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Esboços para uma ecologia em Trótski: por uma vida que valha a pena ser vivida

Rosa Linh

Ilustração: Isadora de Lima Romera | @garatujas.isa

Esboços para uma ecologia em Trótski: por uma vida que valha a pena ser vivida

Rosa Linh

O marxismo é uma ciência viva, um instrumento histórico da luta revolucionária do proletariado. Nessa medida, procuro examinar brevemente uma de suas facetas menos comentadas, uma visão marxista sobre a ecologia, sob a perspectiva do revolucionário dirigente da Revolução de outubro e do Exército Vermelho - Leon Trótski.

O IPCC lançou no ano passado um relatório sobre o impacto das mudanças climáticas e seu resultado não poderia ser outro sob o capitalismo: a influência humana (burguesa, é sempre bom colocar) é inequívoca e inquestionável. Já são 1,07ºC de aumento da temperatura global, com indicativos de que seu impacto, se não combatido a tempo, resultará em aumentos de 1,5 até 2ºC ainda neste século. A COVID e a preparação de novas pandemias, as ondas de calor na Europa e EUA, bem como eventos extremos no geral, são cada vez mais frequentes.

Reatualiza-se como nunca o debate necessário dentro da esquerda socialista sobre qual o legado do marxismo para a ecologia e qual a estratégia para derrubar o capitalismo e superar a crise ambiental e climática.

Nesse sentido, muito se fala sobre as confluências (ou não) entre marxismo e ecologia. São vários os autores que procuram debater a partir do pensamento vivo do marxismo a questão ambiental. Exemplo disso são os pensadores marxistas John Bellamy Foster, Kohei Saito, James O’ Connor - dedicados a estudar ecologia e marxismo e o ecossocialismo - ou mesmo os ilustres cientistas Richard Lewontin e Richard Levin - que aplicaram as leis da dialética materialista às ciências naturais, em especial à biologia. No entanto, quase nenhuma palavra se escuta sobre quais teriam sido as contribuições do revolucionário Leon Trótski.

Isso não é trivial. Trótski dirigiu a Revolução de Outubro de 1917 junto de Lenin e foi o mais destacado general do Exército Vermelho; junto da Oposição de Esquerda defendeu o leninismo, a estratégia soviética e a revolução internacional contra as deturpações da burocracia reacionária stalinista, responsáveis pela traição e desvio de todos os processos revolucionários a nível mundial e o assassinato de praticamente todo o Comitê Central de Outubro. Trótski e a Oposição foi a única a apontar uma visão anticapitalista de combate ao fascismo e ao imperialismo “democrático”, bem como uma alternativa à burocracia termidoriana de Stálin e sua tese retrógrada do “socialismo em um só país”.

No entanto, mesmo aqueles que se reivindicam trotskistas, por vezes, recaem em erros importantes quando o assunto é ecologia e marxismo. Por um lado, temos aqueles que “constroem” seitas estéreis lendo Trótski como se fosse um dogma religioso inerte e sem vida, no qual não encontraremos nenhuma necessidade de diálogo com a ecologia; por outro, temos aqueles que relativizam e revisam o fundamental do marxismo, da necessária imbricação entre a crítica da economia política e a filosofia da natureza, com sérias implicações estratégicas. Um desses desvios é a concepção de Michel Löwy, militante do Secretariado Unificado mandelista e da auto-intitulada IV Internacional - para ele, o marxismo é "produtivista" e, portanto, precisamos de um “ecossocialismo”, distinto do que havia sido na URSS sob Stálin, mas por fora de se apropriar do legado soviético, nos termos tanto filosóficos mas também estratégicos, e suas implicações hoje para a ecologia. Na contramão dessa discussão e em direção a reconstruir, mesmo que brevemente, as contribuições de Trótski e os trotskistas para uma ecologia anticapitalista, é que escrevo essas linhas.

Leia mais: O marxismo é produtivista? Debate com o ecossocialismo de Michael Löwy (Parte I)

Dialética, ciência e marxismo

O marxismo é uma ciência viva, um instrumento da luta revolucionária do proletariado. Nessa medida, seu conteúdo fundamental, o antagonismo irreconciliável entre classes, e a necessidade da revolução como sua estratégia, não mudam; mas da mesma maneira como a matéria vive em constante mudança, os revolucionários precisam responder a diferentes fenômenos no transcorrer da evolução das contradições da sociedade humana. A questão ambiental inegavelmente é uma delas.

