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Guerra na Ucrânia, equilíbrio precário e luta programática da esquerda no panorama global

André Barbieri

Guerra na Ucrânia, equilíbrio precário e luta programática da esquerda no panorama global

André Barbieri

Documento sobre o panorama mundial a partir da guerra na Ucrânia, escrito a propósito da próxima Conferência do MRT.

1. A mais de dois meses do início do conflito, a guerra na Ucrânia abriu um panorama de crise sem precedentes nas últimas décadas, o mais próximo de uma “ruptura do equilíbrio capitalista” [1], após a miragem de um mundo sem guerras entre as grandes potências, criada pelas décadas da globalização neoliberal e a dominação dos Estados Unidos como “guardião capitalista do mundo”. A guerra na Ucrânia não produziu, por ora, uma conflagração mais expandida entre as potências (de características similares às grandes guerras do século passado), nem grandes choques da luta de classes (menos ainda processos revolucionários), mas o desequilíbrio econômico e geopolítico tem marcas profundas. A guerra ainda está em curso, e todos os prognósticos, que possuem pontos de contato com os distintos aspectos da guerra, só podem ser feitos nesse estágio por aproximações relativas. É impossível prever com exatidão quais serão os novos contornos estruturais da ordem mundial em meio aos bombardeios e à “segunda fase” da invasão, que segundo o Estado-Maior russo tem como objetivo a concentração no Donbass e na região sul da Ucrânia. Estruturalmente, do ponto de vista das modificações subterrâneas que atravessam os alicerces do sistema mundial de Estados, o que é possível enxergar por entre as névoas da guerra é que se enfraquecem determinadas contenções ao recurso da violência militar como meio de continuar as políticas competitivas entre as potências. Em outras palavras, se reatualizam as características centrais da época imperialista, de crises, guerras e revoluções. Essas características se depreendem do cenário incerto em que a guerra lança as coordenadas da velha ordem mundial, cujos contornos específicos dependem dos resultados político-militares, ainda inconclusos. Observando os efeitos atuais de uma guerra com resultados em aberto, circunscrita em suas operações militares ao teatro ucraniano, podemos dizer, de um lado, que o nível de ruptura do equilíbrio capitalista ocorrido no entre guerras do século XX ainda não está colocado. De outro lado, cumpre reconhecer que a invasão russa na Ucrânia e a exacerbação das contradições entre os Estados agregam um novo golpe ao equilíbrio precário em extrema tensão do capitalismo mundial que já vínhamos definindo com os efeitos da pandemia. Particularmente, no interior dessas tendências disruptivas, cumpre reconhecer que a eclosão de conflitos militares volta ao imaginário das grandes potências como horizonte de eventos possível (para além de sua aplicação prática). A reorganização das alianças e a modernização dos arsenais militares, que em maior ou menor ritmo passou a ter uma vigência mais presente nos distintos países, anuncia um momento de inflexão no panorama pós-crise de 2008: o encerramento de uma era e a entrada em outra marcada, por uma incerteza ainda mais profunda e uma grande rivalidade de poderes. Com o novo golpe ao “equilíbrio capitalista em extrema tensão”, pelos efeitos de uma guerra que se prolonga no tempo e afeta as cadeias globais de valor e fornecimento, a recuperação parcial que se vinha desenhando na economia mundial foi novamente interrompida por irregularidades de toda natureza. Reconhecer a ausência de sinais de uma recuperação vigorosa do capitalismo (como foi o ciclo neoliberal que culminou com a recuperação da economia mundial 2002-2008), solavancada pela guerra e os altos preços dos insumos e das matérias-primas (que arriscam regenerar novos processos de rebeliões) é útil para cada grupo daqueles que fazemos parte da Fração Trotskista pela Quarta Internacional (FT-QI) pensar sobre as perspectivas e nossos próprios planos de ação a fim de contribuir qualitativamente para o salto subjetivo que a vanguarda da classe trabalhadora e da juventude precisa dar para poder enfrentar a crise.

2. Do ponto de vista conjuntural, a guerra está em aberto e mergulhada em inúmeras incertezas, de duração indefinida, no marco do que se convencionou chamar como “segunda fase da invasão” por parte da Rússia, dirigida à porção oriental (Donbass) e à parte Sul da Ucrânia. Enquanto na primeira fase da guerra a Rússia dispersou forças numa área demasiado extensa e dissolveu relativamente o quadro de comando entre oficiais jovens, assestando golpes em regiões politicamente centrais e sem densidade populacional afim a Moscou (como Kiev), esta segunda fase modifica esse trajeto. Agora, as forças invasoras de Putin, depois de um revés inicial no plano de batalha, buscam concentrar-se sobre um território menor, mais próximo da Rússia, com densidade populacional majoritariamente de origem russa. No caso do Donbass, um terço do território administrativo de Donetsk e Luhansk estava ocupado desde 2014; no caso da porção Sul da Ucrânia, a Crimeia havia sido anexada nessa mesma época. A partir desses postos de combate, o caráter da guerra muda mais favoravelmente à Rússia do que se encontrava antes. O triunfo militar não está definido, e o novo cenário prognostica uma guerra de tempos largos. É possível identificar dificuldades dos dois bandos. Do lado da Rússia, Putin viu fracassar seu plano de decapitar o governo pró-imperialista de Zelensky num triunfo rápido; não foi capaz de dobrar o governo de Kiev, ajudado financeira e militarmente pela OTAN (ainda que não tenha introduzido suas tropas num combate aberto em território ucraniano). A nova fase da guerra no Donbass-Mar Negro possibilita resultados mais favoráveis a Putin, assentando-se numa posição defensiva em caso de triunfo que transfira o ônus do desgaste ao Ocidente, o que não exclui uma Rússia mais débil, isolada e dependente da China. Do lado da OTAN, cujo expansionismo agressivo no Leste europeu foi um fator chave para a escalada das tensões, não se conseguiu dobrar Putin mesmo com uma considerável unificação e a aplicação de sanções econômicas inéditas na história. A intervenção sem forças no terreno tem a vantagem para o imperialismo norte-americano e seus aliados de evitar o desgaste do esforço de guerra, mas também limita sua capacidade de influenciar o resultado do conflito. Não há saídas fáceis para a nova ordem que se avizinha.

3. Ainda que a realidade não seja a de conflagrações bélicas generalizadas, o horizonte de embates militares está recolocado como possibilidade como não havia há décadas no cenário global. Os dois campos reacionários, o nacionalismo xenófobo russo e a agressividade imperialista da OTAN, marcaram o conteúdo do conflito e deram à guerra na Ucrânia a função de justificadora de um novo programa de militarização das grandes potências. As potências se rearmam para conflitos que podem superar em muito a escala da Ucrânia, e que dizem respeito aos principais problemas não resolvidos da crise de 2008. O rearmamento imperialista se disseminou tendo como justificativa evitar a expansão russa sobre seus aliados no Leste europeu. Recuperando traços da velha teoria do geógrafo Halford Mckinder, que em 1904 desenvolveu a noção da conquista da Eurásia como a chave da dominação geopolítica global, tendo no Leste europeu o seu centro de gravidade, ou Heartland, potências que até então não assumiam grandes responsabilidades de defesa passaram a enxergar a oportunidade para melhorar as condições de suas disputas futuras. Em primeiro lugar, a Alemanha decidiu aproveitar a guerra na Ucrânia para diminuir a brecha histórica, herdeira da catástrofe nazista da II Guerra Mundial, entre sua economia e suas forças armadas. O chanceler social-democrata Olaf Scholz fez aprovar no parlamento um incremento adicional de 100 bilhões de euros ao orçamento de defesa da Bundeswehr, e prometeu em seu giro militarista cumprir a obrigação imposta pela OTAN de pelo menos 2% do PIB dedicados a gastos de defesa. Essa política é firmemente denunciada pelos companheiros do Klasse Gegen Klasse, organização irmã do MRT na Alemanha, em frente única com outras organizações da esquerda anticapitalista que protagonizaram manifestações contra a guerra, pela retirada das tropas russas da Ucrânia e da OTAN do Leste, assim como contra o rearmamento. Os Estados Unidos de Joe Biden, que venderá à Alemanha modernos caças F-35, acaba de aprovar no Congresso, entre Republicanos e Democratas, o maior orçamento militar de sua história: com os adicionais US$31 bilhões, os gastos anuais totais dos EUA com seu rearmamento subirá para colossais US$816 bilhões. A França, em meio às eleições presidenciais, já discute um incremento similar em seus gastos militares. A Austrália, frente ao aumento do orçamento militar da burocracia contrarrevolucionária do Partido Comunista na China para avançar seus objetivos na Ásia-Pacífico, decidiu construir um porto para submarinos nucleares no Pacífico, parte do acordo AUKUS com os EUA e o Reino Unido, que envolve desenvolvimento de mísseis hipersônicos. Inclusive países de muito menor porte, como Estônia, Letônia, Lituânia e Polônia, sem mencionar a Suécia – todos próximos da Rússia – já revelaram seus programas de rearmamento. Essa é a encarnação do contexto da maior novidade no panorama global, a “disputa entre grandes potências” (que sempre inclui a adesão de potências menores nos distintos blocos), e que traz em seu seio, como observava Lênin em situações semelhantes, a possibilidade de choques militares de maior envergadura, que recoloquem no panorama alguns dos traços mais clássicos do século XX.

