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Mangue, raça e classe: Chico Science & Nação Zumbi e o debate sobre questão racial

Renato Shakur

Mangue, raça e classe: Chico Science & Nação Zumbi e o debate sobre questão racial

Renato Shakur

Esse artigo é uma adaptação de um capítulo de uma dissertação chamada “África, psicodelia e cibernética: crítica social e questão racial nas composições musicais da banda Chico Science & Nação Zumbi”. Na semana em que Chico Science completaria 57 anos e com o movimento mangue beat fazendo 30 anos, ano passado, é importante retomar algumas reflexões daquele trabalho como parte de homenagear e refletir algo pouco abordado nos estudos sobre a trajetória da banda e do movimento manguebeat, o debate sobre relações raciais.

Introdução

Os anos 1990 foi palco de uma “ofensiva do capital contra o mundo do trabalho” [1] que em várias partes do mundo teve dinâmicas distintas, mas com um objetivo bem claro, aplicar uma série de ajustes, cortes na máquina pública, privatizações etc. No caso brasileiro, podemos afirmar sem medo de errar que a cartilha neoliberal vinha com alguns tópicos a mais, sobretudo, porque a formação da burguesia e do capitalismo brasileiro se deu em base a sangue negro e indígena, isto é, a superexploração e opressão dos negros e dos povos origninários. O racismo e a polícia como expedientes de reacionários e coercitivos da hegemonia burguesa foram chave para ofensiva neoliberal em distintos estados do país. Grupos como Racionais MC’s, Sabotage, 509E, Pavilhão 9, Planet Hemp, O Rappa, Edson Gomes, Tribo de Jah, Chico Science & Nação Zumbi (CSNZ) são exemplos de que, cada um à sua maneira, criticaram e denunciaram a experiência do racismo, exploração e violência policial naquele período.

O movimento manguebeat e a banda Chico Science & Nação Zumbi se inserem nesse contexto histórico. O presente artigo tem o objetivo de analisar algumas letras dos álbuns Da Lama ao Caos (1994) e Afrociberdelia (1996) lançados pela banda, a fim de apontar o debate sobre questão racial presente nas composições, sobretudo aquele referenciado na relação entre raça e classe, além de apontar alguns elementos sociais constitutivos das relações raciais no Brasil. Queremos por conta disso, resgatar a trajetória da banda, compreender sua crítica à violência policial, à precarização da vida em Pernambuco, à marginalização da pobreza e a importância da cultura negra e da luta negra contra a escravidão a partir da análise das músicas "O cidadão do mundo", "Manguetown", "Um passeio pelo mundo livre" e "Banditismo Por uma Questão de Classe". Além de resgatar algo pouco discutido na historiografia acerca do movimento manguebeat que é o debate sobre questão negra e relações raciais no movimento manguebeat.

O surgimento da banda CSNZ

Numa ligação em um dos ramais da Emprel nos anos 1990, Francisco de Assis França (Chico Science) disse a Gilmar “Bola 8” que tinha o nome perfeito para a banda que compunham juntos, até então chamada Loustal & Lamento Negro. Aludindo aos tambores do Maracatu Nação e a figura emblemática da luta e da resistência negra contra a escravidão, Zumbi dos Palmares, a banda se chamaria Chico Science & Nação Zumbi. Além é claro de fazerem uma referência a Zulu Nation de Afrika Bambaataa, certamente, um dos principais influenciadores da sonoridade da banda.

Antes de formarem a banda Loustal & Lamento Negro, Chico Science era vocalista da banda Loustal, uma banda que tocava rock dos anos 60 que não tinha muito a ver, a princípio, com o grupo percussivo Lamento Negro e incorporava ao som da banda a soul music, o funk e o hip hop. Ela era composta por Lúcio Maia (guitarrista), Alexandre Dengue (baixista) e Vinicius Sette (baterista). A ideia de juntar a Loustal com o Lamento Negro tinha um caráter muito experimental e os primeiros encontros entre os conjuntos tiveram seus percalços. O som da guitarra nos ensaios só podia ser ouvido por Lúcio Maia, pois a quantidade de alfaias impedia que os riffs improvisados pelo guitarrista fossem ouvidos por toda banda. Dengue também conta que hora ou outra nos ensaios apareciam integrantes novos, muitos dos percussionistas do Lamento Negro eram trabalhadores e não ganhavam a vida com a música, por muitas vezes faltavam aos ensaios para trabalhar de pedreiro ou no comércio da cidade [2].

