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MMT: imprimindo a saída da crise?

Seiji Seron

Arte: Alexandre Miguez

MMT: imprimindo a saída da crise?

Seiji Seron

Como financiar o extraordinário déficit fiscal do Brasil este ano? A emissão monetária têm sido a resposta de muitos economistas a esta pergunta, inclusive, a de certos neoliberais, como Henrique Meirelles. Já os de inclinação mais heterodoxa têm justificado tal resposta com os argumentos da assim-chamada “teoria monetária moderna”, ou MMT, na sigla em inglês Modern Monetary Theory, ou Modern Money Theory.

Apesar de se auto-intitular “moderna”, essa teoria do dinheiro não é nova, mas foi formulada por Georg Friedrich Knapp (1842-1926), economista alemão em cujo livro, A teoria estatal da moeda, de 1905, cunhou-se o termo “chartalismo”, ou “cartalismo”. A doutrina chartalista nega que o dinheiro tenha se originado da necessidade de um equivalente geral para facilitar as trocas. “O dinheiro”, escreve Knapp, “é uma criatura da lei.” Foram os Estados que criaram o dinheiro a fim de recolher impostos. O uso dessa roupagem chartalista é a única novidade da MMT em relação ao já não tão moderno keynesianismo.

No Brasil, André Lara Resende e Simone Deos são os principais entusiastas da teoria, mas sua influência sobre Laura Carvalho e Pedro Paulo Z. Bastos é perceptível. Também aderem à MMT as principais figuras do “socialismo democrático” estadunidense, Bernie Sanders e Alexandra Ocasio-Cortez, proponente de um “Green New Deal”, a ser custeado seguindo as prescrições de política econômica da MMT. Além disso, militantes do PCB já manifestaram opiniões favoráveis acerca desta, e alguns destes pretensos “comunistas” alegam até que a teoria de Marx sobre o dinheiro é ultrapassada!

O caminho do dinheiro

Segundo a MMT, não é a arrecadação tributária e a emissão de títulos públicos que financia os gastos públicos. Por quê? O Tesouro Nacional é o “caixa” do governo, enquanto o Banco Central (BC) é o órgão que exerce a política monetária do país. No Brasil, o Tesouro é proibido de vender títulos diretamente ao Banco Central, o que consistiria quase literalmente em “imprimir” dinheiro. Porém, é permitido ao BC atuar no mercado secundário, comprando e vendendo títulos públicos por meio dos “dealers”, os bancos que compõem o mercado primário. Todo título do Tesouro deve ser comprado primeiro por um dealer; só estes podem repassá-los (ou não) ao mercado secundário. São 12 os membros deste cartel da dívida pública: Banco do Brasil, Bradesco, BTG Pactual, Itaú e Safra, além dos estadunidenses Citibank, Goldman Sachs, Merrill Lynch, Morgan Stanley, e os europeus BNP Paribas, Credit Suisse e Santander.

Mas o governo também deposita seu saldo em caixa em uma conta bancária: a Conta Única do Tesouro Nacional no BC [1]. Quando são arrecadados impostos, o saldo da Conta Única aumenta e, a este crédito, corresponde um débito, de igual valor, da renda dos pagadores de impostos e, logo, uma diminuição de seus saldos bancários. Quando o governo efetua gastos, o pagamento destes gastos implica, reversamente, uma transferência de renda da Conta Única para as contas bancárias daqueles a quem se deve pagar por tais gastos. Assim, o montante de dinheiro depositado nos bancos e disponível para ser emprestado varia inversamente ao saldo da Conta Única, diminuindo se o governo é superavitário, e aumentando se é deficitário. Neste segundo caso, o governo terá de financiar seu déficit vendendo títulos públicos de longo prazo.

Já os títulos de curto prazo são usados em operações de mercado aberto (open market), que visam controlar a oferta de crédito. Diariamente, os bancos fazem uma sem-número de operações. Ao final do dia, é comum que alguns tenham emprestado mais dinheiro do que têm disponível imediatamente e precisem, eles mesmos, de um empréstimo overnight, a ser devolvido no dia seguinte. Como o dinheiro que não for emprestado não renderá juros, os bancos sempre tentam emprestar tanto quanto conseguirem. Então, o dinheiro que não pôde ser emprestado ao longo do dia será oferecido aos bancos que se excederam, ou aplicado em títulos de curto prazo, por exemplo, através das compromissadas, operações nas quais o BC recompra o título que vendeu, após um tempo pré-determinado.