4. Novas relações entre potências vão se nutrindo no bojo das tendências nacionalistas e beligerantes. A arquitetura de blocos de defesa se combina com a tendência a maiores choques entre as nações. Estados Unidos e Alemanha, China e Rússia, são exemplos paradigmáticos. A campanha contra a Rússia unificou os EUA com a Alemanha nos primeiros meses após a invasão, e o governo alemão acatou determinados movimentos, como a suspensão do Nord Stream 2 e as sanções aos bancos russos, incluindo a exclusão de importantes instituições financeiras do sistema SWIFT. A ofensiva midiática norte-americana também colhe louros em Berlim, e a russofobia se incrementou a níveis históricos. Como escreve Juan Chingo, “As sanções serão difíceis de reverter, não só pela duração da guerra, mas diante do estabelecimento de uma russofobia sistemática, um clima muito semelhante ao instalado contra os muçulmanos após o 11/9 e cujas conseqüências ainda estão sendo sentidas e até mesmo exacerbadas em vários países.” Cada vez mais, a Rússia se vê como um país isolado no sistema de Estados, e vê fragilizados seu laços com as grandes potências europeias, ora encabeçadas no esforço logístico-econômico-militar da OTAN pelos EUA. Países como Polônia e Romênia, além dos bálticos, passaram à linha de frente da construção de uma espécie de lina divisória entre o Leste europeu e a Rússia, exacerbando a submissão ao imperialismo norte-americano. Ao mesmo tempo, o exame da situação ainda lança dúvidas sobre o processo de “desacoplamento”, ou separação, entre a Europa e a Rússia. O mesmo Scholz, que aprovou as sanções e o envio de armas à Ucrânia, está numa campanha interna contra as visões de economistas que consideram possível eliminar a dependência alemã do gás russo (e nisso, é acompanhado pela grande patronal germânica). O imperialismo alemão (e europeu) sabe ser altamente complexo encontrar fontes alternativas ao gás russo na proporção necessária (a Rússia produziu 540 bilhões de metros cúbicos de gás no ano passado, mais do que a BP, Shell, Chevron, ExxonMobil e Saudi Aramco combinados). Qualquer alternativa à atual estrutura de fornecimento obrigaria cortes produtivos e demissões nas principais indústrias alemãs, como atesta o CEO da BASF, uma das maiores empresas químicas do mundo [2]. Os principais dependentes do gás russo na Europa são Alemanha, Itália, França e Turquia, ou seja, o centro de gravidade do complexo industrial europeu. A compra de gás natural liquefeito dos EUA (ou da Argélia e do Azerbaijão), a preços mais caros e com uma logística mais complexa, não corresponde às necessidades de uma Alemanha que volta a rearmar-se, e cujos interesses amanhã podem não coincidir com os de Washington. A Rússia certamente será afetada, e é muito possível que as perspectivas econômicas para os próximos anos sejam de queda. Mas as atuais conquistas discursivas do Ocidente contra a Rússia não tem uma tradutibilidade simples ao campo econômico, e um possível realinhamento dos países da Europa numa “entente anti-russa” é um desafio a ver para os EUA. O rearmamento alemão tende a buscar uma posição crescentemente de “cooperação não subordinada” aos EUA – o que implica cuidar-se de não gerar suspeitas na Casa Branca, mas também de evitar alinhamento integral, especialmente nas zonas de influência alemãs, a Europa Central e Oriental [3] – ainda que agora seja feito com aval de Washington. Também pensando em seus objetivos a China se serve da parceria com a Rússia. Tomando cuidado para não incorrer em punições do Ocidente, de quem depende tecnologicamente em áreas estratégicas como semicondutores e sistemas de software para operação de maquinário, a China deixou claro que, em sua parceria com Moscou, determinadas perdas econômicas conjunturais são largamente compensadas por ganhos geopolíticos. A ditadura bonapartista de Xi Jinping resistiu a todas as pressões do imperialismo da OTAN para exercer contenção substancial à política de Putin. Sua postura foi desde o início a de “neutralidade pró-russa”. O prolongamento da guerra não alterou essa postura. Pelo contrário, Xi ameaçou os Estados Unidos a não se atreverem a alargar o escopo das sanções econômicas, e advertiu os chefes da União Europeia para adotarem uma política externa independente de Washington. O Ministro da Defesa dos EUA, Lloyd Austin, teve de ouvir de Wei Fenghe, general chinês, que Washington deve parar de usar a Ucrânia para chantagear a China. Se é verdade que a China não pode prescindir das relações econômicas com o Ocidente, sabe que o Ocidente precisa manter similar prudência para não estremecer suas relações com a China, incomparavelmente mais importante para a economia mundial do que a Rússia (o que torna virtualmente impensável, sem grandes comoções, uma gama de sanções anti-Pequim como a que se aplicou à Rússia). Ademais, a China se beneficia do desgaste entre Rússia e OTAN em dois aspectos principais: por um lado, Pequim ganha influência à medida que a Rússia se enfraquece e se isola; por outro, quanto mais os EUA se concentra na Europa, menos se dedicam ao Mar do Sul da China e à Ásia-Pacífico, onde a República Popular permanece agressiva em relação a uma possível anexação de Taiwan. É dentro desse marco estratégico que Pequim busca, nos bastidores, moderar a conduta de Putin e acelerar uma solução negociada do conflito – como disse Xi – que não possa ser completamente capitalizada por Biden e os EUA. Essa espécie de “moderação de bastidores”, negociada com a Rússia, mostra que cada um dos atores asiáticos persegue objetivos individuais ao atuar em parceria com o outro contra Washington.

5. A economia mundial será profundamente golpeada pela guerra na Ucrânia. À exceção de figuras folclóricas como Francis Fukuyama, que vê a guerra ucraniana (e a derrota da Rússia) como uma segunda chance para o “fim da história”, os principais atores da burguesia internacional vislumbram o aprofundamento de grandes choques econômico-sociais pelos impactos da guerra. O FMI compara o impacto da guerra ao de um “terremoto”. A OCDE afirma que a guerra dificultará o crescimento global e agravará as pressões inflacionárias, criando um novo choque negativo de oferta para a economia mundial. A UNCTAD reduziu sua projeção de crescimento econômico global para 2022 de 3,6% para 2,6%, números acompanhados pelo The Wall Street Journal, que prevê 2.5% a mais na inflação global, sendo a população mais pobre e trabalhadora o alvo central. Como argumenta o economista marxista Michael Roberts, o conflito entre a Rússia e a Ucrânia (OTAN) está tensionando a economia internacional após a breve recuperação da pandemia, aprofundando as pressões inflacionárias impulsionadas pelo aumento dos preços da energia, dos alimentos e de outras commodities. O risco de estagflação – inflação combinada com recessão – tornou-se uma ameaça real. E isto pode dar origem a novos episódios de luta de classes, como escreve o The Economist quando, em 2011, os eventos da chamada Primavera Árabe se desdobraram diante do aumento dos preços dos alimentos em muitos países, ou em 2018 quando a alta dos preços energéticos inflamou na França o fenômeno dos gilets jaunes (Coletes Amarelos). Além disso, as medidas tomadas contra a Rússia geram um efeito de ricochete que atinge exatamente os países que as implementam, especialmente a UE, e provavelmente já atingiram um nível em que uma escalada ainda maior é muito perigosa. Alemanha e outros países da UE já começam a se opor ao incremento das sanções, e não poderão sustentar a substituição, por exemplo, do gás russo por outras fontes mais caras, como deseja os EUA, o que pode provocar fissuras entre aliados. Para a América Latina, a preocupação pela perspectiva de revoltas da fome, que já são anunciadas para o cenário da África do Norte e do Oriente Médio, é traduzida pela revista Stratfor lembrando os acontecimentos da Revolução Russa de 1917.

