrimidos por Jabbour, no contraponto crítico a seu livro que publicamos neste Ideias de Esquerda. Carece retornar a eles. Enfocando mais o debate, merece atenção o esforço de Jabbour por apresentar “provas” sobre a suposta democracia exemplar na constituição do Congresso do PCCh, nada mais sendo que o atestado da “democracia” na própria China. Deveríamos tomar o regime bonapartista chinês como um modelo alternativo às degradadas democracias burguesas ocidentais. Até mesmo os trabalhadores sairiam ganhando com essa “democracia”, sendo um dos resultados do Congresso a “revalorização do mundo do trabalho”, vejam só. Entretanto, a sabedoria popular reza que, entre dois carrascos, não se deve iludir pelo que conta a história mais bela, e sim desembaraçar-se de ambos. Opor-se à ingerência política e militar do imperialismo ianque e ocidental não pode significar apoio o Estado capitalista chinês, que busca galgar melhor posição na ordem mundial estabelecida, e não subvertê-la.

A “democracia”...para os servos de Xi

Elias Jabbour afirma que os congressos do Partido Comunista Chinês são “muito democráticos, construídos de baixo para cima”. O índice dessa “democracia” seriam as múltiplas mãos que enviam sugestões ao informe central que foi lido por Xi Jinping na abertura do 20º Congresso. Parece alucinante ouvir esse argumento como “prova democrática”, em especial quando as “sugestões” já vêm a público carimbadas com o selo da aprovação da política geral de Xi.

Exemplo disso foi a tão alardeada discussão de Xi com as sugestões da delegação de Guangxi ao seu informe. A escolha da província era própria ao objetivo de mostrar que o governo “se importa” com as minorias étnicas (quando opera contra as minorias muçulmanas em Xinjiang com métodos brutais similares às agressões colonialistas na Ásia), ao mesmo tempo em que exige sua unidade em “como ferro adamantino” sob o estandarte do Partido. Todas as sugestões terminavam por louvar o trabalho “impecável” do novo timoneiro. Segundo a reportagem do oficial Xinhua, todos os delegados de Guangxi “acreditam que o relatório para o 20º Congresso Nacional do PCCh […] estabelece cientificamente metas, tarefas e políticas importantes para desenvolver a causa do Partido e do país nos próximos cinco anos, ou até mesmo em um período mais longo, apresentando uma série de novas abordagens, estratégias e medidas”. E assim com todas as “sugestões”, que antes de vir à luz precisam ser aprovadas de cima para baixo.

A verticalização ossificada do PCCh é um índice dos procedimentos completamente burocráticos que envolvem a minuciosa e controlada seleção de dirigentes partidários. Nem a população, nem mesmo os filiados partidários de base, possuem qualquer opinião. Comparar graus de burocratismo à luz de cada etapa da história do PCCh nas últimas sete décadas seria um exercício instrutivo para compreender o processo de restauração capitalista no gigante asiático. Se tomamos apenas o século XXI, o PCCh na era Hu Jintao – em que a chave da orientação do partido-Estado era se enriquecer e preservar certa estabilidade nas relações internacionais – possuía um grau de controle bonapartista sobre a base e a população substancialmente menor do que a partir do início da era Xi. Hu era considerado uma figura frágil, sem controle sobre as distintas facções partidárias, o que gerava um aspecto caótico nas hierarquias do Estado. Xi recrudesceu exponencialmente o nível de bonapartismo no interior do partido e em todo o país, concentrando poder em sua figura e disciplinando as facções adversárias.