O Lamento Negro tinha uma outra história. Gilmar tornou-se frequentador dos ensaios do Afoxé Alafin Oyó, grupo de afoxé que homenageia desde o nome “Oyó”, um Império na África Ocidental localizado atualmente no sudoeste da Nigéria e no sudeste do Benim, reivindicando a identidade negra e a religiosidade africana. “De tanto ouvir o Alafin Oyó, o Olodum e outros grupos de samba-reggae que pipocavam pela cidade, Gilmar se juntou com um amigo” [3] para fundar seu próprio grupo musical, o Bloco Afro Lamento Negro. O grupo que mais tarde passou a se chamar Lamento Negro, ensaiava no centro de educação e cultura Daruê Malungo, localizado na comunidade Chão de Estrelas, no qual não se ouvia apenas afoxé, mas também maracatu, maculelê e capoeira (Teles, 2003, p.29). Tratava-se de um projeto social destinado às crianças daquela comunidade, que, como Gilmar, viviam a pobreza da periferia da região metropolitana de Recife e seu cotidiano rigoroso.

A história do surgimento da banda Chico Science & Nação Zumbi também pode ser narrada numa outra perspectiva, isto é, dando relevo a outros aspectos da influência musical que não só esses que dizem respeito ao afoxé e ao rock, mas também com as conexões internacionais da black music. Jorge Du Peixe, atual vocalista da banda Nação Zumbi, assim como Chico Science também eram frequentadores dos bailes black nos anos 1980, faziam parte dessa nova geração black power que se influenciavam pela cultura negra norte americana. Jorge nos conta como a história do reggae, hip hop e os bailes black em Recife e Olinda se encontravam:

Então, música eletrônica e esses elementos da África que se espalharam pelo mundo foram o que fomentou o hip hop. Hip hop tem muito do reggae. Num sei se você percebeu, mas a gente pode fazer um paralelo com os jamaicanos que fomentaram o sound system na Inglaterra no começo daquilo ali e se manifestou de um jeito na Inglaterra e de outra maneira nos Estados Unidos. [...] E nessa época a gente continuou dançando, criou-se a Legião Hip Hop. Tinha um pessoal de Camaragibe, e o Fábio Aranha é um cara que mostrou disco de hip hop pra caramba pra gente. Aliás L Cool Jay, Curtis Blow, Dis Marky. [...] E aí, cara, o centro de Recife começou a fomentar tudo isso, tudo isso nasceu realmente do hip hop, a ideia do Nação Zumbi é meio calçada na Nação Zulu. [4]

Nesses bailes Jorge e Chico Vulgo, como Chico Science era chamado na época, se encontravam para dançar break com seu grupo Legião Hip Hop. Fábio Aranha, que Jorge mencionou nessa entrevista, também tinha seu grupo de dança e em várias oportunidades batalharam contra o grupo dos dois. De todo modo, quando Jorge Du Peixe, Chico Science e Fábio Aranha encontraram a cena do hip hop e do baile black no início dos anos 1980 já haviam passado alguns anos do surgimento dos próprios bailes, ou seja, já havia na cena alguns elementos da cultura hip hop, como por exemplo o break e o b-boy. Segundo, Cristiano Alves, os bailes blacks pernambucanos que podia-se ouvir o soul e funk de “James Brown e KC and The Sunshine” [5] surgiram no final dos anos 1970. Os bailes aconteciam em Rio Doce, periferia de Olinda, Camaragibe, em Recife na Associação de moradores da Caxangá, na Associação de Moradores do Pina, no Clube Líbano, localizado no Pina, no Clube Ferroviário no bairro da Mustardinha, no Clube Rodoviário na Imbiribeira, o Clube do Sargento Wolff em Afogados [6].

Imagem: Chico Science dançando break nos anos 1980, provavelmente em algum baile black na Região Metropolitana de Recife [7].