6. Está claro que em maior ou menor medida alguns países tentarão se aproveitar dos choques conjunturais para enriquecer – em especial os países dependentes exportadores de matérias-primas valorizadas. Mas os abalos na economia global ultrapassam a conjuntura. Um primeiro ponto de choque se refere às matérias-primas, cujos preços sobem (em alguns casos, a níveis históricos em décadas) em função da guerra, não da robustez das economias e do comércio. O índice de commodities compilado pela Thomson Reuters aumentou mais do que em qualquer período desde 1973. A Rússia, de quem a Europa recebe a maior parte de sua energia, ocupa a primeira, segunda e terceira posições, respectivamente, entre os exportadores mundiais de gás natural, petróleo e carvão. A Rússia também é responsável pela metade das importações de urânio dos Estados Unidos, fornecendo um décimo do alumínio e do cobre mundiais, e um quinto do níquel para baterias. Seu domínio em metais preciosos como o paládio, chave nas indústrias automotiva e eletrônica, é ainda maior. É também uma fonte crucial de trigo (junto à Ucrânia, conformam 30% das exportações globais) e fertilizantes, essenciais para incrementar a produção agrícola. A origem do aumento dos preços em base ao fenômeno bélico trará instabilidades imprevisíveis mesmo para os países que ora se beneficiam dessa alta. A importância de Rússia e Ucrânia na exportação de matérias-primas energéticas e metálicas já afeta a cadeia produtiva global. Por exemplo, o Brasil é o quarto maior consumidor de fertilizantes do mundo (atrás de China, Índia e Estados Unidos) e o maior importador mundial desses insumos: em 2021, dos mais de 40 milhões de toneladas de fertilizantes consumidos no país, 85% foram importados. Ainda que o aumento dos custos logísticos possa temporariamente ser coibido pela lucratividade dos investimentos feitos no Brasil e seu aumento de exportações (substituindo na Europa a carne de frango e porco que vinha da Ucrânia), há pouca estabilidade garantida na alta conjuntural das vendas agropecuárias de um país dependente das flutuações internacionais (da mesma maneira países como Argentina, Peru e Chile, altamente impactados pela pandemia). Quanto aos alimentos, o problema é ainda maior. Os países do Oriente Médio e do Norte da África (como Egito, Tunísia, Síria, Líbano etc.) dependem do trigo ucraniano. O trigo atingiu patamares históricos nas últimas semanas, obrigando governos a fazerem planos de contingência que dificilmente serão capazes de bloquear uma alta na taxa da fome. Outro ponto de choque são as famosas cadeias globais de valor e abastecimento. O especialista Sang Kim é sugestivo sobre as mudanças em curso: “Passando por eventos recentes como a guerra comercial entre EUA e China, as interrupções induzidas pela Covid-19, seguidas pela guerra na Ucrânia, muitas empresas que haviam sido céticas quanto à idéia de reshoring [retomada dos processos industriais em âmbito nacional] e multisourcing [multiplicação das fontes de matérias-primas e escoamento] começaram a reexaminar suas opções”. Já na pandemia, a redução do comércio global pela paralisação da economia fez retornar o tema dos “gargalos” na produção, que durante o neoliberalismo permitiu aos monopólios imperialistas disseminarem os estágios de produção por todo o globo, procurando as fontes de trabalho mais barato e dificultando a resistência operária com greves unificadas e concentradas nos centros da economia mundial. Agora, Larry Fink, chefe da BlackRock, advertiu que “a invasão russa da Ucrânia pôs um fim à globalização que vivemos nas últimas três décadas”. Refletindo sobre essa afirmação, Marco D’Eramo escreve na New Left Review: “Isso não significa que o mundo reverterá imediatamente para economias regionais, barreiras alfandegárias e restrições à liberdade de capital. A globalização implica uma infra-estrutura material demasiadamente maciça – ciclópica – para ser desmontada com tanta facilidade. Mas não devemos subestimar o que está acontecendo com a economia global e, acima de tudo, com as finanças. [...] Uma economia globalizada repousa no pressuposto de que sua ordem geral é mais importante do que as contingências de estados individuais. O capital só pode circular livremente entre bancos de diferentes nações se for igualmente seguro em qualquer instituição. [...] Se o Reino Unido se apoderasse da propriedade de bilionários russos, por que outros magnatas estrangeiros investiriam seu capital em Belgravia, sabendo que ele poderia ser direcionado caso seu país caísse em desgraça com os Estados Unidos? A apreensão das reservas estrangeiras da Rússia tem sido ainda mais sísmica. [...] Em suma, a guerra feriu a globalização ao provocar uma perda de fé no primado das finanças sobre a política – juntamente com os problemas materiais de abastecimento, cadeias de abastecimento e matérias-primas.” O âmbito das finanças se encontra em relação de dependência com as capacidades da economia mundial de processar a comercialização da produção. Com o transporte e abastecimento ameaçados pelas instabilidades globais, certos governos, inclusive dos Estados Unidos, discutem as possibilidades de reintroduzirem certos ramos da produção no interior de seus países (quando esses ramos forem estratégicos) ou de reduzirem a abrangência das cadeias de valor para países mais próximos (como no caso das empresas norte-americanas que buscam transferir sua produção para o México, em detrimento da Ásia). O ramo estratégico dos semicondutores é um exemplo claro. Taiwan tem uma participação de 53% no mercado mundial de fundição de semicondutores, e 92% para microchips avançados. Diante das ameaças chinesas a Taiwan, as potências buscam arquitetar planos desesperados (e dificilmente eficientes, como aumentar os estoques de microchips, dadas as décadas de avanço neoliberal) para tornar sua indústria menos dependente da produção asiática. De acordo com Shamik Dhar, economista-chefe do BNY Mellon Investment Management, os padrões comerciais serão moldados pelo retorno de grandes políticas de poder e pela prevalência de blocos comerciais amigáveis. Mesmo se a guerra da Rússia fosse relativamente curta, “a arquitetura econômica internacional existente é cada vez mais periférica às grandes questões da economia política”, com os governos, no futuro, provavelmente promovendo “os interesses de segurança às custas da vantagem comparativa”. Naturalmente, a “reindustrialização” das superpotências imperialistas, enquanto retorno da estrutura das cadeias produtivas aos países das multinacionais, não está no horizonte: os monopólios não vão renunciar à extração de mais valor nos países da América Latina, Ásia e África. Mas, como diz o historiador econômico Adam Tooze, certa reconfiguração das cadeias de valor podem ocorrer em função de receios geopolíticos pós-invasão da Ucrânia, com impactos estratégicos na economia mundial [4]. O primado da política e das preocupações geoestratégicas por sobre a velha rede das cadeias produtivas é um fator novo em nossa etapa da crise mundial, diante do altíssimo desenvolvimento da abrangência das cadeias globais nas últimas décadas.