A visão idílica de que “Xi Jinping e Hu Jintao eram amigos” transfere a discussão para um plano imaginário que impede compreender os processos profundos que atravessam a burocracia do PCCh. A eliminação de Li Keqiang do Comitê Permanente e o veto a Hu Chunhua no Comitê Central foram parte dos esforços para eliminar a influência de líderes mais velhos, como Hu Jintao. Com efeito, a imagem de Hu, aparentemente sem saber o que se passava, sendo removido da mesa cerimonial, foi um símbolo da retirada do poder dos “anciões” partidários. A perseguição, aposentadoria ou encarceramento da maioria dos seguidores de Jiang e Hu sob acusação de corrupção foi o método permanente na última década para eliminar a concorrência e abrir caminho para veteranos leais ao novo poder. Desde que assumiu a liderança do partido em 2012, a repressão à corrupção tem sido um discurso permanente de Xi, alvejando “tigres e moscas”, funcionários civis e militares de alto e baixo escalão, sendo simbólicos os casos de Bo Xilai, Guo Boxiong e Xu Caihou. Todos tinham vínculos com Jiang Zemin e Hu Jintao. Antes do início do 20º Congresso, sentenças de morte – que podem ser comutadas em prisão perpétua após dois anos – foram proferidas contra milhares de funcionários que não se provaram leais o suficiente. As vagas conquistadas aos aliados pela campanha anticorrupção, somadas àquelas oriundas da aposentadoria dos funcionários aos 68 anos, deram a Xi ampla margem de atuação: 65% dos 270 membros do Comitê Central foram substituídos desde 2017, e 66% dos 25 membros do Comitê Permanente do Politburo também o foram.

Jabbour apresenta a nova direção como parte da democracia chinesa, com uma “direção coletiva”. Mesmo nos termos ultra-burocráticos em que o termo foi entendido nas últimas décadas, essa comunhão de vozes pertencentes a facções distintas já foi bastante debilitada. Xi Jinping alterou a arquitetura organizativa das mais altas esferas do Partido Comunista Chinês. Se antes já tínhamos um regime partidário ossificado pela burocracia bonapartista, agora as posições de liderança são um mero espelho de Xi. Durante décadas o Comitê Permanente do Politburo, o órgão político mais poderoso da China, representou uma espécie de convenção que assegurava que ele fosse composto por políticos ligados a diferentes frações do PCCh. Agora, pela primeira vez desde a saída Deng Xiaoping das funções-chave do partido em 1989, o grupo de sete membros de elite escolhidos a dedo pelo secretário-geral de acordo com os parâmetros de lealdade pessoal.

A título de exemplo, os quatro novos membros do comitê permanente são todos aliados Xi Jinping. Um breve prontuário de cada um deles dá uma ideia sobre a eliminação das frações no alto escalão. Li Qiang, o chefe do partido de Xangai, tem sido um dos aliados próximos de Xi por duas décadas. Ele serviu diretamente sob Xi quando o presidente governou a província de Zhejiang de 2004 a 2007. Embora Li tenha sido considerado há muito tempo uma estrela em ascensão, a principal credencial que lhe valeu o posto foi ter assegurado a implementação caótica da política de Covid-zero em Xangai, uma política que irritou amplos segmentos da população, inclusive das classes médias, pelos vislumbres de campanhas orientadas na era maoísta. Li Qiang é o favorito para ser promovido a primeiro-ministro, substituindo Li Keqiang. Cai Qi é o chefe do partido em Pequim desde 2017, também considerado um dos aliados mais próximos de Xi. A dupla trabalhou junta nas décadas de 1980, 1990 e 2000, quando Xi era um líder provincial em ascensão tanto em Fujian quanto em Zhejiang. Ding Xuexiang avançou sua carreira em Xangai, e desde que Xi assumiu a liderança do partido há uma década, Ding tem servido como um assistente pessoal de Xi. Já Li Xi foi chefe do partido em Guangdong, e serviu como chefe do partido em Liaoning, no norte da China, onde construiu uma reputação rígida sobre corrupção e disciplina partidária, em acordo com a política de Xi.

A situação se repete no Politburo, no Comitê Central e em grande parte das administrações locais. Por onde que se olhe, Xi Jinping está em todo lugar, e a democracia vale para quem aceitar a vassalagem imperial. Assim, não precisamos acreditar na fábula de Jabbour sobre a “democracia” no PCCh para saber criticar os regimes democrático-burgueses degradados no Ocidente, que produzem seus Trumps e Bolsonaros. Pelo contrário, é necessário entender que diante do crescente autoritarismo das ditas “instituições democráticas” ocidentais, o bonapartismo do PCCh não prescreve nenhuma alternativa.