Interessante observar o peso que teve a cultura hip hop e o soul na vida de Chico Science e Jorge Du Peixe que acabou virando uma influência importante nas composições musicais da banda CSNZ. Há na história da banda, para onde quer que você olhe, elementos da cultura negra. Isso trouxe, não é um fator menor, pelo contrário tem uma importância fundamental em nossa análise, porque aponta a uma maneira de compreendermos o debate sobre questão racial presente nas composições musicais da banda entrelaçando suas críticas à própria história e trajetória do grupo.

Segundo E. P. Thompson, “o povo faz e refaz sua própria cultura” [8], isto é, a criatividade e a auto-atividade das classes subalternas são um aspecto fundamental na análise da cultura, atentando ao seu “contexto simbólico” [9], em outras palavras aos distintos valores atribuído aos elementos culturais. Nesse sentido, não seria errado compreender que a banda CSNZ ao desenvolver sua estética enquanto parte de um movimento cultural, o fez da sua maneira, recuperando elementos da cultura negra como o soul e o afoxè que traziam em sua bagagem histórica tanto a afirmação povo negro através de sua identidade e raízes africanas, como também a luta contra o racismo e o orgulho racial do movimento black power.

De acordo com Marcelo Badaró e “a tradição de crítica ativa do materialismo histórico” presente nas obras de Thompson, não há uma dissociação da "dimensão social” e da “dimensão cultural”, associando “cultura e classe (ou luta de classes)” [10]. Nesse sentindo, podemos afirmar que a cultura negra representada desde a formação da banda até suas composições musicais e estética mangue, tem um conteúdo antirracista por terem sido forjada na resitência contra o sistema escravista e posteriormente contra a dominação burguesa. Em resumo, o debate sobre questão racial nas composições musicais da banda CSNZ estão intrinsecamente ligado a uma crítica antirracista que, como veremos, se refere a um combate à violência policial e às desigualdades sociais.

O cidadão do mundo

A música “O Cidadão do Mundo” do álbum “Afrociberdelia” (1996) ilustra em algum sentido o aspecto da crítica antirracista da banda CSNZ, evidenciando o debate sobre questão racial desde um ponto de vista cultural que relaciona numa trama alguns elementos históricos e sociais referentes à questão negra com os problemas estruturais próprios dos anos 1990 como pano de fundo:

A estrovenga girou/ Passou perto do meu pescoço/ Corcorviei, corcoviei/ Não sou nenhum besta seu moço/ A coisa parecia fria/ Antes da luta começar/ Na roda estrovenga surgia/ Girando veloz pelo ar/ Eu pulei, eu pulei/ E corri no coice macio/ Só queria matar a fome/ No canavial na beira do rio [...] Jurei, jurei/ vou pegar aquele capitão/ vou juntar a minha nação/ na terra do maracatu/ Dona Ginga, Zumbi, Veludinho/ E segura o baque do Mestre Salu/ Eu vi, eu vi/ a minha boneca vodu/ subir e descer no espaço/ na hora da coroação/ me desculpe senhor, me desculpe/ mas essa aqui é a minha Nação/ Daruê Malungo, Nação Zumbi/ é o zum zum zum da capital/ só tem caranguejo esperto/ saindo desse manguezal. [11]

O cidadão do mundo é um combatente consciente, à sua maneira, da miséria da fome, mas antes disso, também foi o título honorífico que Josué de Castro – importante interlocutor da banda – ganhou por suas elaboração e denúncias sobre a fome concedido pela ONU. Mas voltando à trama, depois de quase escapar da morte ao ver a estrovenga, uma espécie de foice, passar bem rente ao seu pescoço, o cidadão do mundo fugiu às pressas sem dar um combate de resistência aparente, talvez porque a correlação de forças não pendesse para seu lado, especialmente porque um “capitão do mato” tinha atacado-o. Aquele homem que só queria matar a fome no canavial roubando da propriedade algum pé de cana, ou ao menos um pedaço daquela planta, com ímpeto de vingança, pôde dar uma resposta àquele ataque.

“Jurei, jurei, vou pegar aquele capitão”, disse ele, afirmando que a atitude hostil do capitão do mato só seria solucionada de alguma maneira se os dois chegassem às vias de fato, e, portanto, o cidadão do mundo o jurou de morte. Fato terrível que esconde uma surpresa, não é de se estranhar que alguém queira revidar com a mesma moeda uma atitude dessas, já que o capitão do mato havia o atacado primeiro e se não fosse sua perspicácia provavelmente teria morrido degolado pela estrovenga.