7. Essas discussões sobre a subordinação da reconfiguração das cadeias de valor e abastecimento em função de objetivos geopolíticos, à luz da guerra na Ucrânia, recoloca no tabuleiro as tendências aos nacionalismos econômicos, que ressurgiram com a ascensão de Donald Trump nos Estados Unidos, e que emanam da própria crise mundial. A polarização política e social segue sendo a marca da situação mundial, com a diferença de que a invasão russa é lida nos Estados-Maiores como um ponto de inflexão, em que os Estados nacionais precisam se endurecer para estarem preparados para cenários mais agudos de disputa. A partir de 2016, muitos governos protecionistas de extrema direita ganharam o palco na esteira do Brexit no Reino Unido e da “Internacional Direitista” encabeçada por Trump, como Boris Johnson na Inglaterra, Matteo Salvini na Itália, Viktor Orbán na Hungria, Andrzej Duda na Polônia, o próprio Bolsonaro no Brasil. Esses governos ascenderam no marco de profundas crises orgânicas, que segundo o marxista italiano Antonio Gramsci podem ser sintetizadas como crises de autoridade estatal e de hegemonia dos tradicionais regimes políticos burgueses, fruto do fracasso de grandes empreendimentos político-econômicos das respectivas burguesias nacionais, em que emergem tendências à polarização, tanto à direita como à esquerda. Empreendemos inúmeras análises dos regimes em crise a partir dessa conceitualização de Gramsci, mostrando o impacto dela no fortalecimento das saídas carismáticas e messiânico-autoritárias, de um lado (como Bolsonaro no Brasil, ou Nayib Bukele em El Salvador), e por outro no robustecimento do autoritarismo das instituições sem voto, como o Judiciário ou mesmo os aparatos eclesiásticos. Prévio a esse momento, houve o breve ciclo das principais formações neorreformistas na Europa, em especial o Syriza na Grécia e o Podemos no Estado espanhol, que rapidamente transitaram do seu discurso “antineoliberal” à aplicação de ajustes antioperários ao gosto da União Europeia (caso da Grécia), ou à coalizão com os velhos partidos social-liberais que aplicam estes mesmos ajustes (como no caso espanhol, em que o Podemos é colaborador da nova reforma trabalhista do PSOE). Em ambos os casos, a direita e a extrema direita se viram fortalecidas. A derrota de Trump em 2020 e o triunfo de Joe Biden significaram uma fragilização da expressão política superestrutural das tendências ao nacionalismo econômico, ainda que sua expressão material seguisse colocada com força (como mostrou a continuidade do comportamento agressivo dos EUA com a China na administração Democrata). Muitos desses governos se enfraqueceram a nível global, e o papel das revoltas e da luta de classes foi categórico nesse curso. Em especial nos Estados Unidos, em que as enormes manifestações do Black Lives Matter golpearam Trump e expressavam os aspectos mais à esquerda da polarização social. Foram antecedidas pelas greves operárias do transporte na França contra a reforma da previdência de Macron, as revoltas no Oriente Médio (Irã, Iraque) contra o aumento dos preços dos bens básicos de consumo por parte de governos autoritários, e as grandes rebeliões de massas na América Latina (Equador, Peru, Colômbia), que tiveram como ponto alto o Chile em Outubro de 2019. Ao não terem ultrapassado os marcos da revolta, e sem encontrar o caminho a processos revolucionários anticapitalistas com protagonismo da classe trabalhadora, que com seus organismos de auto-organização e sua vanguarda organizada em partido hegemonizasse os setores oprimidos, essas revoltas e rebeliões foram desviadas e contidas nos marcos de cada regime pelas burocracias conciliadoras e reformistas, de distintas maneiras. Nos Estados Unidos, canalizando o movimento Black Lives Matter para fora das ruas para fortalecer Biden e os Democratas nas eleições; no Chile, em que a desativação das manifestações a partir da paralisação nacional do 12N foi conquistada através de um processo constituinte antidemocrático, utilizado como instrumento de desvio a fim de reoxigenar o regime herdado de Pinochet através dos Acordos pela Paz com Piñera, a Frente Ampla e o Partido Comunista. Agora, a guerra na Ucrânia mostra uma relativa recuperação nos marcos de uma fragilidade prévia das forças políticas que representam as tendências nacionalistas, como vemos no triunfo de Orbán na Hungria, o revigoramento de Marine Le Pen na França (ainda que tenha sido derrotada no segundo turno presidencial contra Macron, traz força para as legislativas), e as perspectivas de um fortalecimento de Trump nas eleições de meio-mandato nos Estados Unidos. Exagerar essa tendência seria um equívoco, especialmente porque já há uma experiência com o trumpismo e as correntes de extrema direita, que geram ódio em camadas de massas na população trabalhadora e jovem. Os resultados de Jean-Luc Mélenchon mostram, também, a falsidade da visão unilateral sobre a “direitização” do regime político francês. Entretanto, essa relativa desfragilização deve ser levada em conta, nos marcos da reatualização dos traços de época com a guerra na Ucrânia. Uma das resultantes dessas tendências nacionalistas é dificultar aproximações demasiado firmes entre potências imperialistas como os EUA e a Alemanha, ainda quando compartilhem determinados objetivos táticos. O que parece certo é que, numa eventual nova entrada em cena de certos governos de caráter trumpista, as contradições entre as classes se expressariam com muito mais força do que no pós-2016, com a enorme instabilidade mundial e a abertura a novos processos convulsivos da luta de classes.

8. Como dissemos, a guerra na Ucrânia não deu origem ainda a processos agudos de luta de classes. Entretanto, as tensões econômicas que serão sentidas nos próximos meses e a polarizacão entre nacionalismos no pós-guerra avizinham um cenário de maiores sofrimentos para a população pobre, abrindo novas oportunidades para explosões sociais. Do ponto de vista da luta de classes, a novidade se encontra nos processos profundos que vem se desenvolvendo no coração do imperialismo norte-americano, que da onda de greves de 2021 passou a se concretizar em um movimento de sindicalização que percorre o país. Dezenas de filiais da Starbucks conseguiram sindicalizar-se, e a conquista do primeiro sindicato na história da Amazon, em Staten Island (NY), derrotando Jeff Bezos, marca um ponto de inflexão que incide na subjetividade dos trabalhadores. O Washington Post explica que “muitos líderes do movimento tem pouco mais de 20 anos; eles são denominados como ‘Geração U’, pelo Union [sindicato]. A aprovação dos sindicatos é a mais alta desde 1965, com 68% de popularidade, subindo para 77% entre os norte-americanos de 18 a 34 anos, segundo recente pesquisa da Gallup”. Entre jovens trabalhadores negros e latinos, o apoio à sindicalização é ainda maior, já que são os setores com menos direitos e mais explorados. Podemos estar testemunhando uma geração de trabalhadores que se recusa a cumprir as regras que o neoliberalismo impôs ao movimento operário durante décadas. Esta é uma geração precária que está muito endividada e tem pouco a perder. É uma geração altamente politizada (que se serviu na Amazon dos manuais de sindicalização do setor metalúrgico na década de 1930 nos EUA), que viveu e participou do movimento Black Lives Matter, que produziu as maiores manifestações da história dos EUA, e muitos estão fazendo conexões entre a luta pela libertação negra e a luta pela sindicalização. Com efeito, as campanhas de sindicalização na Amazon são dirigidas por trabalhadores negros e latinos, com grande participação das mulheres (como vimos na Starbucks). Nossos companheiros do Left Voice, organização irmã do MRT nos Estados Unidos, é parte reconhecida pela vanguarda desse processo de renovação sindical pela base, estando presente em vários episódios desse fenômeno na Amazon e na Starbucks, e denunciando a tentativa do Partido Democrata de cooptar esse movimento. Sem ignorar todas as pressões exercidas pelo regime sindical imperialista, historicamente atrelado ao Partido Democrata, o surgimento de novos sindicatos encabeçados pelos setores mais precários e politizados da juventude trabalhadora negra e latina pode ser um ingrediente que movimente as peças do tabuleiro da luta de classes nos Estados Unidos. Ademais, o fato de esses novos sindicatos serem erguidos em ramos modernos da logística e dos serviços – que como defendem autores como Kim Moody, estão profundamente ligados à produção e ganharam maior relevo com a nova disposição das cadeias globais de valor no curso da era neoliberal – pode ter efeitos importantes sobre os sindicatos mais burocratizados, concentrados nos ramos tradicionais da indústria (AFL-CIO). Abre-se um interessante debate sobre as melhores formas de se sindicalizar nos Estados Unidos. Como menciona o The New York Times acerca da diferença entre a sindicalização impulsionada pela base e aquela pela burocracia: “Ao contrário dos sindicatos tradicionais, o Sindicato dos Trabalhadores da Amazon (Amazon Labor Union) confiou quase que inteiramente nos trabalhadores atuais e antigos, e não nos organizadores profissionais em sua campanha em um armazém em Staten Island. Para o financiamento, recorreu a uma campanha online em vez dos cofres sindicais tradicionais construídos com contribuições dos membros existentes. Espalhou a palavra em uma sala de descanso e em churrascos discretos fora do armazém.” Mark Dimondstein, presidente do Sindicato Estadunidense dos Trabalhadores dos Correios, se referiu a isso dizendo que “estão enviando um chamado de atenção para o resto do movimento trabalhista”. Trata-se de uma atmosfera que favorece intentos de auto-organização, a participação dos trabalhadores de base na vida sindical e a conclusão de que somente greves reais (não por funcionários sindicais isolados), são capazes de dobrar a patronal. Um clima bastante mais à esquerda diante da cultura macartista antisindical das últimas décadas, que responde à nova geração de trabalhadores e sua experiência na pandemia. O estabelecimento do sindicato em Nova York – precedido por muitas mobilizações em outros galpões da Amazon, como em Bessemer, no Alabama – e a onda de sindicalização ocorrem num contexto em que esses setores mais precários da classe trabalhadora tomaram consciência de que seu trabalho é essencial. Fruto dessa percepção, vimos em 2021 o fenômeno chamado da “Grande Renúncia”, em que milhões de pessoas deixaram seus empregos anteriores frustradas por condições de trabalho terríveis; um fenômeno simultâneo ao Striketober, a maior onda de greves nos EUA desde a década de 1980, que se concentrou em outubro de 2021, na qual assistimos a greves na fábrica de tratores da John Deere, na empresa de alimentos Kellogg’s, na Universidade de Columbia e em vários outros locais. Os professores de Sacramento realizaram sua greve seguindo os passos dos professores de Minneapolis que protagonizaram uma greve histórica em março. O fato de esse renovado processo de sindicalização de uma nova geração estar acontecendo nos EUA no coração do imperialismo mundial certamente inspirará jovens trabalhadores precários em toda a América Latina, na Europa e demais regiões, que trabalham exatamente nas mesmas condições. Um exemplo disso é a greve inédita de todos os galpões da Amazon na França.