É razoável dizer que o movimento ambientalista que conhecemos hoje tomou corpo, sobretudo, a partir dos anos 60. Mas, bebendo da tradição dos revolucionários comunistas, a filosofia da natureza e o materialismo histórico dialético, Trótski nos deixou importantes contribuições para pensar o movimento ambiental hoje.

Chamamos “materialista” a nossa dialética porque suas raízes não estão no céu, nem nas profundezas do “livre-arbítrio”, senão na realidade objetiva, na natureza. A consciência surgiu do inconsciente, a psicologia da fisiologia, o mundo orgânico do inorgânico, o sistema solar das nebulosas. Em todos os graus dessa escala de desenvolvimento, as mudanças quantitativas se transformaram em qualitativas. Nosso pensamento, inclusive o pensamento dialético, é apenas uma das formas de expressão da matéria mutável (...) [1]

Trótski entendia a dialética materialista, como uma forma de racionalização da realidade objetiva e seu movimento, é uma expressão consciente e produto da natureza. Em O Capital, Livro I, Marx desenvolve acerca do “metabolismo” entre homem e natureza, partindo de reconhecer que os seres humanos são componentes orgânicos do meio ambiente e, como qualquer outra espécie, vivem em trocas fisiológicas com o meio em que vivem. A diferença fundamental entre os seres humanos e as demais espécies, para Marx, é o trabalho. Ele diz:

"Antes de tudo, o trabalho é um processo em que participam os homens e a natureza (...) em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais do seu corpo – braços e pernas, cabeça e mãos –, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana." [2]

Ou seja, a própria existência humana e da sociedade se baseia no fato de que os seres humanos são fruto da natureza. No transcurso da evolução das espécies, por diversas pressões ambientais específicas, acumulam-se contradições e a gênese de uma nova espécie, o homo sapiens sapiens: a diferença de um mamífero superior, e de nossos ancestrais comuns também, é que nos tornamos capazes de trabalhar – isto é, pensar e reproduzir estruturas complexas a partir da modificação do meio natural. Essa é a base da filosofia da natureza no método marxista. Vejamos para Trótski:

"O darwinismo, que explicou a evolução das espécies mediante a conversão de mudanças quantitativas em qualitativas, foi o maior triunfo da dialética no campo da matéria orgânica. Outro grande triunfo foi a descoberta da tabela de pesos atômicos dos elementos químicos e, posteriormente, dos processos de transformação de um elemento em outro. (...) A estas transformações (de espécie, de elementos, etc.) está intimamente ligada à questão da classificação, tão importante nas ciências naturais como nas sociais. O sistema de Lineu (século XVIII), utilizando como seu ponto de partida a imutabilidade das espécies, limitava-se à descrição e classificação das plantas segundo suas características externas. O período infantil da botânica é análogo ao período infantil da lógica, uma vez que as formas do nosso pensamento evoluem como tudo que vive. Apenas o rechaço decisivo da ideia de espécies fixas, somente o estudo da história da evolução das plantas e de sua anatomia prepara as bases para uma classificação realmente científica." [3]

O dirigente do Exército Vermelho foi um ávido defensor da liberdade científica e, além disso, foi capaz de expor com maestria como a evolução da ciência - não enquanto algo positivo e progressivo - nas idas e vindas da filosofia e da política, são produtos das contradições materiais do momento histórico em que se encontram, ou mais precisamente, das contradições do modo de produção, nos saltos dialéticos que se dão conforme o desenvolvimento material da técnica, e os fluxos e refluxos da luta de classes. A termodinâmica surge com a revolução industrial e a máquina à vapor; da mesma forma, no âmbito das ciências sociais, o marxismo surge expressando conscientemente o nível objetivo que chegou as contradições de classe na sociedade burguesa moderna - enquanto uma classe detém os meios de produção e outra tudo produz sem não possuir nenhuma propriedade, torna-se possível a abolição de todas as classes e a socialização da propriedade com a revolução socialista. Conectando e superando dialeticamente a filosofia alemã, a economia política inglesa e o socialismo francês, nasce o materialismo histórico dialético como expressão político-filosófica consciente de si na época do capital.