O que para nós corresponderia a algo horrível da atitude humana, isto é, um ato de vingança, para o cidadão do mundo talvez tenha sido um ato desesperado no calor do momento que o faria bastante satisfeito no decorrer da narrativa. Ele não teve a disposição súbita de atacar o capitão do mato da mesma forma que fora atacado, ao contrário, preferiu antes juntar seus pares, sua “nação”. A enunciação de seus companheiros e companheiras que o ajudaria num momento de apuros revela algo fundamental dessa trama.

Dona Ginga, Zumbi dos Palmares, Exú veludo e Mestre Salustiano, essa é a nação da qual o cidadão do mundo não abriria mão de ter ao seu lado num momento tão difícil como aquele. A rainha do Ndongo (atual Angola) que lutou bravamente contra o tráfico transatlântico de escravos africanos, conhecida também como rainha Nzinga; “Zumbi”, um dos principais líderes do maior quilombo da América portuguesa; “Veludinho”, carinhosamente chamado em alusão a entidade da Umbanda e do Candomblé, Exú Veludo, que cumpre a função de proteger e abrir os caminhos; e finalmente, “Mestre Salu” figura importante não só do Maracatu Rural, mas também para a produção musical banda Chico Science & Nação Zumbi. Ainda não satisfeito apenas com a presença/ajuda desses personagens, o cidadão do mundo preparou um culto voodu, um culto religioso africano, e foi desta maneira que ele se propôs em responder a atitude agressiva do “capitão do mato”.

Até aí a narrativa da música pode nos indicar a partir dos fatos narrados uma história conflituosa que podemos localizar na luta de classes. De um lado o capitão do mato defendendo a propriedade do patrão e do outro um trabalhador faminto querendo saciar sua fome e que vê no assalto da cana alheia uma saída para própria fome. Podemos supor que o cidadão do mundo era um homem, preferencialmente pobre, não se sabe a cor da sua pele, mas quanto tentou roubar para comer e que foi surpreendido por um homem negro que protegia a propriedade – função que cumpre o capitão do mato na defesa dos interesses do senhor de escravo – repleta de pés de cana de açúcar. O que impressiona é que nesse choque de interesses materiais, de um lado a fome e do outro a defesa da propriedade privada, a saída elaborada e consumada pelo cidadão do mundo para combater à altura aquele conflito foi a cultura negra, resgatando não apenas personagens importantes, mas também práticas religiosas, culturais e de luta.

Não é despretensioso o fato de que o cidadão do mundo convoque um símbolo expoente da luta contra escravização do negro africano na América, como Zumbi, ou então, uma rainha que não apenas lutou contra o domínio europeu do tráfico transatlântico, mas que também é uma figura importante dos rituais festivos negros, como Nzinga. Decididamente, ele também convocou uma entidade religiosa de matriz africana e terminou numa consagração do culto de voodu, originário de povos da África Ocidental, como uma metáfora do combate à atitude repressiva do capitão do mato na defesa dos interesses do proprietário do canavial.

Dentre as inúmeras possibilidades de vingança que o personagem da música “O cidadão do mundo” dispunha para confrontar o capitão do mato, tendo inclusive o conflito físico como algo esperado pelo próprio desenrolar da narrativa, criou uma metáfora que recupera elementos de luta e resistência da cultura negra para dizer que se enfrentaria de forma violenta contra o capitão e os interesses do proprietário do canavial. Os elementos da história e da cultura negra como forma de responder a um conflito social como indica a banda CSNZ, incorpora à produção cultural e musical aspectos da luta negra contra a escravidão e religiosos referente às religiões de matriz africana. Nesse sentido, o debate sobre questão racial foi inserido combinando cultura, resistência e luta de classes, trazendo à tona algo bem particular da banda ao que se refere à análise sobre questão negra que é a apresentação do debate racial articulando as categorias de raça e classe.