9. Na América Latina, assim como a nível internacional, essas tendências se chocam com contratendências que vem atravessando nosso subcontinente. No Brasil, o relativo estancamento da queda de Bolsonaro, para além de recuperações conjunturais da economia em função do alto preço dos itens de exportação nacionais, responde também àquela desfragilização relativa das tendências nacionalistas de extrema direita. Essa leitura não exclui, e sim se combina à dinâmica provável do triunfo de forças políticas reformistas de conciliação em regiões como a América Latina, expresso no favoritismo atual de Lula contra Bolsonaro no Brasil, ou no triunfo de Boric contra Kast no Chile. Com efeito, a partir de 2020, com o impacto da pandemia afetando as perspectivas políticas de governos à direita que governavam a região, o pêndulo político latino-americano passou a auxiliar forças políticas nacionalistas reformistas de distinta natureza, algumas das quais afins àquelas que governaram a América Latina nos anos 2000 (sem eliminar as contratendências, como o triunfo do banqueiro Guillermo Lasso no Equador). Na Argentina, o peronismo-kirchnerismo venceu as eleições de 2019 contra Macri, já antes da pandemia; após o golpe de Estado na Bolívia, o MAS recuperou a presidência com Luís Arce. No Peru, Pedro Castillo debelou Keiko Fujimori (depois de tentativas de fraude da extrema direita), enquanto no Chile, Boric e a Frente Ampla venceram as eleições. Esses novos governos, entretanto, surgem principalmente pelo desgaste da direita, e não por uma especial capacidade hegemônica. Um aspecto fundamental desse caráter do retorno desses governos é a grande diferença do panorama econômico. Longe do horizonte está o tempo de bonança econômica internacional, em que o alto preço das matérias-primas (fruto da fortaleza das recuperações econômicas, não de eventos “externos” como uma guerra), o fluxo de dólares e a voracidade do crescimento chinês permitiam certas concessões de governos essencialmente voltados à subordinação ao capital estrangeiro, como foi o lulismo no Brasil, o evomoralismo na Bolívia, o chavismo na Venezuela e o kirchnerismo na Argentina. O panorama de crise mundial, agravado pela pandemia e pela guerra na Ucrânia, reserva incertezas que tornam os novos governos latino-americanos forças “reformistas sem reformas”, atados à administração das agendas direitistas prévias. Vemos isso no cenário argentino, em que Alberto Fernández e Cristina Kirchner não apenas administraram a herança macrista mas também, no marco dos distintos objetivos políticos entre as forças do regime, formaram uma espécie de “grande centro nacional” com a coalizão de direita para votar a submissão do país ao FMI (levando em conta que as frações predominantes da grande burguesia argentina e os governos imperialistas, em particular os EUA, estão apostando em evitar cenários de crise aguda em que poderiam perder o controle). Na Bolívia, o governo Arce aponta um caminho ainda mais alinhado à patronal do que vinha fazendo Evo Morales, aprofundando a entrega dos recursos naturais, e vendo-se obrigado a ter uma política de negociação permanente com a direita de Santa Cruz, sem possuir os atributos carismáticos na relação com o movimento de massas (camponeses e sindicais) que sustentavam o semi-bonapartismo de Evo. Já no Peru, as tensões econômicas e políticas, que antecediam as eleições, colocaram em evidência a fragilidade de Pedro Castillo, que havia sido eleito majoritariamente pelas bases pobres de trabalhadores das zonas rurais, mas que levou adiante um programa neoliberal em unidade com representantes empresariais da direita que preencheram seus inúmeros gabinetes. Para sustentar-se na crise permanente em que se encontra, buscou apoio de ninguém menos que Bolsonaro, saudando como aliado o governo de extrema direita no Brasil (e deixando em apuros a esquerda brasileira que o apoiou). Fruto de sua política de ataques, mobilizações de massas surgiram contra o aumento dos custos de vida e sua política econômica, o que Castillo respondeu com repressão, impondo um estado de emergência na capital Lima, que foi levantado pela pressão das manifestações, as primeiras mobilizações de trabalhadores e camponeses contra o ajuste econômico do governo (agravado em função da guerra da Ucrânia, com o alto preço dos combustíveis e fertilizantes) desde que Castillo chegou ao governo. Nossos companheiros da Corrente Socialista de Trabalhadores (CST) atuam ativamente com um programa operário de emergência e uma greve geral que faça os capitalistas pagarem pela crise, e lutar por uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana. Nesse cenário ainda incerto, podemos ler uma verdade que se pode enxergar em toda a região: as dificuldades econômicas tornam esses governos muito mais frágeis do que na década de 2000 em sua capacidade de controle da conflitividade social. A agência Stratfor, inclusive, no marco da debilidade econômica e política na América Latina, menciona o Brasil em suas análises, como um país onde tendencialmente haverá mais greves econômicas, e suscetível a revoltas e descontroles sociais pelo aumento do custo de vida. Um eventual governo Lula, tendo de se enfrentar com uma base bolsonarista e aliado com a direita golpista e neoliberal, provavelmente se verá no espelho de Alberto Fernández. A administração da agenda econômica do golpe pode causar mais problemas em sua capacidade histórica de contenção social para a burguesia brasileira, numa política que provavelmente tenderá a amortecer cenários de crises agudas, que em todo o caso dependem também do panorama internacional.

10. Nesse contexto internacional em que a economia e a luta de classes são lidas a partir da guerra na Ucrânia, há discussões abertas na esquerda que se reivindica anticapitalista e revolucionária. Definir o tipo de guerra com o qual nos deparamos é a chave para levantar uma política correta, como em toda a história da tradição marxista. Não estamos diante de uma guerra inter-imperialista, como foram as duas grandes guerras mundiais, que opuseram em beligerância direta as principais potências imperialistas do mundo, entre 1914-1918 e 1939-1945. Tampouco estamos diante de uma guerra em que todo o bando imperialista esteja de um lado e a nação oprimida de outro, como no Iraque em 1991 e 2003, ou no Afeganistão em 2001. Estes últimos três episódios são exemplos claros em que a luta para derrotar o ataque do imperialismo, e o triunfo do país oprimido, eram bases fundamentais de qualquer postura independente e anti-imperialista. Depreendia-se disso que os socialistas revolucionários se posicionassem no campo militar dos povos afegão e iraquiano, rejeitando ao mesmo tempo qualquer apoio político a seus governos reacionários. Algo semelhante pode ser dito da Guerra das Malvinas de 1982, que a ditadura genocida argentina empreendeu de maneira aventureira para neutralizar sua crise, mas que colocou um país semi-colonial como a Argentina contra uma potência imperialista como a Grã-Bretanha, apoiada pelos EUA e outras grandes potências. O exemplo argentino é muito próximo daquela hipótese teórica desenvolvida por Trótski sobre o Brasil de Vargas, mostrando um cenário em que a Inglaterra imperialista entrasse em conflito militar contra o Brasil fascista, evento em que a postura dos revolucionários deveria ser de participação no campo militar da isolada semicolônia agredida contra o imperialismo britânico. Diz Trótski: “De que lado estará a classe trabalhadora neste conflito? Neste caso, eu pessoalmente estaria com o Brasil ‘fascista’ contra a ‘democrática!’ Grã Bretanha. Por quê? Porque não seria um conflito entre democracia e fascismo. Se a Inglaterra ganhasse, colocariam outro fascista no Rio de Janeiro e atariam o Brasil em cadeias duplas. Se, por outro lado, o Brasil saísse triunfante, a consciência nacional e democrática desse país ganharia um poderoso impulso que levaria à derrubada da ditadura Vargas. Ao mesmo tempo, a derrota da Inglaterra seria um duro golpe para o imperialismo britânico e daria um impulso ao movimento revolucionário do proletariado inglês.” Tanto o exemplo da real Guerra das Malvinas, quanto o hipotético envolvendo o Brasil, são exemplos (como o das duas Guerras do Golfo, e a invasão ao Afeganistão) em que os socialistas revolucionários devem estar no campo militar da nação oprimida, sem nenhum apoio aos governos reacionários de turno. Nada disso existe hoje no cenário ucraniano. Nesta guerra específica, seu caráter é definido por dois elementos centrais e simultâneos: de um lado, um país semicolonial como a Ucrânia está sendo invadido e bombardeado pela Rússia, um país capitalista que atua como uma potência militar em sua região de influência com o reacionário nacionalismo do Putin – Rússia que, ainda não sendo parte de nenhum “bloco anti-imperialista” como dizem os stalinistas, é um país economicamente débil e não pode ser classificado como um imperialismo; de outro lado, os imperialismos da OTAN instrumentalizam o conflito para expandir sua presença militar na região, participam ativamente no envio de armamento e apoio logístico ao governo ucraniano, e ainda que na Ucrânia não tenham enviado soldados, sim enviaram tropas terrestres aos países do Leste europeu membros da OTAN, e aplicaram duras sanções econômicas, sendo os trabalhadores russos os primeiros a sofrerem suas consequências com demissões em massa. Ou seja, diferentemente dos tipos de guerra traçados acima, deparamo-nos hoje com uma guerra em que a Ucrânia, uma semicolônia agredida pela invasão reacionária do Putin, tem alinhado atrás de si o conjunto das potências imperialistas, em primeiro lugar os EUA. É uma guerra específica que, pelo caráter do seu comando político-militar, não pode ser comparada com guerras de libertação nacional, que antes de mais nada são anti-imperialistas – o que não exclui o direito de defesa contra a agressão russa.