Diante disso, voltemos à questão do trabalho. As abelhas constroem colmeias, estruturas complexas e magníficas. Contudo, não são capazes de planejar e arquitetar uma colmeia diferente das que seu instinto aponta. Isso é radicalmente diferente para os seres humanos. O trabalho só pode ser gestado por sermos animais sociais; as abelhas e seu “pré-trabalho”, ou as formas rudimentares de linguagem e organização social de mamíferos superiores seria impossível de surgir de indivíduos isolados - e essas formas primitivas e análogas apenas demonstram a verdade da evolução. No caso do ser humano, diante de necessidades objetivas de sobrevivência e proliferação da espécie, as pressões evolutivas selecionaram os indivíduos mais aptos, haja vista que o homo sapiens pouco tinha de vantagens biológicas, a não ser algumas como a formação das mãos e seu polegar opositor, a coluna ereta, e sua habilidade de viver em comunidade. O processo de desenvolvimento da mão, o manejo dos objetos, a aplicação e coordenação equilibrada às necessidades do meio são produto da ação da natureza no ser humano, mas também deste na natureza. A consciência, a linguagem a ciência, a arte e a cultura são resultado do desenvolvimento desse mesmo processo, e seriam impossíveis se ele, que é eminentemente social, em sua sucessão, não se transforma em trabalho, consciente de si e do mundo - a capacidade de modificar e controlar a natureza.

A questão é que o trabalho nos distintos modos de produção humanos sempre foi pensado na medida da sua utilidade imediata e direta. A formação das classes e, como fruto do excedente da produção, o nascimento do Estado, é exemplo disso.
Sucessivamente, as contradições de classe nos modos de produção foram a mola propulsora do desenvolvimento das forças produtivas – esse metabolismo homem x natureza vive no reino da necessidade, uma relação predatória. Além disso, o capitalismo desenvolveu um diferencial: a acumulação primitiva de capital, isto é, o roubo, a pilhagem e a expropriação sistemática para acúmulo e geração de excedentes. Essa foi a gênese do capital, que com a acumulação primitiva e o processo de criação do capital e do trabalho assalariado, não só geram excedente como também separam os produtores diretos dos meios de produção, forçando-os a terem de vender sua força de trabalho para sobreviver. Uma das características do capitalismo para continuar produzindo riquezas, uma vez criadas essas condições, é a necessidade do capital de uma constante reprodução ampliada. A reprodução do capital precisa ser infinita – mesmo que os recursos naturais e o conjunto do meio-ambiente não estejam em consonância com esses planos. Eleva-se o reino da necessidade à enésima potência.

Essa concepção aponta para duas conclusões fundamentais. Primeiro, é que apenas partindo de uma análise materialista e dialética da relação do homem com a natureza pode-se chegar até a constatação de que o capitalismo não pode solucionar a crise climática e ambiental. A segunda, é que tanto Trótski como Marx e Engels confluíram, tanto filosófica como politicamente, mediante as mesmas bases e em direção a uma mesma política.

Marx que, ao contrário de Darwin, era conscientemente dialético, descobriu as bases para a classificação científica das sociedades humanas no desenvolvimento das suas forças produtivas e na estrutura de suas relações de propriedade, que constituem a anatomia da sociedade. O marxismo substituiu a classificação vulgar das sociedades e dos Estados, que ainda hoje floresce em nossas universidades, por uma classificação materialista dialética. [4]

Alguém que veio a entender que a evolução ocorre por meio da luta de forças antagônicas; que um lento acúmulo de mudanças acaba quebrando a velha casca e produz uma catástrofe, uma revolução; aquele que aprendeu a aplicar as leis da evolução ao seu próprio pensamento, esse é um dialético, algo completamente diferente dos evolucionistas vulgares. [5]

Marx e Engels foram pioneiros no desenvolvimento de uma filosofia que fosse, antes de tudo, concebida para transformar e não apenas interpretar o mundo. O grande feito de suas vidas foi a concepção do materialismo histórico dialético, no entanto, em uma época em que a revolução proletária ainda não estava na ordem do dia. Lênin, com a forma-partido de vanguarda, junto de Trótski e dos bolcheviques elevaram o marxismo ao nível da estratégia - a coordenação dos combates isolados em um sentido comum revolucionário.