A taxa básica de juros da economia brasileira, a Selic, é o custo desse empréstimo de reservas bancárias por um dia. O BC atua no mercado secundário, comprando títulos públicos de curto prazo daqueles bancos que precisam de reservas, e vendendo aos que têm dinheiro sobrando, a fim de que a taxa de juros dos empréstimos interbancários se iguale à Selic. Se esta taxa aumenta, os bancos terão de pagar mais caro se precisarem de reservas adicionais; logo, a oferta de crédito é desestimulada, e vice-versa, se a Selic é diminuída.

Segundo a MMT, o que aconteceria se o mercado se recusasse a financiar o déficit público, ou seja, a comprar os títulos de longo prazo do Tesouro Nacional? Uma vez que a diminuição do saldo da Conta Única acarreta um aumento correspondente dos saldos bancários, os bancos terão um volume de dinheiro disponível maior do que poderão emprestar, e este excesso de dinheiro terá de ser aplicado em títulos de curto prazo. Logo, a única consequência dessa recusa do mercado a financiar o déficit do governo seria uma mudança do perfil da dívida pública, isto é, da proporção entre seus títulos de longo e curto prazo. É assim que a MMT justifica sua afirmação de que nenhum Estado pode “quebrar” na própria moeda.

Essa teoria alega que o único limite para o endividamento interno, e até para a emissão monetária, seria o produto potencial da economia. Em outras palavras, o aumento da quantidade de moeda em circulação não causará inflação enquanto a produção puder ser aumentada de modo a satisfazer a demanda maior. Impostos seriam um meio não de financiamento dos gastos públicos, e sim de controle da base monetária, e lutar pelo não-pagamento da dívida pública seria contraproducente, já que medidas de austeridade e ajustes fiscais são sempre “auto-impostos”, motivados por “tabus” e “preconceitos”, além de que também há pequenos poupadores e fundos de aposentadoria entre os detentores dos títulos públicos, e o não-pagamento dessa dívida seria desnecessariamente disruptivo.

O que é o dinheiro?

É compreensível o apelo dessa ideia de que o Estado capitalista é capaz de sustentar qualquer nível de déficit que for necessário para restaurar o pleno emprego e prover serviços como saúde, educação, etc., já que seus gastos seriam “auto-financiados”, e parece prová-la, à revelia da ideologia do governo, a previsão oficial de um déficit primário de R$ 540 bilhões, o que significa que a União irá gastar cerca de 1,5x o seu orçamento de 2020, incluindo R$ 144 bilhões com o auxílio emergencial de R$ 600,00. Entretanto, o principal erro da MMT é conceber o dinheiro quase que somente como unidade de conta. A raiz do termo chartalismo é justamente “carta”, “papel”, ou seja, símbolo.

Tanto Marx quanto Keynes, e a MMT, rejeitam a teoria quantitativa da moeda (TQM), para a qual a oferta monetária é uma variável “exógena”, isto é, os bancos centrais têm total controle sobre a quantidade de moeda em circulação, e esta quantidade determina o nível de preços, de tal modo que todo e qualquer aumento da base monetária gera inflação. Neste sentido, a MMT e a teoria da moeda de Marx são ambas “endógenas”; explicam que a base monetária da economia depende do quanto o ritmo da acumulação de capital aumenta ou diminui a necessidade de efetuar pagamentos. Marx, porém, esclarece que mercadorias só são trocadas por dinheiro, seja metálico, seja fiduciário, porque o próprio dinheiro é uma mercadoria e, assim como as outras, possui valor de uso e valor de troca, valor de troca este que é constituído de uma fração da massa total de trabalhos realizados pela sociedade, conforme a divisão social do trabalho.

Dinheiro é a mercadoria cujo valor de uso é expressar o valor das demais mercadorias, é o de ser a forma social do valor e, logo, ser valor, reserva de valor. A importância do fato de que o dinheiro é uma mercadoria, e não mera representação do valor, evidencia-se nas crises em que esta sua propriedade, a de ser reserva de valor, é questionada, e o valor, então, despe-se de seu “uniforme nacional” a fim de assumir formas mais “seguras”, como o dólar, ou mesmo a de riqueza material: ouro, diamantes, etc. Por isso, Michael Roberts escreve provocativamente: sim, o Estado pode emitir moeda, mas não definir o que ou quanto ela vale.