11. Diante desse cenário concreto, depois de elucidar o tipo de guerra existente, é que os marxistas devem tomar posição. Há quatro visões sobre os efeitos políticos ainda incertos da guerra em curso. A primeira é a que enxerga a possibilidade de um triunfo da OTAN como uma solução dos problemas capitalistas mundiais e um revigoramento da antiga ordem mundial unipolar controlada pelo imperialismo norte-americano. Uma segunda visão assinala que a ofensiva russa seria “benéfica” para dar origem a uma nova ordem multipolar, em que o eixo China-Rússia seria a “alternativa progressista” ao imperialismo ocidental. A terceira, vinculada a setores do neorreformismo (como Jean-Luc Mélenchon na França, Pablo Iglesias no Estado espanhol), que apresentam a diplomacia da ONU como alternativa às sanções e envio de armas, uma política soberanista de esquerda enquadrada nos marcos do imperialismo ocidental. E uma quarta posição, como a que defendemos, considera que a guerra da Ucrânia reatualiza as características de época do imperialismo (crises, guerras e revoluções), recrudesce as tensões interestatais e os choques sociais, e deve levar os revolucionários a se preparar para situações convulsivas em que o fator subjetivo é decisivo. Dentro desse quadro, é possível situar as principais tendências adversárias a uma saída operária e socialista. O grosso da centro-esquerda mundial está se curvando à propaganda da grande imprensa, que tenta usar o justo repúdio à invasão reacionária do Putin para apresentar a OTAN como uma defensora da paz e da democracia. Uma OTAN que foi criada em 1949 contra a URSS para ser um pilar do domínio norte-americano com histórico de intervenções imperialistas, também no Leste europeu, como na Iugoslávia, Bósnia e Kosovo, e que agora, busca consolidar a expansão da OTAN para o Leste, tentando transformar a Ucrânia numa base militar. Já os partidos chamados comunistas (da tradição stalinista, o PCB e do PCdoB no Brasil), setores do PT, o chavismo e outras correntes populistas em todo o mundo procuram apresentar o Putin – e um bloco com a ditadura da China – como uma espécie de alternativa ao imperialismo, em que a invasão da Ucrânia seria uma medida necessária de “defesa nacional”. A stalinista UP se localiza em um ângulo aparentemente “nem com Putin, nem OTAN”, mas que, sem agitar o rechaço à invasão atual, cede ao campo reacionário pró-russo – não faz qualquer menção à classe trabalhadora como sujeito para responder a essa crise, sendo a UP pautada pela velha concepção stalinista de que o mundo se define exclusivamente na “luta entre Estados”. Esses setores do stalinismo terminam nos braços de governos bonapartistas e ditatoriais, que buscam melhorar sua posição no concerto mundial de Estados sem opor objeção à ordem mundial imperialista, e às custas de atacar os interesses da classe trabalhadora.

12. Nesse universo, a esquerda que se referencia no trotskismo adotou uma posição simétrica oposta à do stalinismo, e contrária ao campismo pró-Putin, aderiu a posições campistas pró-OTAN. A LIT/PSTU e a UIT/CST, com quem participamos no Polo Socialista e Revolucionário dando a batalha por uma política de independência de classe no Brasil, compartilham uma posição comum em que o papel da OTAN no conflito, embora seja denunciado, é secundarizado, como se não fosse um ator central que teria grandes implicações na definição de uma política independente. Defendendo as sanções imperialistas, são apoiadores dos ataques econômicos promovidos pelos EUA e a União Europeia contra os trabalhadores russos; defendendo o envio de armas por parte do imperialismo a um governo submetido ao Ocidente e atuando junto à OTAN, por trás de uma suposta “anti-neutralidade” terminam apoiando os esforços militares de um governo pró-imperialista que tem o conjunto das potências alinhado atrás de si, amarrando as mãos das massas num regime de lei marcial. Esse ceticismo na possibilidade do surgimento de uma resistência genuinamente independente dos trabalhadores e do povo pobre é um desserviço na batalha para que o justo combate contra a reacionária invasão de Putin não seja instrumentalizado pela OTAN e pelo nacionalismo de Zelensky. O programa comum de PSTU e CST,“Fora as tropas de Putin e da Rússia na Ucrânia! Apoio à resistência popular do povo ucraniano!”, junto à agitação superficial sobre a derrota militar da Rússia, é expressão dessa adaptação ao campo pró-OTAN, o que torna as consignas defendidas pelo PSTU e a CST num eco da propaganda imperialista divulgada na imprensa ocidental, como discutimos no próprio Polo Socialista e Revolucionário. Usam o fato de não haver tropas da OTAN na Ucrânia para concluir, erroneamente, que o imperialismo não está intervindo ativamente no cenário ucraniano, colaborando com armamentos, recursos logísticos, tropas nos bálticos e sanções, esquecendo que a autodeterminação ucraniana, que passa pelo rechaço a Putin, não pode ser conquistada fora do rechaço simultâneo e da luta aberta contra o imperialismo norte-americano e europeu. Outro exemplo de absolutização de um aspecto do conflito é o Secretariado Unificado mandelista, do qual o MES/PSOL é seção simpatizante no Brasil, que também ecoa a mesma propaganda pró-OTAN em suas consignas, exigindo armas e sanções, com a diferença que sua postura é a de um pacifismo utópico que busca o retorno da situação mundial ao status quo pré-guerra. Na Frente de Esquerda e dos Trabalhadores Unidade (FITU), na Argentina, nossos camaradas do Partido dos Trabalhadores Socialistas (PTS), que encabeçam essa que é a principal frente político-programática de independência de classes no mundo, também levam adiante essas discussões com os membros da FITU. A Izquierda Socialista (organização irmã da CST na Argentina), defende a mesma postura que capitula ao campismo pró-OTAN, enquanto o Partido Obrero (PO), apesar de exigir corretamente o “fim dos bombardeios e da incursão militar de Moscou” e uma “Ucrânia independente, unificada e socialista”, o foco de sua posição está nos objetivos da OTAN, uma abordagem em que um elemento central da guerra atual – a existência de um país semicolonial invadido por uma potência militar como a Rússia – permanece em segundo plano. Na França, nossos companheiros do Révolution Permanente também discutem as posições equivocadas de espectros da intelectualidade, como o caso de Gilbert Achcar, e também de Stathis Kouvelakis, parte do Secretariado Unificado na Grécia: enquanto ambos condenam a agressão russa, para Achcar trata-se de uma “guerra imperialista de invasão”, que envolve a Ucrânia em uma “guerra justa”, enquanto a Kouvelakis insiste no “caráter inter-imperialista” da guerra na Ucrânia, inscrita no quadro mais geral de um conflito entre a Rússia e a OTAN. Para o público europeu, que está diretamente vinculado à guerra em seu território continental, distintos grupos da FT (Argentina, França, Alemanha e Estado espanhol) realizaram um debate para estabelecer as bases de uma posição revolucionária contra os imperialismos da OTAN e seu rearmamento, que não representam alternativa ao nacionalismo xenófobo de Putin.