Manguetown negra

Alguns versos da música “Antene-se” do álbum “Da Lama ao Caos” (1994) nos sugerem uma reflexão bastante relevante sobre a sociedade no Recife nos anos 1990. Na realidade, um dado estatístico sobre o índice de pobreza da cidade revela um processo histórico intrínseco aos mangues da cidade. “Recife, a cidade do mangue”, a “quarta pior cidade do mundo”, não eram apenas dois dos versos daquela música, expressavam em número o resultado de uma pesquisa feita pelo Institut Population Crisis Commitee de Washington, publicado em 26 de novembro de 1990 pelo JC de Pernambuco que Recife era uma das piores cidades para se viver. O que o ranking das piores cidades do mundo não mostravam, obviamente era que a grande maioria da população que vive esse cotidiano de pobreza e miséria tinham classe e cor.

Uma coisa que era bastante comum não só na cidade de Recife, mas também em outras grandes cidades do Brasil nessa mesma época era que as medidas neoliberais adotadas pelo governo federal havia aprofundado as desigualdades sociais e raciais, a medida que do ponto de vista ideológica ia construindo o que a jornalista Cecília Coimbra chama de “paradigma da insegurança”:

Esse modelo neoliberal é um fenômeno mundial que tem gerado ‘insegurança e medo’ para as classes médias e trabalhadores em geral e mais desemprego, exclusão, pobreza e miséria. [12]

Nas periferias brasileiras dos anos 90 vicejam um planejamento político excludente, onde eram retirados o saneamento básico, moradia de qualidade, saúde, transporte, etc. Ao invés disso, constrói-se um discurso a partir da periferia da violência, criminalidade e do banditismo acirrando uma visão burguesa do território enquanto um perigo social eminente. O medo que sentiam as classes médias era arraigado de muito preconceito racial. A burguesia brasileira não apenas destinava a periferia e aos mangues. Além da construção por parte da burguesia de um território excluído de políticas públicas, também construiu um consenso racista e preconceituoso através de práticas sociais e políticas que caracterizavam esses territórios e as classes subalternas como supostamente propensas ao crime, juntavam pobreza, perigo social, preconceito racista, miséria e medo numa mesma coisa, ou melhor, numa mesma classe social.

A banda CSNZ percebia isso e quando fala do mangue, sobretudo numa perspectiva crítica e de denúncia dos problemas sociais inerentes a ele, também quer traduzir para o debate racial os problemas que estão intrinsecamente imbricados com o racismo brasileiro. Analisemos a música “Manguetown”:

Andando por entre os becos/ Andando em coletivos/ Ninguém foge ao cheiro sujo/ Da lama da Manguetown/ Andando por entre os becos/ Andando em coletivos/ Ninguém foge à vida suja/ Dos dias da Manguetown. [13]

Não é novidade para nenhum trabalhador os problemas relativos à mobilidade urbana e os problemas estruturais da cidade que precarizam sua vida. A maneira como a banda CSNZ denuncia esses problemas que são tão profundos a ponto de influenciar por completo o cotidiano do trabalhador transformando o dia a dia na manguetown numa “vida suja” é bastante esclarecedora. De um ponto de vista marxista, diríamos que a precarização da vida tem suas raízes na exploração capitalista, porque o que está em jogo para classe dirigente é justamente rebaixar as condições de vida e com isso os meios necessários para reprodução da vida do trabalhador o que levaria ao capitalista pagar baixos salários, aumentado a extração de mais-valia. Segundo Marx,

… [o] intercâmbio entre o capital e o trabalho é o que serve de base à produção capitalista, ou ao sistema do salariado, e tem que conduzir, sem cessar, à constante reprodução do operário como operário e do capitalista como capitalista. [14]

No Brasil a reprodução da vida do operário como operário é atravessada pela opressão racista, basta ver que é justamente nas áreas de mangue, nas favelas e nas periferias que residem a população negra e também não é a toa que essa parcela da população estão nos postos de trabalho mais precário e mais expostos aos problemas estruturais da manguetown. Ou seja, a precariedade de vida está intimamente ligada à opressão racista, justamente porque ela serve também para rebaixar as condições de vida do trabalhador, para o aumento da extração de mais-valia e superexploração.

