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Entrevista a Gretchen Felker-Martin: Apocalipse e resistência trans

Julian Vile

Ilustração: Greer Lankton (1958-1996), “It’s all about ME. Not you” (1996), Mattress Factory, Pittsburg

Entrevista a Gretchen Felker-Martin: Apocalipse e resistência trans

Julian Vile

Gretchen Felker-Martin é uma autora americana que mora no Reino Unido. Seu primeiro romance, “Manhunt”, descreve a trajetória de duas mulheres trans depois que um vírus transforma todos os humanos com níveis suficientes de testosterona em feras assassinas.

Apocalipse e resistência trans

Julian Vile
Gretchen Felker-Martin

Gretchen Felker-Martin é uma autora americana que mora no Reino Unido. Seu primeiro romance, “Manhunt”, descreve a trajetória de duas mulheres trans depois que um vírus transforma todos os humanos com níveis suficientes de testosterona em feras assassinas.

À mercê de uma horda de feras assassinas e das gangues transfóbicas que tomaram conta da Costa Leste, Beth e Fran, as duas protagonistas do romance, tentam se manter em meio a uma história que retrata a solidariedade trans presa em um universo ultra reacionário. Nesta entrevista ao Révolution Permanente, jornal francês da mesma rede do Esquerda Diário, Gretchen Felker-Martin conta sua experiência como autora trans nos Estados Unidos em um momento em que a população LGBTQIAP+ enfrenta uma ofensiva sem precedentes. Ela também evoca a visão que seu romance traz sobre as questões da solidariedade revolucionária na era atual.

RP: Seu romance, Manhunt, lançado no início de 2022 foi publicado em meio a ataques contra pessoas trans no Reino Unido e nos Estados Unidos. Como você vivenciou a publicação de Manhunt neste contexto?

Gretchen Felker-Martin: Se não me engano, Manhunt foi publicado no mesmo dia em que a Flórida e o Texas começaram seu grande ataque legislativo para proibir tratamentos para menores trans, usando-o como uma porta de entrada para a proibição de todas as pessoas trans.

Durante o período de publicação, eu me acostumei muito a ter a minha humanidade e a das pessoas que amo submetidas a votos. É aí que o livro encontra suas origens, então vê-lo imerso naquele contexto não foi exatamente uma surpresa. Foi mais uma reação de “Porra, odeio estar certa”, a sensação de que essa onda nascente de transfobia cultural estava destinada desde o início a ter consequências terríveis.

Eu me senti bastante vulnerável e exposta por ter meu livro atacado diretamente, especialmente porque ainda existem muito poucos autores trans no mainstream.

RP: Seu livro foi publicado por uma editora conhecida - TorNightfire, que, junto com Tor, faz parte do grupo Macmillan - o que parecia dar a obra algum peso no mundo editorial. Que efeito isso teve no período de sua publicação?

GFM: Sim, funcionou em termos de networking dentro da comunidade literária. Foi a primeira vez que trabalhei com um editor. Todo o meu trabalho anterior foi auto-publicado e agora está disponível gratuitamente.

Eu diria que ainda sinto remorso ético por ter aceitado um contrato com uma editora tão estabelecida. Embora não seja muito dinheiro, sinto-me um pouco culpada. Alimentar esta máquina é bastante pesada para mim. Mas em termos de publicação e revisão, eles foram uma grande ajuda.

Greer Lankton (1958-1996), "Sem título" (gêmeos siameses) (anos 1980), CLAMP, Nova York.

RP: Vamos entrar na história em si. Temos a sensação de que o incidente que desencadeou o vírus serve como uma lente através da qual você explora a violência política e física que as pessoas trans vivenciam. O que me surpreendeu durante a leitura é que a história não é apenas metafórica como se poderia pensar. Você nunca sacrifica as complexidades internas dos personagens em favor de uma mensagem maior. Você manteve esse equilíbrio conscientemente ou surgiu naturalmente durante a composição?

GFM: Veio muito naturalmente para mim. Técnicas de contar histórias não são realmente a minha praia. Não gosto de histórias ordenadas ou que precisam ser explicadas. Nunca foi um problema para mim incluir um possível antídoto para o vírus que funcionaria como uma metáfora fácil para masculinidade. É um livro sobre pessoas e todo livro sobre pessoas deve ser pesquisado.