Aliás, a teoria monetária de Marx é mais consistentemente endógena do que a MMT. Paradoxalmente, os “modernos” neo-chartalistas e os seguidores do neoliberal Milton Friedman, conhecido por sua adesão à TQM, coincidem em afirmar que expandir a oferta monetária durante uma recessão pode estimular a produção e, assim, acelerar a recuperação, muito embora estes últimos, os monetaristas, limitem a eficácia dos estímulos monetários ao curto prazo e se oponham a estímulos fiscais como obras públicas, etc.

As injeções de liquidez pós-crise das hipotecas subrpime, em 2008, foram consideradas “heterodoxas” e um verdadeiro rasgar das cartilhas neoliberais de política monetária, apesar de terem sido uma primeira aplicação em larga escala da doutrina monetarista, que se repete, agora, chegando a cifras trilionárias, sem precedentes, visando mitigar os efeitos econômicos da pandemia. Tais políticas talvez tenham evitado um crack financeiro global, mas, contrariamente ao que supõe a MMT, seu resultado foi não uma nova fase de crescimento da economia mundial, e sim uma nova bolha especulativa, tendo o endividamento global atingido o patamar recorde de 322% do PIB mundial, segundo o Instituto de Finanças Internacionais (IIF, na sigla em inglês), e dobrado a dívida corporativa não-financeira em comparação com 2008.

O dinheiro das nações

A MMT admite que a austeridade não é estritamente voluntária apenas em uma circunstância: quando o país tem necessidade de divisas. “Neste único caso, a ‘disciplina de mercado’ pode ser ao menos parcialmente responsabilizada pela austeridade. Porém,” escreve Randall Wray, um dos principais teóricos neo-chartalistas, “deve-se reconhecer que isto é só porque o governo quis bens e serviços que não estavam à venda na moeda doméstica.” [2]. É no plano do mercado mundial que a impraticabilidade das proposições da MMT se revelam mais claramente. O coronavírus trouxe à tona o elevadíssimo grau de internacionalização das economias nacionais, todas as quais precisam obter moeda estrangeira e manter alguma paridade entre esta e a moeda nacional, isto é, uma certa taxa de câmbio, para fins de importação, remuneração de capitais estrangeiros, pagamento de dívidas, etc.

Ainda que não cause inflação por si só, o aumento da oferta monetária acarreta, sim, uma diminuição das taxas de juros, e taxas de juros muito baixas provocam instabilidade, na medida em que facilitam e incentivam a tomada de risco. Além disso, a expansão monetária e a diminuição dos juros têm efeitos depreciativos sobre o câmbio, o que encarece as importações e, por conseguinte, gera pressões inflacionárias, sobretudo nos países periféricos, cuja indústria é altamente dependente da importação de bens de capital e insumos. Finalmente, as margens de manobra de que dispõe a política econômica são muito desiguais entre os países, ainda mais depois da quebra do padrão ouro-dólar, ao que se sucedeu a transformação das moedas nacionais em ativos financeiros, negociados do mesmo modo que ações, títulos, commodities, etc.

A ruptura do padrão Bretton Woods culminou no estabelecimento de uma hierarquia monetária internacional de acordo com as relações de força entre os imperialismos ao final do último século. Obviamente, o topo da hierarquia é ocupado pelo dólar, moeda cujo Estado emissor ainda era a potência hegemônica, apesar de decadente e crescentemente desafiada, e continua a sê-lo, em especial, por causa de seu poderio militar. Abaixo do dólar, encontram-se o iene, o euro, a libra esterlina e outras. Quanto mais próxima do topo da hierarquia uma moeda nacional se situa, melhor esta moeda exerce sua função de reserva de valor, ou “encarnação social absoluta da riqueza” [3].