“Revalorização do trabalho”

Outro produto da imaginação fértil de Jabbour é dizer que o 20º Congresso foi um símbolo da “revalorização dos trabalhadores”, como fez na TV Grabois. Como exemplo, o porta-voz da burocracia chinesa no Brasil disse que a empresa de entregas Meituan foi multada por não pagar direitos trabalhistas para entregadores. “Enquanto o iFood no Brasil é símbolo da precarização, na China é parte da desprecarização do trabalho”, conclui. Essa é a confiança que Jabbour tem na classe dominante chinesa, símbolo de um dos modelos capitalistas mais selvagens do mundo contra os trabalhadores. Ao contrário de preocupação com os trabalhadores, a burocracia do PCCh está preocupada como a luta de classes. Desde o início da pandemia, ondas de greve no setor de entregas atravessaram a China, em especial na Meituan, em cidades como Shenzhen, Linyi e Tongxang, contra os baixos salários e péssimas condições de trabalho. As greves na China envolvendo entregadores se multiplicaram por cinco entre 2018 e 2022. Em janeiro, um entregador ateou fogo no próprio corpo na cidade de Taizhou para protestar contra salários não pagos, algo repudiado nacionalmente nas redes sociais. A situação miserável desses entregadores (muitos deles ex-trabalhadores da Foxconn e outras empresas manufatureiras) é o símbolo da precarização e desvalorização do trabalho na China de Xi Jinping. Em meio à crescente repressão do governo e à vigilância on-line que constrangem as expressões de agitação operária, como atesta o pesquisador Eli Friedman, os entregadores passaram a utilizar seus aplicativos de mensagens para organizar greves e paralisações com outras empresas, às vezes de outras cidades. Isso impunha sérios riscos para o PCCh, que não admite que greves ocorram entre diferentes empresas, muito menos de regiões diferentes. É a luta de classes, que Jabbour desmerece por completo, a que obrigou Xi Jinping a reduzir danos. A regulação sobre a Meituan outras plataformas como a Ele.me, do bilionário Jack Ma da Alibaba (que registram juntas mais de 8 milhões de entregadores) teve como objetivo conter distúrbios da luta de classes – especialmente antes do 20º Congresso – além de disciplinar as plataformas digitais do e-commerce aos desígnios do PCCh. Ademais, a mudança regulatória sobre a Meituan e a Ele.me tem como alvo a redução das taxas de serviço cobradas pelos aplicativos aos restaurantes, a fim de diminuir os custos operacionais das empresas de alimentos e bebidas. Trabalhadores? Não, a intenção é diminuir os custos dos pequenos negócios comerciais. Não há paralelo com a ideia de “desprecarização” do trabalho, algo absurdo para quem conhece minimamente o capitalismo chinês.