RP: Falemos das TERFs (Feministas radicais que excluem pessoas trans), essas “feministas” transfóbicas que ocupam grande parte da história do livro. Uma das histórias secundárias é narrada por Ramona, uma das milicianas TERF que persegue os protagonistas. Você poderia nos contar sobre a experiência de ter escrito a partir do ponto de vista de uma transfóbica e, de forma mais ampla, como você experimentou ter que se identificar com a mentalidade TERF.

GFM: Eu tenho experienciado as TERFs por uma década e essas pessoas sempre foram algumas das piores pessoas com quem já interagi. São pessoas que se reprimem profundamente e se odeiam. Acho que, de alguma forma, as TERFs odeiam ser mulheres e ficam furiosas porque alguém pode gostar disso e obter satisfação com isso. Acho que o clichê da TERF que suprime ser um homem trans é algo prejudicial e facilmente mal utilizado, mas ainda contém alguma verdade. Eu sei disso porque eu as conheci. Essas são as experiências mais profundamente tristes que tive em contato com outro ser humano. Ver alguém se odiar tão intensamente a ponto de construir toda uma vida em torno dessa constatação e não encontrar mais sentido em mais nada. Tudo se torna um pretexto para reforçar esses sentimentos, justificá-los e projetá-los diante de outras pessoas que têm a audácia de simplesmente existir e ser visíveis.

Como você pode imaginar, meus contatos com as TERF foram desagradáveis. Elas tentaram divulgar meu endereço várias vezes, descobriram meu nome de nascimento e divulgaram amplamente as informações, participaram de um ataque ao meu livro e à minha reputação.

Acho que as conclusões que tirei depois de tentar me colocar no lugar delas para o romance, voltando aos textos transfóbicos fundadores de Andrea Dworkin, ou mesmo ao The Transsexual Empire de Janice Raymond, publicado em 1979, é que essas pessoas são extremamente conservadoras e intensamente frágeis. Sua concepção de mundo não sobrevive ao contato com pessoas diferentes. Todo o chamado “feminismo radical” e seu “progressismo” é na verdade extremamente regressivo. Tudo é pretexto para recorrer aos castigos corporais, à pena de morte, ao sistema prisional. Não há visão de sociedade, apenas da reação.

RP: Sinto que a transfobia, particularmente no Reino Unido, é como uma porta de entrada para mais ataques e mais amplos. Na internet, muitas TERFs se declaram progressistas, mas a transfobia é um primeiro dominó que cai e aos poucos as leva a se tornarem reacionárias em relação a muitos outros assuntos.

GFM: Com certeza.

RP: Algumas pessoas escreveram que Manhunt exagera com as milícias transfóbicas. Você acha que o aparecimento de milícias desse tipo é possível?

GFM: Eu acho que é bastante realista. Não entendo como a menos de um século do desaparecimento da Alemanha nazista se possa considerar isso irreal. Sem falar no HUAC (House on Un-American Activities Committee) ou no “terror vermelho” [pressão republicana, NdR] nos Estados Unidos. É muito fácil transformar um bode expiatório em um ethos político por direito próprio. Acho que em um momento de grande tensão, é muito mais fácil punir e matar um grupo de indefesos do que se preocupar com os problemas que causaram essa tensão em primeiro lugar, porque teríamos que falar sobre poder e economia, indústria e justiça trabalhista. Tópicos que têm o potencial de derrubar estruturas de poder.

Muitos revisores chamaram as TERFs do Manhunt de "míopes" ou "inacreditáveis" e acho isso ridículo. Não estou dizendo que meu livro não deve ser revisado, há muitos motivos legítimos para isso, mas olhem em volta! O que nós fazemos enquanto o mundo está queimando?

RP: Você acha que a transfobia encontrada nas classes médias funciona como um patógeno?

GFM: Com certeza. Dá-lhes permissão para expurgar todas suas ansiedades, para exteriorizar sua falta de controle sobre suas situações e sua raiva por não terem obtido o sonho americano que as instituições lhes prometeram. É assustador. Já vi pessoas que conheço e respeito sucumbirem a esse fenômeno.

RP: Eu queria abordar o tema do sexo em seu livro. Muitos temas de interdependência, até mesmo de solidariedade política, surgem em sua representação do sexo. Temos a impressão de que esses aspectos não poderiam ser desenvolvidos em outro contexto que não fosse uma interação sexual. Você poderia voltar a este aspecto?