O marxismo de centralidade estratégica em nossa época, capaz de solucionar plenamente a questão ambiental, não como um apêndice, mas restituindo-a como parte crucial de uma totalidade a fim de pavimentar o surgimento de uma nova espécie mais feliz, é o trotskismo. É o que demonstrarei agora.

A estratégia revolucionária é fundamental a uma ecologia anticapitalista

Como dizíamos, poderíamos definir estratégia como a arte de reunir os combates isolados, as táticas, até um fim determinado - a revolução. Dos vivos debates, que perpassou as I e II Internacional, os bolcheviques, e em especial Trótski, extraíram o mais avançado arsenal revolucionário com os quatro primeiros congressos da III internacional, bem como a teoria da revolução permanente (TRP) e o programa de transição, base de construção da Oposição de Esquerda Internacional contra o stalinismo e depois da IV Internacional.

A TRP estabelece que as tarefas democráticas nos países atrasados só poderiam ser levadas até o final pelo proletariado, pelo seu lugar social nas relações de produção - não a burguesia nacional ou setores intermediários como o campesinato. Já o Programa de Transição dava as bases para articular as demandas imediatas das massas com o programa da revolução socialista, por meio de reivindicações transitórias que partissem das atuais condições e consciência de largas camadas da classe operária e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado.

Trótski, nesse sentido, sistematizou várias das ferramentas fundamentais para que a classe operária se coloque como sujeito e avance até o socialismo, mas também em direção a uma ecologia anticapitalista.

O sujeito revolucionário capaz de levar as demandas pela reforma agrária radical, a autodeterminação dos povos originários, a transição energética limpa e tantas outras demandas democráticas mínimas e cruciais para "acionar o freio de emergência” como dizia Walter Benjamin, trazendo junto de si o conjunto dos oprimidos em ruptura com o capitalismo, é o proletariado. Isso não pode ser uma tarefa da burguesia, essa classe parasita, que apenas suga o trabalho proletário como um vampiro. Temos aqui o conceito de hegemonia operária, um dos principais contribuições revolucionárias dos bolcheviques: a capacidade de que a classe trabalhadora tem de trazer junto de si o conjunto das classes e setores oprimidos contra a burguesia, pavimentando o caminho para um novo tipo de sociedade superior, baseada na propriedade socializada e a planificação democrática da economia.

Nesse sentido, é fundamental que os revolucionários atuem no movimento sindical de forma a defender as demandas dos povos originários, da juventude e do movimento ambientalista. Diante disso é que se coloca toda a atualidade da estratégia baseada na auto-organização - ou seja, que a classe operária se organize de forma independente das variantes burguesas e patronais, em contraponto com as burocracias sindicais, de forma a tomar a luta em suas próprias mãos. Justamente por seu lugar na produção, exatamente no cerne desse metabolismo entre homem e natureza, que a classe operária tem nas suas mãos a possibilidade de organizar uma planificação democrática, racional e harmoniosa da economia e da vida social com a natureza. Portanto, a auto-organização em cada local de trabalho são embriões de poder operário e de classe, que podem se tornar base para o controle operário da produção em base a democracia operária. Generalizar essa lógica à nível social é a única forma realista de organização humana que pode dar lugar a uma relação harmônica com o meio natural; essa forma social é, portanto, incompatível com o capitalismo e a propriedade privada dos meios de produção. Foi essa a forma assumida sob os escombros do Estado burguês após a Revolução de Outubro - os Sovietes, organismos de democracia operária de massas organizadas por local de trabalho, a base do poder do Estado operário.

No sentido de construir essa perspectiva estratégica e fazer uma ponte com a subjetividade atual dos trabalhadores os fins socialistas, em termos de programa, poderíamos condensar algumas questões cruciais, além das já mencionadas, tais como a defesa da expropriação do conjunto da indústria energética, sob a gestão democrática das e dos trabalhadores e supervisão de comitês de consumidores; avançar para uma matriz energética sustentável e diversificada, proibindo o fracking (de gás e petróleo) e outras técnicas extrativistas, que permita reduzir drasticamente as emissões de CO2, desenvolvendo as energias renováveis e de baixo impacto ambiental, em diálogo com as comunidades locais; a nacionalização e reconversão tecnológica, sem indenização e sob controle operário, de todas as empresas de transporte, assim como as grandes empresas automobilísticas e metalúrgicas; o monopólio do comércio exterior e nacionalização dos bancos para financiar a reconversão e diversificação do modelo agroalimentício sobre bases sustentáveis e democráticas; abolição da dívida nos países dependentes e semicoloniais, que é uma forma de coerção para adotar ajustes neoliberais antiecológicos, assim como a expropriação de todas as empresas contaminantes nos países periféricos - entre outras.