A conjunção entre precarização, periferia e questão racial no capitalismo brasileiro tem suas raízes históricas, fincadas no passado escravista. Sobre esse tema recorramos a Josué de Castro e sua obra “Homens e caranguejos” que narra a história de Aldeia Teimosa – comunidade de pescadores erguida sobre o mangue e de palafitas –, onde seu personagem principal João Paulo cresceu e viveu parte de sua infância. Ele narra que o desenvolvimento histórico de Aldeia Teimosa tornou possível a “metrópole pernambucana” tornar-se uma “mocambópolis”. Desde o início não foi algo fácil assentar mocambos naquela região por conta de uma rusga com mandatários políticos daquele local, aqueles mocambos que ali se construíam e estabeleceram, aos olhos do “governador do Estado”, ganhavam contornos hostis à paisagem, e prontamente se iniciou uma “grande campanha contra os mocambos”.

No entanto, o governador não procurou tomar conhecimento “onde se assentavam as verdadeiras raízes do mal”, e ignorou por conta disso, que os mocambos fincados na lama do mangue remontavam períodos pretéritos aos quais desnudavam uma “estrutura social arcaica”. Não era tarefa fácil, portanto, acabar com a “vegetação braba dos mocambos” [15] de uma hora para outra, os trabalhadores que ali se abrigaram remontavam gerações anteriores, e por persistirem no tempo e naquele espaço, a população do mocambo não seria facilmente deslocada daquela região do mangue. Segundo ele:

Produto do feudalismo agrário que oprimia e explorava há séculos toda aquela pobre gente que acabava, um dia, preferindo o fedor dos mangues ao fedor das malocas dos engenhos, das novas senzalas fracionadas em torno das novas casas-grandes. [16]

Não há dúvidas de que o Brasil passou longe de ter um período feudal agrário, entretanto, para Josué de Castro os mocambos eram produtos de uma estrutura socioeconômica excludente e opressora que para nós remete ao passado escravista. Mas mesmo assim o mocambo era ainda para aqueles moradores, um local preferivelmente habitável, antes viver nos mangues, na periferia, do que nas “malocas dos engenhos”, antes viver nas “novas senzalas” do que perto dos “senhores de engenho”. Obviamente que a falta de opção para o trabalhador o fazia crer que uma moradia precária era melhor do que morar próximo aos patrões, as “novas senzalas” divididas em torno das “novas casas-grandes” referindo-se aos trabalhadores que residem no mangue ao redor de onde vivem os ricos indica como a reorganização espacial em Recife também foi atravessada pela opressão racistas.

O que queremos argumentar aqui é que toda a denúncia da banda CSNZ em torno da questão da moradia e dos problemas estruturais da cidade também são denúncias de opressão racista que remontam a maneira como o capitalismo brasileiro se desenvolveu, isto é, se apoiando nas heranças deixadas pela escravidão. A denúncia da “vida suja” na manguetown pode ser compreendida também com a crítica à exclusão racista e o rebaixamento das condições de vida da população negra em Recife, que era a realidade de grande parte da população negra e pobre das grandes cidades brasileiras nos anos 1990. Em resumo, a banda CSNZ ao tratar da manguetown anunciando seus problemas estruturais, acabava falando da questão do povo negro conjungando mais uma vez o debate sobre questão racial à classe social, só que desta vez, com a perifeira e o mangue como seu pano de fundo.

A repressão policial

Uma das faixas do álbum “Afrociberdelia” (1996) também expressa esse olhar crítico sobre a opressão racista nas periferias da região metropolitana de Recife. A letra intitulada “Um passeio pelo mundo livre” escrita por Chico Science diz respeito a um caso racista vivido por Gilmar e Gira, dois percussionistas da banda. Os dois trabalhadores negros foram abordados pela polícia militar carioca de madrugada voltando do estúdio para casa em Santa Tereza, Centro do Rio de Janeiro – a banda havia alugado uma casa nesse bairro, pois iriam gravar o álbum Afrociberdelia na cidade. Quando foram parados pela polícia de forma arbitrária, insistiram que estavam ali a trabalho, mostrando suas “carteiras de músico” [17] aos policiais que seguiam tratando-os de forma racista, sem querer acreditar que eram de fato trabalhadores. As palavras de Chico Science traduzem bem este sentimento:

Eu só quero andar/ Nas ruas de Peixinhos/ andar pelo Brasil/ ou em qualquer cidade/ andando pelo mundo/ sem ter sociedade/ andar com meus amigos e eletricidade/ andar com as meninas/ sem ser incomodado. [18]

A ideia de “só querer andar”, de exercer o direito de transitar livremente pela cidade de maneira que não seja incomodado, seja nas ruas de Peixinhos ou em qualquer outra, como Santa Tereza, transmite um desejo da juventude nos anos 1990, sobretudo, aquela de periferia e negra de não aguentar mais a repressão policial. Quando em um outro verso, reforça que quer andar livremente “sem ter sociedade” logo define quem não seria boa companhia em qualquer cidade do Brasil. De maneira sutil, Chico Science indica que não quer a presença desse setor da sociedade que por conta do seu caráter racista abordou de forma totalmente arbitrária Gilmar e Gira, inclusive quando disseram que eram trabalhadores chegaram a ser chamados de vagabundos pelos próprios policiais [19].