As moedas das semicolônias e países dependentes são as que ocupam as posições mais baixas dessa hierarquia. Portanto, o capital financeiro internacional não irá assumir a forma destas moedas a não ser que fazê-lo lhe propicie uma rentabilidade significativamente maior que a de aplicações denominadas em moedas de países imperialistas. Frequentemente, os ativos financeiros dos países periféricos são adquiridos através de operações de carry trade, ou seja, contraindo empréstimos em moedas “fortes” a fim de se apropriar do diferencial entre as taxas de juros dos países imperialistas, menores, e as da periferia, maiores [4]. Esses juros comparativamente mais elevados sequer impede que ocorram fugas de capitais como a que, este ano, já subtraiu das reservas internacionais dos países semicoloniais e dependentes uma quantia estimada em US$ 100 bilhões.

Um programa de ruptura com a dominação imperialista

Talvez o banco central dos EUA, em particular, esteja sujeito a pouquíssima, ou nenhuma, restrição externa sobre sua liberdade de fixar os juros básicos e de pôr e tirar dólares de circulação. As autoridades monetárias do resto do planeta é que devem arcar com as consequências da política monetária estadunidense. Mas, se até outros Estados imperialistas não têm a mesma “soberania macroeconômica” que os EUA, a dos países dependentes e semicoloniais é ainda menor.

Se o capital financeiro internacional julgar que o governo de um destes países adota medidas “irresponsáveis”, que desequilibram as contas públicas e que o tornarão incapaz de pagar sua dívida, haverá um fluxo de saída de capitais de tal país, causando uma depreciação do câmbio e, por esta via, inflação. A fim de conter este fluxo e seus efeitos, o governo do país terá de elevar a taxa de juros, o que, por sua vez, elevará o custo de financiamento do déficit público, tornando a dívida qualquer coisa menos “auto-financiada”. Caso não seja contida, essa fuga de capitais provocará, enfim, uma crise inflacionária e cambial do tipo que é tão recorrente na história do capitalismo latino-americano. É por isso que a dívida pública continua sendo o principal meio de sujeição de países como o Brasil ao imperialismo, a despeito de que seja predominantemente interna e mobiliária, ou seja, contraída por meio de títulos do Tesouro Nacional.

É falso que o não-pagamento da dívida pública implique o confisco de pequenas poupanças, aposentadorias, etc. Após a Revolução de Outubro, o poder soviético promulgou o Decreto de Anulação dos Empréstimos Estatais. Este previa que “5. Cidadãos de poucos recursos que possuam títulos de não mais de 10.000 rublos (valor nominal) da dívida interna anulados receberão títulos da nova dívida da República Federativa Socialista Soviética da Rússia de até, e não mais que, 10.000 rublos.” Os sovietes conformariam comissões para determinar quais cidadãos seriam considerados “de poucos recursos”. O art. 6º do mesmo Decreto assegurava a inviolabilidade das poupanças, e outros estendiam a possibilidade de conversão dos títulos da dívida tsarista em títulos soviéticos para certas instituições.

Não pagar a dívida pública é a única alternativa realista ao duríssimo ajuste fiscal que a burguesia irá impor contra os trabalhadores e o povo pobre ao final da pandemia. Para impedir a fuga de capitais que se seguiria também à suspensão do pagamento da dívida, a classe trabalhadora terá de lutar pelo monopólio estatal do comércio exterior e por um único banco estatal, sob controle dos trabalhadores, nacionalizando e centralizando todo o sistema de crédito, inclusive os fundos de aposentadoria e de investimento, que especulam com as poupanças de cidadãos de escassos recursos, a quem repassam pouquíssimos ganhos e todos os riscos. Estes fundos, nacionais e estrangeiros, possuem, conjuntamente com bancos, seguradoras e instituições financeiras diversas, cerca de 75% dos títulos da dívida brasileira. Não são os aposentados e pequenos poupadores, e sim os capitalistas, quem deve temer o caráter “disruptivo” deste programa.


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FOOTNOTES

[2“In this one case, the austerity can be at least partially blamed on ‘market discipline’. However, it must be recognized that this is only because the government desired goods and services that were not for sale in the domestic currency.” [Understanding Modern Money cit. Vergnhanini, R. Modern Monetary Theory: a critique from the periphery]

[3Marx, O capital, livro I, cap. 3-3.C: dinheiro mundial.

[4Vergnhanini, op. cit.
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Seiji Seron

Bacharel em Ciências Econômicas (PUC-SP), mestrando em Desenvolvimento Econômico (Unicamp)
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