Essas palavras de ordem motorizam a consciência da classe revolucionária em sua luta e a coloca em movimento. Essas ideias só podem virar carne mediante um combate intransigente com as burocracias sindicais e conquistando aliados nos movimentos ecológicos, indígenas etc. A preparação política, acumulando forças para o combate decisivo, é o fundamental da estratégia revolucionária, ou seja, a perspectiva da construção de uma ferramenta-partido capaz de ganhar o direito de dirigir as massas à derrubada desse sistema anti-ecológico. Isso tudo são alguns aspectos sintéticos desdobrados da teoria-programa da TRP para a questão ambiental.

Aliás, já existem exemplos importantes de unidade entre o movimento ambiental e os setores de trabalhadores, como o estaleiro Harland and Wolff na Irlanda, onde foi construído o Titanic, declarado falido, mas que seus trabalhadores tomaram as instalações exigindo sua nacionalização e que fosse implementado o uso de energias limpas. Outro exemplo são os chamados dos sindicatos e setores de trabalhadores, convocando a Greve pelo Clima, em Portugal, na Alemanha ou no Estado Espanhol.

É preciso que o partido revolucionário se dê o trabalho da estratégia para tomar essas experiências e acumular forças para passar à ofensiva. Nesse sentido, o legado trotskista permanece vivo em toda sua atualidade.

Uma vida que valha a pena ser vivida

O marxismo é uma ciência viva assim como a luta de classes. A melhor homenagem que poderíamos fazer à Trótski é traduzir todo seu legado aos dias de hoje. Sem sombra de dúvidas, a questão ambiental e a necessidade de destruir o capitalismo é uma delas.

"(...) As origens históricas e econômicas da própria sociedade humana moderna encontram-se no mundo histórico-natural. O homem moderno deve ser visto como o elo de toda uma evolução que começa na primeira célula orgânica, gerada, por sua vez, no laboratório da natureza, onde atuam as propriedades físicas e químicas da matéria. Quem aprendeu a examinar com olhos tão límpidos o passado do mundo, aí incluídas a sociedade humana, os reinos animal e vegetal, o Sistema Solar e os infinitos sistemas ao seu redor, não se disporá a procurar as chaves para o conhecimento dos segredos do Universo em decrépitos livros “sagrados” e suas fábulas filosóficas de uma infantilidade primária. E quem não reconhece a existência de forças místicas celestes capazes de interferir na vida pública e privada e de orientá-la para esta ou aquela direção, quem não acredita que a miséria e o sofrimento serão altamente recompensados em outro mundo, tem os pés mais firmes e fortes na terra e buscará nas condições materiais da sociedade, com mais coragem e confiança, as bases de seu trabalho criador. A concepção materialista do mundo não só abre uma ampla janela para todo o Universo, mas também fortalece a vontade. Ela é a única que humaniza o homem moderno, o qual ainda depende, é claro, das rígidas condições materiais, mas já sabe como superá-las e participar conscientemente da construção de uma nova sociedade fundada simultaneamente na mais elevada técnica e na mais elevada solidariedade." [6]

O trabalho cria valor. É o proletariado a classe que tudo produz e a quem tudo pertence - um batalhão de operárias têxteis de Myanmar, domésticas negras brasileiras, assistentes sociais alemães, metalúrgicos estadunidenses, operários chineses da construção civil. A ciência e a técnica já avançaram a tal ponto que a humanidade é capaz de interconectar o mundo com a comunicação digital em tempo real, ligar todos os pontos do mundo com o transporte terrestre, marítimo e aéreo; desbravar as profundezas dos oceanos, da fauna e da flora, os planetas, o sistema solar e até mesmo galáxias distantes. Ao mesmo tempo, os capitalistas transformaram nosso planeta em uma suja prisão, na qual o futuro parece distópico, com as geleiras derretendo, as florestas desmatadas e as crianças com fome. O trabalho, fundamento daquilo que nos torna humanos, é uma atividade enfadonha, perpassada pela precarização da terceirização, jornadas extenuantes e reformas ultraneoliberais. A propriedade privada dos meios de produção é uma trava histórica ao desenvolvimento social, e tanto destrói irracionalmente o meio ambiente, como aliena o ser humano de si, dos outros e das potencialidades que o trabalho social pode desempenhar na realidade.

