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TRABALHO PRECÁRIO | Diário de entregador - Chefes escondidos na tela do celular

Muitos colegas meus dizem que o bom de estar nas entregas é que não temos um patrão enchendo o saco na orelha todo dia, mas quem escolheu ter o RappiTurbo (“aceitar” entregas automaticamente)? Tem aqueles que vão dizer "se não tá gostando, desliga o aplicativo", mas no meio de tanto desempregado e preços caros nos alimentos, fazer entregas foi a opção que sobrou, então por que dizer isso pra um colega nosso?

quarta-feira 17 de fevereiro de 2021 | Edição do dia

Alguns falam que a gente pode fazer nosso horário, mas é só trocar um pouco de ideia que a gente percebe que pra conseguir pagar as contas, temos que estar nas ruas muitas horas pelo menos 5 dias na semana, tem que ser nos horários de picos, sempre nos finais de semana e feriados, não é uma escolha nossa, mas uma necessidade cumprir essa jornada disfarçada.

Mas o que eu quero revelar aqui é que temos chefes bastante carrascos que se disfarçam muito bem. Não trabalhamos pra nós como acreditam alguns colegas, e nossa autonomia acaba quando ficamos online no aplicativo, trabalhamos para os donos desses app’s, obedecendo as regras deles, eles mandam em nós através da tela do celular, nosso meio de trabalho.

Nossos chefes inventaram o modo Rappi Turbo que é você ter que fazer entregas sem parar automaticamente, geralmente é as bica (muito peso, muito longe, com taxa baixa). E se a gente não aceita, passam 3 ou 4 horas e não toca nada e mesmo estando a disposição do aplicativo, não ganhamos nada por todo esse tempo "de castigo". Sofremos punição com bloqueios temporários que acontecem sempre. Já os bloqueios permanentes têm um nome certo: demissão por justa causa sem direito de defesa. Se a gente é autônomo, então por que somos punidos, forçados a aceitar qualquer entrega ou demitidos?

Nossos patrões têm mais artimanhas. Sabem aqueles cargos em empresas que existem para ficar fiscalizando o trabalho dos outros e repassar para a chefia? Ou mesmo câmeras de monitoramento, às vezes com áudio? Então, em nosso caso quem faz esse serviço de maneira inconsciente sendo os olhos da patronal em cima da gente são os próprios restaurantes e clientes desses app’s através das avaliações e o controle que o aplicativo tem de localização e outras informações do nosso celular. Somos avaliados em tudo, com bastante rigor por notas, elogios ou reclamações escritas, % da rapidez, % de aceitação e finalização de pedidos, satisfação do cliente, se o pedido estava danificado, etc.

Trabalhamos carregando muito peso na bag com o nome dessas empresas e somos milimetricamente julgados e monitorados sem perceber. É exigido altíssima qualidade em nosso serviço, qualquer mínima irregularidade somos punidos, mal avaliados e ameaçados de tomar bloqueio, sem direito de explicação ou de provar os motivos da demora, algum erro ou dano no pacote. Mesmo quando estamos subindo ladeiras, ou está chovendo, carregando compras, pedidos grandes e até sacos de ração. Toda essa exigência em nossas costas para sermos desvalorizados, chegando a receber absurdos R$ 3,75 em entregas às vezes com mais de 5 km.

Tem mais, pode até não existir assédio e cobranças verbais dos chefes, mas as dezenas de sms ou notificações dos app’s que recebemos acelerando a gente em uma entrega, cobrando satisfação do motivo de não irmos algum dia, insistindo para irmos trabalhar em algum horário e região específica, dizendo “venha lucrar mais”, ou usando um infeliz trocadilho “corra para a chuva de pedidos” em dias de tempestade com a pista escorregadia e difícil de enchergar a rua significam o que? Para mim escancara como querem cada vez mais controlar, e fazem toda essa pressão nos chamando de “parceiro” como se fosse aqueles tapinhas nas costas de algum chefe. Quem lucra mais com a chuva são eles e nós somos mais explorados em um trabalho arriscado.

Se não bastasse tudo isso, ainda tem a histórica busca da patronal de colocar um trabalhador contra o outro. Isso eles fazem muito bem criando níveis de acordo com aquelas avaliações e o número de entregas que você faz dentro de uma semana ou um mês. Esses bilionários dão nomes bonitos como “ouro, platina, diamante”, fazem o trabalho parecer um vídeo game com pontuação no qual os outros entregadores são nossos adversários.

Fazem a gente acreditar que recebemos pouco porque existem muitos entregadores estimulando a competição entre nós, enquanto nadam na grana e todo lucro que já tinha e explodiu na pandemia, enquanto seguem baixando nossas taxas obrigando a gente fazer muito mais entregas para ganhar a mesma renda de meses atrás.

A única “autonomia” que temos é de ter que bancar do nosso bolso todos gastos comprando a bag, com celular bom e internet 3G, manutenção e peças da bike ou moto (com combustível caro), alimentação que reponha toda energia gasto do nosso corpo, não temos direito ao descanso remunerado (“férias” e “folga” significam menos dinheiro no final do mês) e a responsabilidade de qualquer acidente ou roubo é toda nossa, nesses momentos os donos de aplicativos lavam as mãos e enquanto sugam nosso trabalho, nos iludem com a ideia de que isso é empreendedorismo.

Mas de todas essas provas de que temos patrão, a maior delas é a superexploração que sofremos. A falta de direitos, que vem com a justificativa de uma modernização do trabalho tem que ser enfrentada por nós, é urgente. Se uma pessoa que depende da renda das entregas engravida, por exemplo uma entregadora, isso significa que ela não terá salário nenhum em um momento difícil da vida? Ou ela terá que trampar grávida e depois carregar a criança na bike? É companheiros, essa é a verdadeira cara do empreendedorismo vendido pelos donos dos aplicativos, não existir o direito à licença maternidade ou paternidade seria uma das "vantagens".

Veja mais: Diário de entregador - Sequestraram o futuro da juventude




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