As greves são proibidas na China desde 1982 – um dispositivo aparentemente muito “democrático” para Jabbour – e até hoje aqueles que denunciam as atrocidades fabris são perseguidos pelas empresas e pelo Estado. Como denunciou o China Labor Watch, Tang Mingfang, trabalhador que expôs o uso ilegal de estudantes pela fábrica da Foxconn em Hengyang, que produz para impérios monopólicos como a Amazon, foi em seguida detido pela polícia, investigado como culpado por “revelar segredos comerciais” da Foxconn, e condenado a dois anos de prisão. O pesquisador Jake Lin, em seu livro Chinese Politics and Labor Movements, dá um panorama da “revalorização do trabalho” de Jabbour, investigando fábricas chinesas em 2020. “As condições de trabalho são desastrosas em todas as fábricas [visitadas]. Os trabalhadores reclamaram particularmente das longas horas de trabalho e da dura gestão do tempo. Um sistema de turno para os trabalhadores do chão de fábrica foi adotado amplamente pelas fábricas na China. Na fábrica de Shenzhen, o turno diurno funcionava das 8h às 20h, e o noturno, das 18h às 6h. Os trabalhadores podiam fazer refeições e períodos de descanso de cerca de duas horas no total – isto compreendia uma hora para o almoço, quarenta minutos para o jantar e alguns intervalos curtos de dez minutos durante o turno. As horas de trabalho eram tão longas que os trabalhadores dormiam no chão da fábrica durante a temporada movimentada. Além disso, se as metas não fossem atingidas, os intervalos para almoço eram frequentemente encurtados. Um trabalhador da província de Jiangxi me disse que eles tinham que usar uma garrafa de refrigerante em vez de ir ao banheiro durante a temporada movimentada. Os dias de folga eram raros e as viagens para visitar a família só eram permitidas uma vez por ano. Isto era particularmente preocupante, pois a maioria dos trabalhadores eram migrantes de províncias distantes. A maioria dos trabalhadores estava irritada com o estilo desumano e militar das acomodações do dormitório que lhes eram oferecidas na fábrica. Oito trabalhadores dividiam um dormitório [na fábrica de] Foowah. A ‘gestão científica’ da fábrica se estendeu ao controle total dos horários de trabalho dos trabalhadores, bem como de seu tempo livre. Os trabalhadores da fábrica Panyu, por exemplo, estavam proibidos de utilizar muitos aparelhos elétricos. Seus quartos poderiam ser invadidos uma vez que se descobrisse que quebraram qualquer uma das regras. Eles eram obrigados a confessar publicamente ‘sua culpa’ como punição. Na fábrica de Jiangmen, havia cartazes onipresentes nas paredes com uma longa lista de coisas que eram proibidas. Por exemplo, os trabalhadores não podiam trazer amigos e familiares para seus quartos, não podiam comer em seus quartos e nem mesmo podiam manter a chave do quarto – em vez disso, tinham que usar a chave deixando sua identificação de trabalho com o guarda de segurança”.

Esse relato não é da década de 1980, é da atual era Xi Jinping. Trata-se do regime de trabalho dormitório, análogo à escravização, já que muitos trabalhadores migrantes confessavam não conhecer mais que “a fábrica, o dormitório e a cafeteria fabril”. O uso de garrafas para que os trabalhadores realizem suas necessidades sem saírem da linha de produção é imitado por monopólios como a Amazon em seus galpões, e há pouca razão para crer que na China isso seja sinal de “valorização do trabalho”. A China Labor Watch publicou recentemente um relatório sobre empresas que fabricam cartuchos para impressão, com entrevistas a dezenas de trabalhadores, provando que inúmeras empresas do ramo negam licenças pagas aos trabalhadores, violando limites de horas extras, emitindo falsos cheques de pagamento, não garantindo seguridade social, lavrando contratos de trabalho atrasados e incompletos, e não fornecendo treinamento de segurança no local de trabalho. Em todos os ramos da produção se multiplicam casos assim.

Não é difícil ser um trovador das virtudes de uma burocracia conservadora, desde que se tenha suficiente vontade de inventar uma realidade paralela.

“Socialismo chinês”

Outra cantilena jabbouriana é o suposto “socialismo chinês”, que desenvolveu em sua conversa com Breno Altman. Esmiuçamos a crítica a essa visão no artigo dedicado ao livro “China: socialismo do século XXI”. Aqui basta notar que a empáfia de Jabbour chega ao ponto de dizer que a teoria marxista “deve aprender com a China como lidar com as empresas”. A ideia, de circuito estreito, é: na formação econômica orientada ao socialismo, que é a China, a política orienta a economia, já que é o Partido Comunista que regulamenta e torna eficaz as condições do capital chinês; logo, como é a propriedade estatal a que condiciona a propriedade privada, as duas formas podem coexistir num projeto socialista, e a expropriação econômica da burguesia não precisa integrar o plano “orientador ao socialismo”, já que o socialismo utilizaria o capitalismo para si mesmo. Já discutimos em outro artigo que essa noção não possui nada de original. Ela é do historiador italiano Domenico Losurdo, segundo o qual as reformas pró-mercado de Deng Xiaoping fizeram ressurgir a propriedade privada, sem com isso restaurar o capitalismo na China, uma vez que aquela estaria subordinada politicamente pelo controle do PCCh sobre o aparato estatal. Inspirado na máxima de Mao Zedong, em 1958 (“Ainda existem capitalistas na China, mas o Estado está sob a liderança do Partido Comunista”), e na de Deng (segundo o qual, mesmo havendo elementos burgueses na China, não poderiam se tornar uma classe, devido ao controle estatal por parte do PCCh), Losurdo conclui que o socialismo utiliza a propriedade privada para avançar. Esse seria o “socialismo realmente existente” para Jabbour, o oposto de um socialismo sem mercado, destituído dos elementos capitalistas e da lei do valor inerente à produção mercadológica.