13. Os fundamentos teóricos que levam organizações como PSTU e CST a cometerem tais equívocos no cenário desta guerra no Leste europeu são os mesmos que os conduziram similares num processo distinto da guerra na Ucrânia, mas que também desafiou a esquerda quanto a uma política independente do imperialismo: o da Primavera Árabe. Dizem que sua política de apoio ao bando pró-imperialista da guerra civil síria (o Exército Livre Sírio), em nome de lutar contra o sanguinário Assad, foi a posição correta. A realidade na Síria, assim como na Líbia, no Egito, etc. é mais complexa: mostrou a catástrofe dessa política de adaptação às oposições burguesas aos governos de turno, que pela mão do imperialismo desviaram os iniciais processos populares e deram a eles desenlaces reacionários, e que levou o PSTU a apoiar os bombardeios da OTAN na Líbia ou a repressão do Exército egípcio à Irmandade Muçulmana. A mesma lógica foi seguida por PSTU e CST durante o Euromaidán na Ucrânia em 2014: em nome de se opor a autocratas pró-russos, acabaram por considerar uma “revolução democrática” a queda do regime de Viktor Yanukovich realizada por uma coalizão que ia desde os partidos da oposição liberal pró-ocidental até a ultradireita neonazista, que fortaleceram a ala pró-ocidental da burguesia ucraniana, hoje com Zelensky. Esse posicionamento frequente não é acidental. PSTU e CST compartilham o fundamento teórico da “teoria da revolução democrática” de Nahuel Moreno, que sustentava que diante do “fascismo e dos regimes contrarrevolucionários” era necessário estabelecer como objetivo “uma revolução no regime político para conquistar as liberdades da democracia burguesa, mesmo que fosse no terreno dos regimes políticos da burguesia e seu Estado”. Isso era assim já que, como toda revolução em nossa época seria em si mesma “inconscientemente socialista” segundo Moreno, não seria “obrigatório que seja a classe trabalhadora e um partido marxista revolucionário os que dirijam o processo da revolução democrática rumo à revolução socialista”. A realidade é que os problemas democrático-nacionais não podem ser resolvidos por opções burguesas, menos ainda aquelas financiadas e armadas pelo imperialismo. Mais que qualquer outra coisa, a Primavera Árabe e a Ucrânia mostraram que a separação entre a luta pelos direitos democráticos e a luta anti-imperialista é um beco sem saída para o movimento de massas. Desde suas primeiras formulações da teoria da revolução permanente, Trótski argumentou que mesmo em um país onde o proletariado constituía uma minoria, como a Rússia, sua hegemonia era uma condição para “a resolução integral e efetiva” dos objetivos democráticos, necessariamente ligados a transformações estruturais, que entrelaçavam numa dinâmica permanentista a revolução democrática e a socialista. As últimas décadas ampliaram o significado dessa tese, e a Ucrânia hoje torna a necessidade de uma política anti-imperialista independente mais atual para resolver os problemas nacionais, incluído o da autodeterminação.

14. Todos esses debates mostram a importância da compreensão e defesa de um programa correto na guerra da Ucrânia, que tem importância mundial. Setores do populismo justificam ignorar os acontecimentos ucranianos porque o mundo “ignoraria” a opressão na África, na Palestina, e nas favelas. A luta contra o racismo e a xenofobia em todo o mundo é fundamental diante da arrogância beligerante do imperialismo europeu e norte-americano. Mas isso não quer dizer que possamos ignorar os problemas graves que a guerra impõe à Europa, e ao mundo, muito menos porque seriam “brancos”, como suscitam essas correntes populistas. A classe trabalhadora é internacional, e precisa ser unificada diante das guerras reacionárias. O enorme exemplo os estudantes franceses, que se manifestaram em distintas capitais em defesa do registro e da matrícula gratuita nas universidades dos refugiados da guerra da Ucrânia independentemente de suas nacionalidades, contra a triagem racista do governo francês, não tem nada a ver com o racismo repudiável das potências, e é um ponto de apoio para nossa luta no Brasil. Assim também, sobre o problema da autodeterminação da Ucrânia, oprimida entre potências, uma política correta avançaria enormemente as possibilidades de um combate internacionalista para a resolução integral e efetiva das questões mais sentidas nos países dependentes e semicoloniais. Neste contexto, uma política independente que abordasse consistentemente o problema nacional na Ucrânia implicaria não apenas a luta contra os setores pró-imperialistas, mas também incluiria o direito à autodeterminação de Donetsk e Luhansk e da população de língua russa. Sem isso, dificilmente seria possível alcançar a unidade do povo trabalhador ucraniano capaz de derrotar a invasão de Putin sem estar de mãos dadas com a OTAN, e de lutar por uma Ucrânia independente. Isso também significa se opor à ocupação nas regiões pró-rusas e lutar contra a demagogia putinista. Para a luta contra a invasão e por uma verdadeira autodeterminação, uma política independente é essencial para superar as divisões das lideranças subordinadas a Putin e ao imperialismo norte-americano e europeu. Neste sentido, a luta pela autodeterminação nacional do povo ucraniano está intimamente ligada à perspectiva de um governo de classe trabalhadora: uma Ucrânia operária e socialista, unificada, livre e independente. Desde o início do conflito, em base a esse programa, nós da FT-QI nos posicionamos em repúdio à guerra reacionária, pela retirada das tropas russas da Ucrânia, bem como contra a OTAN e pela retirada de suas tropas da Europa do Leste, rechaçando o rearmamento imperialista, pela unificação da população trabalhadora internacionalmente num grande movimento antiguerra que se oponha aos dois bandos reacionários.

15. Para além dos debates internacionais que nós da Fração Trotskista, nos distintos países, levamos adiante com a esquerda, nossa batalha comum pela reconstrução de partidos revolucionários a nível internacional se insere nos distintos panoramas nacionais. Na Argentina, nossos companheiros de PTS, no interior da Frente de Esquerda e dos Trabalhadores Unidade, encabeçam uma grande luta contra o atual governo Aberto Fernández-Cristina Kirchner e seu pacto com o FMI em comunhão com a direita macrista. Desde o 11D de 2021 são múltiplas jornadas nacionais de luta, com dezenas de milhares nas ruas e em frente única com centenas de organizações sociais e sindicatos, contra a política que unifica o regime burguês argentino na submissão ao organismo econômico imperialista, que exacerba a decadência e a subordinação internacional do país, aprofundando a miséria da classe trabalhadora, que precisa pagar o acordo com ajustes. Como dissemos, as frações predominantes da grande burguesia argentina e os EUA estão apostando em evitar cenários de crise aguda em que poderiam perder o controle, dosando a medida dos ataques. Da mesma maneira, o “grande ’centro’ nacional” que tem seus representantes nas duas grandes coalizões (Alberto Fernández, Sergio Massa e a Frente de Todos; Larreta, Morales e o Juntos por el Cambio) procura chegar a 2023 sem que a crise se manifeste (inadimplência, hiperinflação, etc.) e organizar mais seriamente aquela maior ofensiva que o grande capital necessita, de acordo com a burocracia sindical peronista, da qual o acordo com o FMI é um primeiro passo”. A reorganização da vanguarda argentina passa por essa experiência de combate ao FMI e ao “grande centro” burguês (com seus objetivos próprios) que o PTS e a FITU levam adiante. Se por um lado a direita ultraliberal, e que flerta com o bolsonarismo, como Espert e Milei, surgiram como fenômenos pela direita dessa crise orgânica na Argentina, pela esquerda a FITU claramente afiançou seu lugar como terceira força política nacional, recebendo mais de 6% dos votos nacionalmente e elegendo quatro deputados federais (Nicolás Del Caño, Myriam Bregman, Alejandro Vilca, do PTS, e Romina del Plá do PO) com um caudal de apoio que incluiu setores descontentes do próprio kirchnerismo, e também atingindo os setores mais precários da classe trabalhadora nos distritos da Grande Buenos Aires, o centro de gravidade do proletariado argentino (e também do peronismo). Essa frente política de independência de classes, que defende um governo de trabalhadores de ruptura com o capitalismo, é um expoente para a esquerda latino-americana e mundial, e um exemplo de como deve se referenciar o Polo Socialista e Revolucionário no Brasil. Na França, os companheiros do Révolution Permamente, junto a centenas de personalidades e intelectuais de grande envergadura, protagonizaram a grande batalha pela independência de classe promovida pela pré-candidatura operária de Anasse Kazib, enfrentando as dificuldades das perseguições do regime e da extrema direita. Essa campanha militante contou com os esforços de centenas de jovens e trabalhadores, que recentemente foram excluídos do Novo Partido Anticapitalista (NPA), por defenderem um programa de independência operária diante da capitulação da ala majoritária desse partido, que se entrega cada vez mais ao soberanismo reformista de “esquerda” de Jean-Luc Mélenchon, política essa responsável pela crise histórica desse “partido amplo”, fundado em 2009 depois da liquidação da ex-LCR francesa de Daniel Bensaïd e Alain Krivine. A campanha, que teve que enfrentar todos os obstáculos possíveis para existir, sem poder romper a barreira antidemocrática do regime francês para apresentar-se às presidenciais, conseguiu, no entanto, impor uma terceira voz dentro da extrema esquerda, assim como dialogar com grandes camadas de trabalhadores, jovens e classes populares. Prova disso foi o enorme comício com mais de 500 pessoas na Sorbonne contra as ameaças da extrema direita a um operário marxista de origem imigrante, e as atividades de lançamento que reuniram milhares de pessoas em Paris, Toulouse, Bordeaux, Lyon, Marselha, entre outras cidades. No marco da polarização social francesa, a campanha de Anasse, que foi precedida pela intervenção do Révolution Permamente em todos os processos da luta de classes antes e depois dos Coletes Amarelos (o que não se verifica no NPA nem na Lutte Ouvrière), estabeleceu as bases para uma renovação inédita da extrema esquerda francesa (ver balanço aqui). Pela primeira vez, uma crise política do mandelismo se depara com uma esquerda trotskista pronta para aproveitá-la, em meio às negociações do NPA para diluir-se no soberanismo reformista de Mélenchon na coalizão União Popular para as legislativas francesas. Essa emergência de uma alternativa à esquerda pode abrir caminho para a fusão do melhor da tradição trotskista francesa com a nova geração de lutadores operários e de jovens que vai enfrentar um regime muito mais à direita. No Chile os companheiros do PTR buscam construir as bases para uma organização revolucionária diante das ilusões reformistas instaladas pelas burocracias políticas e sindicais ligadas à Frente Ampla e ao Partido Comunista, no marco de um governo Boric que já mostra sua moderação e acordos diante da burguesia chilena. O triunfo eleitoral de Boric não serviu para responder a nenhum dos problemas de fundo que originaram a Rebelião de 2019 (os baixos salários, a precarização do trabalho, as aposentadorias privadas, a perseguição ao povo mapuche), montando uma coalizão do governo com muitos dos partidos que governaram nos últimos 30 anos (Partido Socialista e Democracia Cristã, em especial, que encabeçaram a velha Concertación). O novo presidente chileno não apenas reprimiu estudantes e manteve a perseguição do povo mapuche, como exigiu moderação da própria Convenção Constitucional, criada pelo governo Piñera mediante o Acordo pela Paz (assinado por Boric, a FA e PC) para desviar a luta de classes aos canais institucionais, e evitar a queda do governo pelas mobilizações. Os presos políticos de Piñera agora seguem encarcerados pelo “progressismo” de Boric. Nesse cenário, ao contrário da esquerda, como a LIT/PSTU, que capitulou diante de fenômenos frentepopulistas antipartido como a Lista del Pueblo, o PTR batalha pela construção de um polo de independência de classes que enfrente o governo reformista de Boric pelas demandas da Rebelião, em primeiro lugar pela liberdade dos presos políticos, uma iniciativa do PTR que foi difundida pela grande mídia. Nos Estados Unidos, como mencionamos, o Left Voice é parte das batalhas pela sindicalização da juventude trabalhadora. Em todos esses cenários, as organizações da FT são parte ativa da luta pela reconstrução das bases de uma organização revolucionária a nível mundial, sabendo que isso passará por um processo de rupturas e fusões que envolverá as organizações e as novas gerações de ativistas que se deparam com a guerra na Ucrânia e os novos marcos da crise capitalista. Trótski destaca, sobre o pensamento de Lênin, que o internacionalismo “não é de maneira nenhuma uma forma de reconciliar verbalmente nacionalismo e internacionalismo, mas uma forma de ação revolucionária internacional [...] O mundo aparece como um só campo de combate no qual diferentes povos e classes sustentam uma gigantesca guerra uns contra os outros”. A partir deste ponto de vista, a luta internacionalista – e a batalha por construir partidos em cada país – está indissoluvelmente ligada à busca por prever, ensaiar, na medida das nossas forças, a ação do que seria um partido revolucionário internacional, já que uma organização assim não surgiria em outro momento que não no calor dos combates que este novo ciclo da luta de classes começa a colocar na ordem do dia. Parte fundamental desse internacionalismo de combate é a luta de idéias e programas, como no caso da guerra na Ucrânia, com as tendências do movimento trotskista, explorando a um tempo os acordos práticos nos distintos terrenos da luta de classes (incluindo as eleições), na batalha por influir no desenvolvimento da vanguarda, como a própria FITU argentina ou o PSR no Brasil.

16. Estão se aprofundando tendências, que já vinham desde a crise de 2008 e a pandemia da COVID-19, que indicam que entramos num período de fim da ilusão de um “mundo globalizado harmonicista”, em que haveria disputas de interesses, mas destituídos de crises, guerras e grandes processos de luta que podem dar origem a processos revolucionários. As crises já se acumulam em muitos âmbitos para além do econômico, envolvendo a geopolítica e inclusive a importante crise ambiental. Quanto às guerras, a velha visão que prognosticava a ausência de conflitos armados pelos “interesses capitalistas compartilhados” naufragou com a invasão à Ucrânia. Ainda que longe de ser uma espécie de “terceira guerra mundial não declarada” ou “guerra inter-imperialista por procuração”, a guerra na Ucrânia já recoloca no horizonte os distintos militarismos e os objetivos armamentistas de cada potência, prognosticando tensões muito mais graves do que aquelas que vimos até então. Há que constatar claramente que o mundo se encaminha para choques que reatualizam as características da época imperialista. Não é possível retornar ao antigo status quo pré-invasão da Ucrânia. As principais coordenadas da política global não caminharão de maneira evolutiva: as contradições entre as distintas partes da economia, entre os Estados nacionais e entre as classes sociais se moverão por giros mais frequentes e bruscos, por fora do “evolutivismo” sobre o qual teorizam distintos ideólogos da burguesia, de Fukuyama a Krugman. O internacionalismo de combate dos marxistas está vinculado à compreensão desses fatores estratégicos da política mundial, do acirramento das contradições mundiais, para qualificar a batalha pela reconstrução de partidos revolucionários a nível nacional e internacional. O objetivo de impedir a barbárie da decadência capitalista em sua sanha guerrerista exige um programa anti-imperialista e contra os bonapartismos capitalistas capaz de unificar as fileiras dos trabalhadores a nível internacional. Trótski afirmava que “na época atual, em uma medida muito maior que anteriormente, a orientação nacional do proletariado pode e deve emanar da orientação mundial, e não o contrário”. Com efeito, o combate contra a extrema direita bolsonarista e a conciliação de classes petista só ser adequadamente levada adiante se integrada a essa perspectiva político-programática. É com essa perspectiva que nós do MRT, parte da Fração Trotskista pela Quarta Internacional, estamos nos preparando para intervir no panorama nacional.

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Notas

[1] No famoso informe de abertura do III Congresso da Internacional Comunista, dado por Trótski em 1921, o dirigente do Exército Vermelho afirma que: “O equilíbrio capitalista é um fenômeno complicado; o regime capitalista constrói esse equilíbrio, o rompe, reconstrói-o para rompê-lo novamente, alargando, de passagem, os limites de seu domínio. Na esfera econômica, estas constantes rupturas e restaurações do equilíbrio tomam a forma de crises e booms. Na esfera das relações entre as classes, a ruptura do equilíbrio consiste em greves, lockouts, em luta revolucionária. Na esfera das relações entre os Estados, a ruptura do equilíbrio é a guerra, ou mais solapadamente, a guerra das tarifas alfandegárias, a guerra econômica ou o bloqueio. O capitalismo possui então um equilíbrio dinâmico, que está sempre em processo de ruptura ou restauração. Ao mesmo tempo, semelhante equilíbrio possui grande força de resistência; a melhor prova que temos disso é que ainda existe o mundo capitalista”.

[2] “A BASF, gigante química alemã, disse que se seu fornecimento de gás for reduzido pela metade [em função da redução da compra do gás russo], precisará parar a produção na maior fábrica química do mundo em Ludwigshafen, que emprega cerca de 40.000 pessoas. Centenas de milhares de empregos relacionados estariam em perigo. Martin Brudermüller, o chefe da basf, disse aos investidores em 26 de março: ‘Não há como o gás russo ser substituído a curto prazo’”. The Economist, “Can Germany cope without russian gas?”. Também, no início de março, Siegfried Russwurm, chefe do BDI (federação industrial alemã), advertiu que falar sobre um embargo da UE à energia russa é “brincar com o fogo” e “prejudicaria mais a UE do que o agressor”. Quase três quartos das importações de gás natural da UE vem da Rússia (41%), muito à frente das seguintes três fontes: Noruega (16%), Argélia (8%) e Qatar (5%).

[3] Ulrich Speck, analista do German Marshall Fund em Berlim, argumenta: “A guerra aberta contra a Ucrânia deixou claro onde está o centro de gravidade da política externa e de segurança alemã para os próximos anos: na Europa Central e Oriental”. O foco estaria em Belarus, Ucrânia e Moldávia, mas também na Geórgia e Armênia. A agressão de Putin “nos obriga a ter uma presença muito mais forte na região”. Uma frase que parece colocar os interesses da Alemanha em primeiro lugar, diante das potências.

[4] “De fato, a crise financeira, a pandemia e a guerra concentraram as mentes das empresas na forma como as cadeias de abastecimento globais podem ser vulneráveis em períodos de stress. Os planos da China para uma economia circular podem tornar um mundo mais bipolar num fato consumado. Uma maior regionalização será o futuro. O aumento dos salários na Ásia, os preços mais elevados da energia e os padrões ambientais e sociais tornam as longas cadeias de abastecimento mais custosas”. Financial Times, 11/04.


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André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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