×

CARNAVAL | Meia noite, a madrugada e outros delírios

Depois de dois anos morando em Recife pude conhecer o carnaval da região. Eu já desconfiava, mas percebi que as cidades têm também algo como um estado de espírito, e quando eu cheguei as ruas por aqui estavam tristes. Todo mundo estava na pandemia, não é? Inevitável. Foi perceptível para mim porque conheci por aqui antes, em 2017, e eu já senti a coisa toda diferente. A música bonita diz que “tristeza não tem fim”, mas tem coisa que mexe com a gente, e com as cidades também. E em Recife e Olinda, e cada canto de Pernambuco, o carnaval mexeu por demais.

quinta-feira 23 de fevereiro de 2023 | Edição do dia

Tem certos fenômenos que pela sua grandeza e magnitude, os sociólogos, de ofício ou de boteco, recusam-se a tentar descrever em poucas linhas. Sem querer dissertar sobre algo tão complexo e ainda pouco conhecido por quem escreve, permitam-me comentar quatro causos que me ocorreram durante a jornada.

O primeiro foi mais ou menos assim. Corri rápido para um dos blocos mais famosos do Carnaval de Olinda. Eu já tinha rodado o dia inteiro e já batia meia noite. Estava bem cansado, mas graças a insistência dos amigos rodamos por alguns becos e vielas e caímos na ladeira que termina no Largo do Amparo. Eu sentei e olhei ao meu redor. Naquele ponto estavam muitos moradores de Olinda, era visível. Um dos colegas ostentava um belo copo Stanley e galanteava o pessoal por mais um pouco de cerveja. O pessoal estava animado, essa característica era constante, mas eu não tinha entendido que havia algo de expectativa. Ali sentado quase descansando encostado, eu ouvi o pessoal gritar, aplaudir, um momento de emoção, desses que nós no Brasil nos acostumamos a ligar a um gol no futebol. Levantei, a música dizia: “Lá vem o Homem da Meia-Noite. Vem pelas ruas a passear. A fantasia é verde e branca, para animar o carnaval”. As pessoas na ladeira aplaudiam e se emocionavam vendo o boneco. Pesquisando um pouco vemos que esse bloco foi criado no começo dos anos 1931 por um pintor de paredes, um carpinteiro, dois encadernadores, um sapateiro. Não estamos falando de uma personagem “nobre”, alegoria dos ricos, dos reis, dos poderosos. É, antes, popular (criado por operários), e deve ser por isso que achei tão significativa a cena de que naquela ladeira o pessoal, que eram de famílias de Olinda, assistiram o boneco passar, fizeram festa, e não seguiram o bloco. Aquele setor, entre tantos outros, foi aplaudir e voltar para a casa. Viviam um momento intenso cultural. Essa cena se repetiu por onde o bloco passava, as pessoas nas casas, moradores de Olinda, jogavam serpentina e papeis enquanto o boneco passava, e para quem estava no bloco era ver esse momento de euforia a cada casa.

Então foi aí que eu entendi uma das coisas mais bonitas do Carnaval de Olinda: existem muitos rituais culturais ou espirituais que emanam de instituições. Os principais são shows, filmes, séries, eventos que emanam da decisão de determinados empresários e governos, da poderoso e endinheirada indústria cultural. Outros rituais emanam de igrejas, alguns inclusive em tempos construídos com milhões. No caso do carnaval, o mais bonito era que para os blocos mais populares o ritual veio de baixo e é difícil para as instituições modificarem isso, ainda que tentem. Ou seja, se vocês pararem para pensar as palavras que aparecem na cabeça quando pensamos em carnaval, talvez não pensem algo que bloco do Homem da Meia Noite aguçou a mim especialmente: tradição cultural popular de décadas, a ser mantida.

Segundo ponto: nesse dia eu estava cansado porque era meia noite, mas o meu dia tinha começado as 8h. Falaram-me diversas vezes para ir muito cedo para o Galo da Madrugada, o maior bloco de carnaval do mundo, porque a tarde é a pipoca e toda confusão pode acontecer – aliás ele se superou e atingiu 2,5 milhões de pessoas esse ano. Eu rodei algumas horas lá no galo, e para não cansar o leitor falo apenas algumas imagens significativas: é um bloco de massas, o que significa que a população pobre está lá. Sem romantizar, porque sabemos que as contradições da sociedade permeiam esses eventos, é significativo que a única coisa que a imprensa ressalte é a violência. Já decifrou o porquê?

Antes de comentar, vale ressaltar três cenas: a primeira é que fui passear com um amigo ao lado do galo imenso e vi que nele tinha a imagem de publicidade da maior fábrica automobilística de capital estrangeiro da região. Patrocínio gigantesco. Mas exatamente ao lado dele também tinha uma roda de capoeira. Isso mesmo, ali no meio da ponte durante o carnaval abriram uma roda, coisa bonita de se ver. Já comecei a entender o porquê que os jornalistas da grande mídia não gostam.