Não cremos que essa teoria, que pode se encaixar na cabeça da burocracia restauracionista chinesa, seja capaz de ensinar algo ao marxismo, cuja premissa básica é a superação revolucionária da propriedade privada pela classe trabalhadora, e não a comunhão pragmática com capitalistas.

Realmente, “não existe o socialismo da nossa cabeça”, na medida em que raramente alguém procuraria a cabeça de Jabbour para encontrar o socialismo. Mas existem experiências históricas materiais, que foram generalizadas teoricamente pelo marxismo. Uma delas é o inelutável caráter de classe das formações sócio-políticas que não puderam eliminar os antagonismos sociais de classe. No marxismo, o Estado emerge como produto e manifestação do antagonismo irreconciliável entre as classes; é um órgão de dominação de classe, um órgão de submissão de uma classe pela outra (na China, dos trabalhadores pela burguesia); é a criação de uma “ordem” que legaliza e consolida essa submissão. Em Jabbour, que pretende ensinar o marxismo, o Estado e as formações econômicas, todas elas ficam destituídas de seu caráter social, de classe. Seguindo o mantra do PCCh, deve considerar o aparato estatal como um conciliador de toda a sociedade, um “Estado de toda a Nação”, assim como o PCCh um “partido de todo o povo”. Pobre Jabbour, que inventa uma realidade sem muitos recursos...

A verdade é que o modo de produção que fundamenta a forma da propriedade na China, o capitalismo, determina também o caráter de classe do Estado. O Estado capitalista chinês, dirigido por Xi Jinping, não possui qualquer orientação socialista. Busca arregimentar as empresas e o grande capital doméstico – em ordem de hierarquia, privilegiando os segmentos da alta produção tecnológica e industrial – atrás dos planos do PCCh, beneficiando o setor privado da economia (responsável por 60% do PIB, e 80% dos empregos urbanos) em troca do disciplinamento ao regime de partido único. O peso do setor privado da economia só cresce na China, em que o Estado garante a exploração do capital no interior de seu território e se alça a proteger os investimentos do capital chinês a nível internacional. Com efeito, em junho de 2021 Xi Jinping havia tomado uma das medidas mais anti-operárias e pró-empresariais da história recente na China, quando autorizou a prefeitura de Shenzhen a permitir que os capitalistas locais reduzissem o pagamento das horas extras e estendessem o prazo para pagamento de salários, que podem ser atrasados por um tempo mais generoso, com o objetivo de impedir o êxodo manufatureiro para outras economias asiáticas. Mesmo um intelectual como Michael Roberts, que compartilha da tese equivocada de que a China não restaurou o capitalismo em seu interior, admite que o setor privado cresce vultosamente em proporção ao setor público na era Xi Jinping. “O setor capitalista vem aumentando seu tamanho e influência na China, juntamente com a desaceleração do crescimento real do PIB, dos investimentos e do emprego, mesmo sob Xi Jinping. Um estudo recente constatou que o setor privado chinês cresceu não somente em termos absolutos, mas também como uma proporção das maiores empresas do país, medida pela receita ou pelo valor de mercado (as listadas na Bolsa), a partir de um nível muito baixo, quando Xi foi confirmado como o próximo líder em 2010, até um nível significativo hoje. As empresas estatais ainda dominam entre as maiores empresas por receita, mas sua preeminência está em erosão”. A parcela da riqueza pessoal dos bilionários chineses dobrou de 7% em 2019 para 15% do PIB em 2021.