A partir da análise da letra da música, é possível vislumbrar a percepção da banda frente à atitude racista da polícia. Dizíamos anteriormente que a interpretação da música sugere um rechaço completo àquele tipo de abordagem, expresso na atitude de “querer andar sem ser incomodado”, e também a desaprovação da existência dos aparatos coercitivos do Estado. Decididamente, a banda se contrapõe a esse tipo de função que a polícia cumpre na sociedade capitalista.

Atentos a uma outra crítica à polícia feita pela banda, CSNZ incorporou um elemento importante ao tratar do banditismo social, traçando um paralelo histórico desse fenômeno social em fins do século XX e o fenômeno do cangaço nordestino. Alguns versos da música “Banditismo Por Uma Questão de Classe" ilustram bem essa crítica, podem servir como uma forma de compreender a posição da banda frente à instituição policial. Essa música trata de alguns bandidos famosos em Recife e outra lenda urbana da mesma cidade, Galeguinho do Coque, Biu Olho Verde e Perna Cabeluda. A partir desses personagens há um questionamento se de fato a polícia pode ser a “solução” de um problema social que na realidade corresponde, segundo a narrativa da música, a um problema de classe. Mas a crítica não para por aí.

A letra da música deixa isso evidente por vários momentos, mas tem um verso em que a crítica a essa instituição reacionária e racista ganha um contorno especial. “A polícia atrás deles e eles no rabo dela”, ao referenciar a exaustiva tarefa da polícia pernambucana em perseguir aqueles malfeitores citados anteriormente, se cria uma expectativa sobre a difícil tarefa de prendê-los, mas também, por outro lado, confere àqueles “bandidos” uma astuta sabedoria para fuga. O mais interessante é que a sagacidade deles é posta não a partir de um suposto despreparo, ou falta de um efetivo e meios que assegurem de maneira mais eficaz a repressão, mas sim da “patetice”, ou melhor, da “tolice” dos policiais pretensamente exposta na narrativa, quando dos bandidos estarem sempre um passo à frente da ação policial, bem “no rabo” da própria polícia.

Colocam-se em lados opostos dois personagens, o criminoso ardiloso e a polícia estúpida que pode ser referida com tal adjetivação, pois àquela instituição são relegadas tarefas tidas como “magistrais”, a da manutenção da ordem burguesa, do “zelo de cidadãos de moral ilibada”, e se cria a partir daí uma moral infalível e infatigável da polícia. Porém, quando esta não corresponde à altura toda confiança depositada pela classe dominante em sua tarefa quase “heróica”, sobretudo, pois os inimigos da lei possuem mais virtudes sobre aqueles que deveriam ser os mais virtuosos, cria-se um cenário cômico da ação policial. A última coisa que a burguesia quer é que seus “cães de guarda” não mordam ou mordam bem pouco, se é que vocês me entendem. A comicidade invade a crítica presente na narrativa justamente por colocar em xeque a atuação dessa instituição repressora, que cumpre uma tarefa histórica na dominação de classe. Essa apreciação cômica da instituição policial é encarada em nossa análise como parte da crítica na música “Banditismo por uma questão de classe”, pois em última instância trata de maneira jocosa a função social da polícia, reduzindo o aparato militar do estado a total insignificância.

Decerto, as canções referenciadas tratam de dois casos que se diferenciam em seu particularismo e no tempo histórico, entretanto, queremos reafirmar que a posição crítica frente à atuação repressora da polícia não pode deixar de ser analisada a partir dessa desmoralização das forças de repressão. A “dura policial” em Gilmar e Gira, certamente representa o inverso de uma suposta má atuação policial por conta de sua palermice, pois ela é a realidade nua e crua de milhares de trabalhadores brasileiros, sobretudo negros e negras que são parado cotidianamente indo de casa para o trabalho ou mesmo saindo para se divertir a noite com seus amigos.