Por isso, nós trotskistas não lutamos apenas por reformas circunstanciais nas técnicas de produção, muito menos por saídas individuais à crise climática. Lutamos pela derrubada revolucionária desse sistema de miséria e degradação ambiental, por uma sociedade sem classes e sem Estado, na qual as forças produtivas mundiais, sufocadas pela propriedade privada burguesa e que servem à destruição ambiental, estejam nas mãos da classe operária internacional, interligando-se de forma a romper as barreiras das antigas nações. Com isso a ciência poderia avançar a passos enormes, servindo aos interesses dos mais oprimidos, em especial dos países mais pobres e periféricos, com o intercâmbio livre de técnicas sustentáveis e preservacionistas, estruturando uma verdadeira transição energética global que engloba a infraestrutura, os combustíveis, a agricultura e todos os âmbitos da vida econômica.

Uma sociedade que reestruture o metabolismo homem x natureza de forma harmônica, conscientemente dialética, materialista e livre, uma sociedade de abundância material e espiritual - de cada qual segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades. A isso, chamamos comunismo. E é na luta de classes que o conquistaremos, uma vida que valha a pena ser vivida, sem exploração nem opressão. Uma vida em que a maior preocupação das crianças não seja ir para a escola comer merenda, já que em casa não há comida, mas sim os mistérios do cosmos; em como achar a síntese entre a mecânica quântica e a relatividade; como a internet das coisas, os supercondutores e a inteligência artificial podem potencializar expedições, satélites e telescópios de última geração capazes de desbravar quazares e buracos negros - preenchendo de sentido social, por meio da vontade e da razão coordenando as lei e meandros da natureza, e rompendo com o trabalho alienado e reestabelecendo ao seu devido lugar o metabolismo com o meio ambiente, o caminho para um novo estágio mais elevado da experiência humana.

Entre a natureza e o Estado interpôs-se a economia. A técnica libertou o homem da tirania dos velhos elementos: a terra, a água, o fogo, o ar, para submetê-los em seguida a sua própria tirania. A atual crise mundial comprova de maneira particularmente trágica como este dominador altivo e audaz da natureza permanece escravo dos poderes cegos de sua própria economia. A tarefa histórica de nossa época consiste em substituir o jogo anárquico do mercado por um plano nacional, e disciplinar as forças de produção, em obrigá-las a operar em harmonia, servindo docilmente as necessidades do homem (...) Mas quem se atreve a afirmar que o homem atual seja o último representante, mais elevado da espécie homo sapiens? Ninguém. (...)

A antropologia, a biologia, a fisiologia, a psicologia reuniram verdadeiras montanhas de materiais para erigir ante o homem, em toda sua amplitude, as tarefas de seu próprio aperfeiçoamento corporal e espiritual e de seu desenvolvimento ulterior (...) Sábios descem aos fundos dos oceanos e fotografam a fauna misteriosa das águas. Para que o pensamento humano desça às profundezas de seu próprio oceano psíquico, deve iluminar as forças motrizes, misteriosas, da alma e submetê-las à razão e à vontade. Quando acabar as forças anárquicas de sua própria sociedade, o homem integrar-se-á nos laboratórios, nas retortas do químico. Pela primeira vez, a humanidade considerar-se-á a si mesma como matéria-prima e, no melhor dos casos, como semi-fabricação física e psíquica. O socialismo significará um salto do reino da necessidade ao reino da liberdade, no sentido de que o homem de hoje, esmagado sob o peso de contradições e sem harmonia, abrirá o caminho a uma nova espécie mais feliz." [7]

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Podemos dizer que há bases para uma ecologia em Trótski e, além disso, não se pode pensar uma ecologia que sirva a revolução sem Trótski e todo legado da IV Internacional. Nós da Fração Trotskista queremos ser parte de rupturas e fusões, de forma a superar a dispersão dos socialistas e comstruir um grande partido revolucionário da classe trabalhadora a nível mundial. Por isso, para nós, trata-se de reconstruir um partido leninista de combate internacional, a IV Internacional de Leon Trótski.