É natural que Jabbour não concorde com o conceito de Estado em Marx, já que se deixa influenciar pela noção acadêmica de um Estado conciliador de todo o povo. Imagina um poder político suspenso no ar, e esquece que o governo que realiza políticas como a da “prosperidade comum” está fundado na propriedade capitalista dos meios de produção – ainda que um capitalismo sui generis, distinto do modelo ocidental, fruto da apropriação das conquistas sociais da Revolução de 1949 e do dirigismo estatal por parte do PCCh. Como “estamos distantes” do socialismo que Marx defendia, com o poder dos trabalhadores sobre as forças produtivas, a expropriação do capital e a planificação racional da economia e da vida, melhor seria nos adequarmos a um “socialismo de desconto”, que “a história nos deu”, e que na realidade é o contrário de qualquer coisa que o marxismo já caracterizou como socialista: um país de bilionários, de escravização selvagem da classe trabalhadora por capitalistas nativos e estrangeiros, e uma burocracia autocrática que asfixia qualquer tipo de liberdade de pensamento e opinião. Jabbour diz que as pessoas “precisam ler Marx”, mas o nome de Marx é que não tem conexão nenhuma com essa filosofia de pragmáticos.

O socialismo não tem nada a ver com a “razão” acima das classes que comanda um processo de produção fundado na propriedade privada. A própria compreensão da razão não pode vir alheada dos conflitos sociais. Trótski tratava dessa maneira a questão: que é a construção socialista? É uma construção econômica de acordo com a razão, já não só dentro dos limites da empresa e do monopólio, como acontece sob o domínio da burguesia, mas dentro dos limites da sociedade, e de toda a humanidade. No socialismo a construção da sociedade humana se realiza aplicando o pensamento científico: assim como antes a burguesia construiu fábricas “de acordo com a razão” e construiu o seu Estado “de acordo com a razão” (burguesa), a classe operária pretende construir toda a vida social de baixo para cima de acordo com sua razão. A condição para isso é preparar a luta pelo poder de Estado, um Estado de transição operário que “não deixe de definhar” desde o momento de seu surgimento na medida em que avance as tarefas da reorganização socialista da sociedade. Nada que ver com o Estado burguês chinês, cuja “razão” que fortalece seu próprio capital sobre a base da exploração dos trabalhadores a nível nacional e internacional.

O modelo de trabalho 996 (das nove da manhã às nove da noite, seis dias por semana), difundido por Jack Ma, desatou a ira de trabalhadores que amargam 20% de desemprego na China, e que se opõem à ideologia do autosacrifício trabalhista. As lutas operárias (algo ignorado por Jabbour), e não a disputa pela tecnologia dos semicondutores, são o maior índice da luta de classes, internacionalmente e também na China. As greves e conflitos trabalhistas se dão em algumas das províncias mais ricas, em que a indústria e a construção civil são fortes (como Guangdong e as províncias orientais), sendo a novidade as províncias do interior, como Henan, Xi’an e Chongqing, que passam a ter maior número de conflitos operários, na medida em que se tornam bastiões do impulso do parque tecnológico chinês. De Guangdong a Shandong, de Hebei a Sichuan, múltiplos conflitos por atrasos salariais são estopins para greves econômicas, que embora ainda não transcendam o cenário local, são a base de apoio para a evolução da consciência de classe operária, que na China implica identificar um inimigo frontal no Partido Comunista Chinês e seu Estado.

“Efetivamente, as greves ensinam gradualmente à classe operária, em todos os países, a lutar contra os governos pelos direitos dos operários e pelos direitos de todo o povo. Das greves isoladas os operários podem e devem passar, e passam realmente em todos os países, à luta de toda a classe operária pela emancipação de todos os trabalhadores”, diz Lênin em 1895. Esse é um passo fundamental para a independência política, que necessita se cristalizar em partido operário socialista, em choque com não apenas com o imperialismo ocidental mas também com a burocracia do Partido Comunista dos capitalistas chineses.

É essa classe que vai batalhar pelo socialismo como agente da história, não a burocracia de Pequim, por mais títulos que esta conceda a Jabbour.


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André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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