GFM: É o velho ditado “tudo tem a ver com sexo, menos o sexo, que tem a ver com poder". Acho isso muito verdadeiro. Quando as pessoas fazem sexo, elas se expõem umas às outras, literalmente, metaforicamente e emocionalmente. Mas também tem toda essa narrativa que acompanha o ato, toda essa política de como diferentes tipos de corpos podem se tocar ou são proibidos de se tocar, como são comparados entre si. Obesidade, deficiência, ser trans ou cis, queer ou hetero: nossos cérebros estão calculando todas essas coisas na velocidade da luz. Em um romance, você pode desacelerar e explorar esses pensamentos que aparecem e desaparecem, que você reprime...

Acho que uma parte grande e absolutamente fascinante da psicologia humana reside naqueles momentos em que decidimos o que faremos ou não por um amante, quem queremos, quem não queremos. Culturalmente, são coisas muito fortes. Onde está a atração, o que nos revolta… Essas são questões centrais em Manhunt. Grande parte do romance lida com a repulsa e a moralidade que as pessoas associam a essa questão. Por outro lado, existem aqueles personagens que vivem existências degradadas e que às vezes não podem deixar de se perceber da mesma forma que a sociedade ao seu redor os percebe. Mas ainda conseguem encontrar alegria, fraternidade, uma forma de comunidade entre si. E para mim, isso é tudo que temos. Não há assunto mais importante para escrever.

RP: O gênero literário pós-apocalíptico é geralmente muito reacionário. Muitas vezes são narrativas de “todos contra todos”, que castigam qualquer tentativa de estabelecer solidariedade e onde ninguém é confiável. Você apresenta a solidariedade entre pessoas queer como a norma e não a exceção. Este é um aspecto que se revela também nas suas representações do sexo, pois as suas personagens fazem amor por amor ou desejo, mas também como um simples ato quotidiano de solidariedade. Você poderia nos falar sobre essa visão de solidariedade em seu livro?

GFM: Para as pessoas queer, e especialmente para os pobres e trabalhadores queer, que são a maioria, a solidariedade é a única força que temos. Para muitos de nós, é também a única forma de comunidade que temos. Frequentemente somos brutalizados, rejeitados por nossos pais, jogados na rua. Às vezes somos mortos, muitas vezes explorados, de várias maneiras.

Seria ótimo se essas experiências tornassem mais fácil apoiar e amar uns aos outros, quando nos encontramos em comunidade. Na verdade, seu resultado é transformar nossas existências em uma luta permanente, porque todos estão feridos. Não quero parecer muito romântica sobre isso, mas é verdade que isso torna precioso o fato de ser capaz de construir solidariedade. Nutrir essa solidariedade e cuidar das pessoas que estiveram conosco nessas experiências dolorosas é um aspecto importante da vida queer.

Ouvimos muito o termo “baby queers”. Não se trata de idade, mas sim de pessoas que vivenciam dor, brutalidade e opressão e precisam ser cuidadas, cuidar de um recém-nascido, porque eles não podem sobreviver sozinhos. Esse tipo de comunidade é essencial para ser queer.

Acho que especialmente nos Estados Unidos, as coisas podem ser muito facciosas e divisivas, dependendo da classe econômica a que as pessoas pertencem. Aqui, tem muita gente queer que deseja “assimilar”, ser igual a todo mundo, e não hesita em colocar outros queers menos aceitos socialmente na roda para, em troca, eles puderem ter seu cantinho cercado por uma cerca branca e com uma grande garagem.

Isto é obviamente uma ilusão. Ninguém mais vai aceitá-los, porque o sistema se perpetua inventando ameaças imaginárias para melhor esmagá-los. Nos Estados Unidos, hoje em dia, ouvimos cada vez mais histórias inventadas sobre predadores queer ou abusadores de crianças, como durante a era do Pânico Satânico.

É por isso que esse tipo de solidariedade é mais importante do que nunca. Temos que nos apoiar uns aos outros fisicamente, materialmente, emocionalmente. As pessoas que entendem isso e as que não entendem estão em lados opostos de um enorme abismo de experiência.

RP: Como você vê a solidariedade como ferramenta política?

GFM: Acho que esse tipo de solidariedade pode e deve ser usado para a ação política. Existem poucos grupos tão militantes na luta pelo direito ao aborto quanto as pessoas queer e trans nos Estados Unidos. Quase todas as pessoas trans que conheço fizeram campanha material, de uma forma ou de outra a longo prazo, pelo direito ao aborto. Quando essa atual cultura de perseguição e horror passar – se passar – teremos a oportunidade de usar essa solidariedade para agitar politicamente as coisas. E espero que isso seja usado em alguma forma de revolução.

Entrevista realizada por Julian Vile


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