Ainda que em pequena escala, os camaradas da Fração Trotskista, procurando resgatar os fios de continuidade revolucionária da história do trotskismo, vem atuando, por vezes em comum com a esquerda, de forma a contribuir para a construção de uma alternativa anticapitalista e revolucionária à crise ambiental e climática.

A greve dos petroleiros da Total em Grandpuits na França desmascarou o greenwashing capitalista dessa gigante do petróleo. Ela queria fechar a refinaria, demitir seus trabalhadores, se apoiando em um discurso verde, mas para transferir suas plantas para países de mão de obra barata, como o Zimbabwe e a Tanzânia. A partir da auto-organização por cada local de trabalho, com comitês de greve se contrapondo a burocracia sindical e uma profunda aliança com o movimento ambientalista e a juventude, essa greve deixou grandes lições ao movimento operário. A Revolution Permanente, membro da FT-QI, foi fundamental para que esse processo tomasse corpo.

Já na Argentina, temos a luta contra a megamineração em Chubut, na qual os camaradas do PTS intervieram no fechamento de rodovias, foram parte de construir as assembleias de base composta sobretudo por estudantes e promover uma política de aliança com os trabalhadores. "A água vale mais que ouro” sintetiza a luta ambiental histórica de milhares, de gerações inteiras, em Chubut. Nossas cadeiras conquistadas no Parlamento servem à fomentar essa perspectiva auto-organizada e de luta, procurando erodir a confiança nessa "democracia" dos ricos.

Na Alemanha, a declaração promovida pela agrupação de sindicalistas de base “ver.di aktiv”, impulsionada pelo grupo RIO - organização irmã do MRT no país - com mais de 500 adesões de sindicalistas de distintos ramos de todo o país exigindo das centrais sindicais que convoquem a greve geral pela clima em 2019, foi uma pequena mostra, mas significativa, da potencialidade desta política. Da mesma forma, são exemplos a atuação da Juventude Faísca Revolucionária ao lado das e dos povos originários no Acampamento Luta pela Vida, defendendo uma perspectiva de aliança operário-estudantil-indígena, assim como no Estado Espanhol, EUA e na América Latina estando na linha de frente da luta ambientalista com uma perspectiva anticapitalista.

Essas são apenas alguns dos exemplos que pudemos construir na luta de classes, ainda que pontuais. Queremos, na verdade, torná-los um ponto de partida para discutir suas lições e generalizá-las, no sentido de avançar para a construção de desse partido revolucionário, capaz de ser decisivo na luta de classes e também na questão ambiental. Não podemos pensar a luta pela destruição do capitalismo, o fim das classes e uma sociedade que viva em harmonia com a natureza por fora das questões da estratégia revolucionária.

Leia mais: O capitalismo destrói o planeta, destruamos o capitalismo - Declaração da Fração Trotskista/Quarta Internacional (FT-QI)

“A vida é bela, que as gerações futuras a limpem de todo o mal, de toda opressão, de toda violência e possam gozá-la plenamente.”

O Quinteto de Stephan é um grupo de cinco galáxias na constelação de Pégaso, a cerca de 290 milhões de anos-luz da Terra Imagem do telescópio James Webb - Foto: NASA, ESA, CSA,


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FOOTNOTES

[1TRÓTSKI, L. Em Defesa do Marxismo. Proposta editorial.

[2MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Crítica da Economia Política. 27. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 3 v. (1). p.211.

[3TRÓTSKI, L. Ibdem.

[4TRÓTSKI, L. Ibdem.

[5TRÓTSKI, L. Escritos Filosóficos (compilación) - Evolución y dialéctica. CEIP León Trotsky, Argentina.

[6TRÓTSKI L. Atenção à Teoria. Carta publicada na revista soviética Pod znamenem marksizma (Sob a Bandeira do Marxismo) nº 1-2 de jan-fev 1922.

[7TRÓTSKI, L. O Que Foi a Revolução de Outubro?. Conferencia pronunciada em 27 de Novembro de 1932, no estádio de Copenhague, Dinamarca. Fonte da presente transcrição: "Que fue la revolución russa?", Editorial Indo-América, Buenos Aires, 1953.
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Rosa Linh

Estudante de Ciências Sociais na UnB
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