A segunda coisa foi conversar com um vendedor ambulante, que veio da Zona da Mata e desceu no trem longe de onde estava e veio carregando cerveja até o ponto do galo. As vendas serão importantes, estava a família toda ajudando. Quanta gente trabalhando no galo, para um país com tanta pobreza e desigualdade, vocês imaginam que toda aquela população trabalhadora queria era o carnaval correndo bem. Para a amplíssima maioria dos foliões também, muitas famílias de trabalhadores.

O quadro se completa se eu disser que eu vi alguns dos camarotes. Alguns eram mais chiques, alguns eram ali no chão do lado do povão, do lado da pipoca. Mas era um camarote, gente diferenciada. Um aluno meu contou que pagou 600, mas que quem compra de última hora pagava 1500, 1800, em um só dia.

Fim do mistério: imagina transformar os 2,5 milhões de pessoas do maior bloco do mundo em camarotes, imagina privatizar tudo? Alguém ou alguéns ganharia muito dinheiro né?

Má notícia para os empreendedores mercenários de plantão: não será fácil. O galo da madrugada começou em 1978, coincidentemente o ano do maior ascenso operário do país. Nunca foi sorte, sempre foi Deus. Isso não significa que para empresários deixa de ser um jogo de ganha-ganha, é um bloco institucional, aliás, foi o próprio Getúlio Vargas que inventou essa institucionalização dos blocos, horário para sair na avenida, tudo bem delimitado pelo Estado. Mas tem sempre uma sanha de um setor de enriquecer mais, e um sentimento antipopular.

Leitor, se você foi para o camarote não se revolte comigo. Também é muito bom tomar umas biritas no open bar, não to discutindo isso. Estou discutindo querer fazer isso inviabilizando as massas trabalhadoras e pobres de também terem seu momento.

E para encerrar que isso já tá longo dois causos rápidos. Primeiro a política: clima reformista geral, particularmente em Olinda. É claro que é bom que o clima seja diferente do camarote bolsonarista de Boa Viagem, sem dúvida. Mas não deixa de ser limitado. Não é uma fusão revolucionária com as massas, é um momento de diversão de muitos setores de classe média progressista, que podem viajar pra Olinda, tomar sua cerveja e outras viagens. Vi alguém cantar pelo governo no Galo na Madrugada? Não, ainda que muita gente tenha votado contra o Bozo. Vi gritarem pelo governo nas bolhas progressistas de Olinda, blocos da esquerda etc? vi sim, bastante. Pois é, eu não imaginava em uma festa tão bonita popular ver alguém empolgado com uma frente ampla que tem Lula junto com Geraldo Alckmin, que aliás eu vi de perto muitas vezes sabe aonde? No palácio dos bandeirantes, sede do governo de São Paulo. Nota: os bandeirantes eram aqueles que reprimiam negros e indígenas, incluindo o Quilombo dos Palmares (negro) e a Revolta dos Cariris (indígena) no Nordeste. A sede do governo de São Paulo leva o nome deles, e não só ela.

Mas olhem para o lado, no Peru, as crianças (!) expulsaram a polícia que reprime a população durante o carnaval. E eu fico imaginando o Galo da Madrugada, Homem da Meia Noite, Cariri, quando a situação estiver quente a nosso favor no Brasil. Imaginação é mais importante que conhecimento, já diria um físico famoso.

Então já falei das flores, por fim onde estão as misérias? O Nordeste não mudou, tem muita pobreza, cenas desigualdade social, tráfico de drogas envolvendo muitos jovens. O capitalismo continua sendo capitalismo. Mas quero ressaltar uma última cena, porque é expressiva. Estávamos num show na Várzea, e entrou uma banda de reggae. Várzea é um bairro encantador, merece um texto à parte. Impressiona-me como o pessoal desse bairro gosta de cultura, curte bem de boa sempre. Quando começou esse show, o de reggae (logo depois do manguebeat), vi polícia, do lado, vi polícia atrás, e começou a passar polícias ali no meio. Foi quando numa dessas param um casal que estava a nossa frente. Os dois eram negros, o rapaz com um chapéu bonito e a moça de tranças. A coisa foi rápida, mão na cabeça e revista. Olharam as coisas. A gente ficou ali perto de olho, juntou um pessoal, mas era de dar raiva. Sabe o que encontraram com o casal? Nada! Mas vocês já sabem que o negro é o alvo.

Foram embora. Eu não sei se você leitor já tomou uma “geral”. Eu tomei a minha primeira devia ter uns 14 anos. Em Mogi, extremo leste de São Paulo. Era dia e eu e um amigão meu estávamos apenas passeando. É muito ruim ter uma arma apontada para você, imagina você de braços pra cima, no meio de um show – da euforia ao nervosismo em 5 segundos. Fiquei com o coração apertado, e com raiva.
Passada revista fomos falar com o casal, demonstrar apoio, solidariedade, sangue quente, alguma coisa. Eles ficaram um tempo processando. E aquilo parecia que ia marcar a noite.

Mas depois de um tempo esse casal começou a se acariciar e se beijar, eles estavam se gostando muito. E voltaram a curtir o show, e nós também...

Perceberam que tentam de todos os lados, mas não podem conter nossos delírios?




Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias