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SEMANÁRIO

Há um ano da guerra na Ucrânia

Claudia Cinatti

Há um ano da guerra na Ucrânia

Claudia Cinatti

Um ano após o início da guerra na Ucrânia, se faz necessário reavaliar definições, atualizar análises e, sobretudo, voltar aos debates políticos que dividem a esquerda internacional, diante de um conflito de dimensão estratégica que recolocou no horizonte o enfrentamento entre grandes potências no coração da Europa.

Apontamentos sobre a situação atual. Balanços e perspectivas.

Sem pretender fazer uma análise exaustiva da evolução do conflito, e para apenas pensar nos cenários mais prováveis, torna-se útil apontar algumas das questões que poderiam definir o curso da guerra que está entrando no seu segundo ano.
Comecemos por duas definições gerais a partir das quais acreditamos que os distintos momentos da guerra devem ser lidos.

A primeira, que apesar da lógica subjacente de escalada, a guerra segue circunscrita ao território ucraniano, embora à medida que se prolonga a guerra e se aprofunda a participação dos Estados Unidos e das potências da OTAN, cresce o risco de escalada ou inclusive de algum acidente involuntário.

Seguindo uma lógica incremental, a OTAN está concordando em entregar cada vez mais e melhores armas à Zelenski - finalmente Alemanha aceitou enviar seus tanques Leopard à Ucrânia e Biden fez o mesmo com os tanques Abrams-, mas sem cruzar o tênue limite que poderia levá-los à um conflito militar direto com a Rússia, em particular com o fornecimento de armamento e munições com capacidade de alcançar o território russo. Por enquanto, Biden se recusa a entregar caças F16 ao exército ucraniano. Porém, vários analistas especulam que, se a mesma tendência continuar, cedo ou tarde ele vai terminar aceitando

Em suma, a guerra tem uma dimensão internacional e continua como “guerra econômica” através das sanções impostas contra a Rússia pelas potências ocidentais, porém, não estamos na “terceira guerra mundial”. Isso não anula o fato de que a guerra da Ucrânia significa um salto em relação aos tipos de guerras assimétricas anteriores realizadas pelos Estados Unidos (e alguns aliados), como as guerras do Iraque e do Afeganistão. O envolvimento das grandes potências imperialistas tradicionais e das potências emergentes - por um lado Estados Unidos/OTAN e por outro uma aliança da China e Rússia com aliados variáveis - confere-lhe, em certa medida, um caráter antecipatório de futuros enfrentamentos na disputa pela hegemonia.

A segunda, que apesar do envolvimento das duas maiores potências nucleares - Estados Unidos e Rússia- e da retórica, até agora a guerra da Ucrânia continua sendo uma “guerra convencional”. Putin fez alusões indiretas ao uso de armas não convencionais e suspendeu a participação russa no Tratado Start III, ainda que não tenha se retirado do único tratado vigente de redução de armas nucleares entre Estados Unidos e Rússia. Não se pode descartar o risco nuclear, inclusive alguns teóricos da corrente “realista” como John Mearsheimer especulam que Putin poderia usar armas nucleares táticas contra tropas ucranianas caso seja encurralado na Crimeia. Entretanto, o “Armagedom nuclear” não parece hoje estar no interesse político de nenhum dos envolvidos.

Do ponto de vista estratégico-militar, a guerra pode se dividir em duas etapas que expressam a reformulação dos objetivos do Kremlin. Uma inicial, na qual a Rússia tentou uma tática de “blitzkreig” com ataques surpresas e o suposto objetivo de forçar a queda do governo pró-ocidental de Volodimir Zelenski e substituí-lo por um mais amigável. Diante do fracasso em conquistar os objetivos, abriu-se uma segunda fase caracterizada por uma brutal “guerra de posições” concentrada na região do Donbas, a leste do rio Dnieper, que, com distintas conjunturas, continua até agora.

O que esse primeiro ano de guerra mostrou é que as conquistas territoriais são instáveis e difíceis de defender para o exército russo, que mostrou importantes vulnerabilidades e problemas logísticos. Desde a última contraofensiva ucraniana e o retiro das tropas russas da cidade de Jersón, em novembro de 2022, a Rússia parece ter se estabilizado em defender a ocupação de uns 18-20% do território ucraniano, o que inclui a Crimeia (anexada em 2014), as regiões russo-falantes do Donbas e a cidade de Mariupol, que foi reduzida a ruínas, embora conserve valor estratégico como ponte entre os territórios sob controle russo e como saída ao Mar de Azov.

Na conjuntura atual, é o exército russo que está na ofensiva, travando um combate sangrento pelo controle da cidade de Bajmut. Vários analistas militares falam de uma “ofensiva de primavera”, que no caso russo já teria começado, enquanto do lado ucraniano começaria com a chegada de tanques e munições das potências ocidentais. Mas a grande maioria coincide que dificilmente isso mude a situação da guerra, seja permitindo a vitória de um dos lados ou precipitando uma negociação. Portanto, embora todas as hipóteses sejam provisórias, o cenário mais provável parece ser o de uma guerra de desgaste prolongada na qual, por enquanto, todos os envolvidos tiram proveito.

Nem o lado russo nem o da Ucrânia/OTAN parecem estar em uma situação em que o que podem perder em um acordo de paz é menos oneroso do que o que perderiam com a continuidade do combate. Apesar disso, claramente a Ucrânia leva a pior parte porque a guerra está sendo travada em seu território, o que implica em uma grande destruição da infraestrutura civil e um colapso de sua economia.

Para Putin, a guerra da Ucrânia, em termos existenciais, está no mesmo nível que a guerra contra Napoleão e a contra a Alemanha nazi. Para Zelenski, apenas seria aceitável a volta às fronteiras ucranianas de 1991, o que implicaria a recuperação do Donbas e da Crimeia.

Em público, Biden e os líderes das potências ocidentais sustentam que a “Ucrânia pode ganhar”, mas no particular vários reconhecem que esse é um objetivo não realista e que está se aproximando o momento de Zelenski aceitar equivalentes a uma vitória em seus próprios termos. Essas discussões sobre a verdadeira situação no terreno, para além dos discursos triunfalistas, foram centrais na Conferência de Segurança de Munique, na qual o consenso, pelo menos das principais potências imperialistas e provedoras de armamento para a Ucrânia, é que esse armamento mais do que recuperar os territórios sob poder da Rússia serve para sustentar uma ofensiva que permita melhorar a posição ucraniana, com a quase certeza de que hoje o tempo joga contra Zelenski.

Além dessas discussões, quem dirige a aliança ocidental “anti-Rússia” é os Estados Unidos. Por enquanto, para Biden, prolongar a guerra é um bom negócio. No plano externo é funcional à recomposição da hegemonia norte-americana sobre seus aliados tradicionais, embora também tenha mostrado o quanto perdeu a liderança fora do “ocidente”.

No plano doméstico, a ajuda à Ucrânia (limitada a dar apoio material sem envio de tropas) continua a contar com consenso predominante na opinião pública, o complexo industrial militar aplaude a sua venda de armas e munições, e o partido Republicano apoia por enquanto, ainda que uma minoria vocal de extrema direita se oponha. É que, embora em números absolutos possa parecer uma cifra alta, em termos relativos é um gasto pequeno comparado com o custo em “sangue e tesouro” que teria uma ação militar direta contra a Rússia.

A OTAN que, como disse o presidente francês Emmanuel Macron, tinha sofrido “morte cerebral” depois do vendaval isolacionista da presidência de Donald Trump, se recompôs e recuperou a coesão interna, embora persistam rachaduras e divisões entre os Estados, com o Leste Europeu ganhando maior preponderância. O inverno menos rigoroso do que o esperado ajudou a diminuir a crise energética e manter a inflação contida.

Os Estados Unidos recompôs a hegemonia sobre a Europa, em particular sobre a Alemanha que se alinhou com os objetivos de Washington, embora isso comprometa seus interesses nacionais. Não é segredo que sob os governos de Merkel, a Alemanha fez uma espécie de pacto faustiano com Putin, que forneceu gás e energia baratos para alimentar o maquinário da potência econômica européia. Com a guerra da Ucrânia e a pressão norte-americana, a Alemanha se viu obrigada a cancelar os gasodutos Nord Stream I e II (segundo o jornalista Seymour Hersh, os EUA estariam por trás da sabotagem contra o gasoduto). Em grande parte, o presidente norte-americano se considera o artífice do Zeitenwende alemão, uma palavra forte que indica a “mudança de era” em direção ao militarismo. Apesar disso, todos veem que essa virada alemã ao militarismo coloca contradições a médio (e talvez a curto) prazo.

No entanto, essa recomposição da liderança não é suficiente para reverter a tendência da decadência hegemônica do imperialismo norte-americano, que se expressa nos limites que a própria guerra colocou em evidência. Em certo sentido, hoje o “ocidente” é uma entidade geopolítica e militar que abarca os Estados Unidos, a Europa, o Japão, a Austrália e a Coréia do Sul, em um mundo muito diferente do imediato pós Guerra Fria, em que não só emergiu a china como principal competidor, e a Rússia questionando a “ordem liberal”, mas também uma série de potências regionais com certa capacidade de atuar segundo seus interesses.

Isso tem levado alguns analistas a falar do surgimento de um novo “movimento de não alinhados”, embora a analogia não pareça apropriada, sobretudo considerando que, diferentemente da guerra fria, a maioria dos países desenvolveram uma “dependência cruzada” dos Estados Unidos, da China e da Rússia, razão pela qual estão mudando seus posicionamentos, administrando seus alinhamentos em função de interesses econômicos, de segurança ou mesmo de afinidade política. Isso dificulta a constituição de um bloco mais ou menos permanente com uma liderança reconhecida.

Do outro lado, há um “bloco em construção” menos consolidado e em estado fluido que tem como centro uma aliança entre a Rússia e China, que começou a tomar forma e tem atuado como um polo de atração para vários países “emergentes” do chamado “sul global”, entre os que se encontram potências regionais como a Índia, grande parte da África, Ásia e América Latina (nada menos que Brasil e México), inclusive aliados históricos como Arábia Saudita (e até Israel), que por diversos interesses nacionais, nem sempre convergentes, não se alinharam com os Estados unidos em votações das Nações Unidas.

A China apoia a Rússia, mas publicamente se coloca em uma posição de pretensa neutralidade. Até agora não se colocou ao lado de Putin, como fez o bloco da OTAN com a Ucrânia. Entretanto, a visita de Wang Yi à Moscou, o principal diplomata do governo chinês - coincidiu com a viagem de Biden à Kiev e à Varsóvia - pode indicar um giro a uma colaboração mais estreita.

Embora não nos pareça adequada a comparação que vários analistas fazem entre o bloco de países que mencionamos com o Movimento de Países Não Alinhados, sua existência diminuiu os efeitos das sanções ocidentais contra a Rússia e limitou o impacto do isolamento internacional que os Estados Unidos buscavam impor. A China e a Índia substituíram em grande parte os mercados europeus absorvendo grande parte das exportações de petróleo e gás russos. A África do Sul foi sede de exercícios militares navais comuns entre Rússia e China no aniversário da guerra da Ucrânia. No primeiro mês e meio de 2023, a Rússia recebeu a visita oficial de nove países da África e do Oriente Médio.

É nesse panorama que se inscreve o debate com a esquerda.
Se, parafraseando Clausewitz, a guerra é a continuidade da política por meios militares (ver o ensaio “Para além da “Restauração Burguesa”: 15 teses sobre a nova etapa da situação internacional em contraponto com as elaborações de Maurizio Lazzarato” de Emílio Albamonte e Matías Maiello), a guerra da Ucrânia é uma guerra reacionária.

A política de Putin de invadir a Ucrânia e até mesmo de negar seu direito de existência (Putin afirmou que a Ucrânia foi uma “invenção de Lenin e dos bolcheviques”) é absolutamente reacionária. Putin encabeça um regime autoritário e despótico a serviço dos oligarcas de seu círculo íntimo que impede a organização independente e democrática dos trabalhadores e persegue com prisão os que se opõem à guerra na Ucrânia. Com a guerra, busca, como mínimo, restaurar um status geopolítico de “grande potência” em benefício do capitalismo russo. Partindo do cerco das potências ocidentais sobre a Rússia e o avanço da OTAN, um setor da esquerda considera que, por conta da China e da Rússia se oporem à hegemonia dos Estados Unidos e defenderem uma “ordem multipolar”, são anti-imperialistas. Essa defesa por parte da esquerda da “multipolaridade” é a base de uma posição “campista” que se traduz no apoio à Rússia em sua guerra reacionária e, de fato, a um bloco capitalista dirigido pela China que busca emergir como potência, aprofundando seus traços imperialistas.

O governo ucraniano está completamente alinhado com os Estados Unidos, a UE e a OTAN. Sua política é transformar a Ucrânia em um vassalo dos Estados Unidos e da União Européia ao invés de continuar a ser vassalo da Rússia. A política que guia esse bloco não é a “autodeterminação nacional da Ucrânia”, como defende um setor da esquerda que se alinhou com este bloco dirigido pelo imperialismo e que exige mais armas para a Ucrânia. Os Estados Unidos manipulam a questão nacional ucraniana a seu favor e armam a Ucrânia porque através dela busca consolidar sua hegemonia, debilitar seus competidores e preparar um bloco para sua disputa com a China. Portanto, o triunfo deste bloco fortaleceria os Estados Unidos e a aliança ocidental.

A alternativa a posições como as da “esquerda otanista” ou as da “esquerda da multipolaridade capitalista” é enfrentar a guerra e o militarismo das potências imperialistas, que prenunciam futuras guerras e enfrentamentos, numa perspectiva internacionalista e socialista. Contra a invasão russa e contra a OTAN levantamos a perspectiva de uma Ucrânia independente e socialista, e da unidade internacional da classe trabalhadora. Essa perspectiva se reatualiza em um momento em que importantes setores da classe trabalhadora se movimentam, especialmente nos países centrais como a Grã-Bretanha e a França, que enfrentam nas ruas as consequências da guerra.


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Claudia Cinatti

Buenos Aires | @ClaudiaCinatti
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