Conclusão

Se observarmos com atenção veremos que o debate sobre questão racial através da análise proposta nos remete diretamente à questão negra, isto é, aos problemas que acometem a população negra no Brasil e que tem relação com as desigualdades sociais e o racismo. Obviamente que seria um erro afirmar aqui que a banda Chico Science & Nação Zumbi desenvolveram um especie de militância antirracista naquele período, pelo cotrário, compunham o movimento manguebeat e trouxeram par além da crítica social uma crítica antirracista, tal qual observarmos ao longo desse artigo. Entretanto, acreditamos que a questão mais relevante em toda análise seja a de precisar esta crítica da banda CSNZ e em parte o movimento manguebeat num contexto nacional do neoliberalismo brasileiro onde os elementos antirracista de suas composições musicais enfatizam a relação entre raça, periferia (mague) e classe. Essa juventude foi capaz de revolucionar na arte e na estética. Sensível aos problemas sociais e raciais daquele período, criaram composições musicais que até hoje são ouvidas e referenciadas como grandes obras do manguebeat, reggae e do rap nacional. Sem sombra de dúvida, ela fazia sair pela garganta um grito entalado de raiva de uma geração que não se acomodava e nem sentia-se satisfeita com a violência policial e o cotidiano de pobreza das grandes cidades brasileiras. Em resumo, esse artigo tenta contribuir às reflexões acerca do debate sobre questão racial nos anos 1990, sobretudo através, de um dos principais interlocutores sociais e culturais da juventude pernambucana naquele período, a banda Chico Science & Nação Zumbi.


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FOOTNOTES

[1TONELO, Iuri. No entanto, ela se move. São Paulo: Iskra, 2021, pp. 81-82.

[2As informações sobre a banda foram retiradas do documentário Um Caranguejo, Elétrico. Documentário/Pernambuco, 2017. 1h 44’14”. Acesso em: Fevereiro, 2023.

[3BEZERRA, Julia; REGINATO, Lucas. Manguebeat: guitarras e alfaias da lama do Recife para o mundo. São Paulo: Panda Books, 2017 pp. 52- 53.

[4NASCIMENTO, Francisco Gerardo Cavalcante. O Recife de Chico Vulgo e Jorge Du Peixe nos passos do break. ArtCultura Uberlândia. v. 20, n. 36, jan.-jun. 2001. pp. 43-59.

[5ALVES, Cristiano Nunes. Quando as ruas abrigam a arte: a cena hip hop no Recife (1980-2014). Confins Revista franco-brasileira de geografia. v.15, n. 25, 2015, p. 6.

[6Ibidem, p. 6.

[7Apud ibidem, p. 57.

[8THOMPSON, E. P. Modos de dominação e revoluções na Inglaterra. In.: NEGRO, Luigi; SILVA, Sergio (org.). As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. São Paulo: Editora Campinas, 2001, p. 201.

[9Ibidem, p. 241.

[10BADARÓ, Marcelo. E. P. Thompson e a tradição crítica ativa do materialismo histórico. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2012.

[11SCIENCE; ZUMBI. O Cidadão do Mundo. Pernambuco: Columbia Records: 1996. 3’20’’.

[12COIMBRA, Cecilia. Operação Rio: o mito das classes perigosas. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, Intertexto, 2004, p.130.

[13SCIENCE; ZUMBI. Manguetown. Pernambuco: Columbia Records: 1996. 3 ’15".

[14MARX,Karl. Salário, preço e lucro. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 89.

[15CASTRO, Josué de. Homens e Caranguejos. São Paulo: Bertrand Brasil, 2003, p.58.

[16Ibidem, p.58.

[17BEZERRA, Julia; REGINATO, Lucas. Manguebeat: guitarras e alfaias da lama do Recife para o mundo. São Paulo: Panda Books, 2017, p. 63.

[18SCIENCE; ZUMBI. Um passeio no mundo livre. Pernambuco: Columbia Records: 1996. 3 ’59".

[19BEZERRA, Julia; REGINATO, Lucas. Op cit. p. 63.
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Renato Shakur

Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
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