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Tribuna Aberta | Novo Ensino Médio: flexibilização e precarização do trabalho docente

Como meio de fomentar o debate na campanha lançada aqui no Esquerda Diário pela revogação integral da Reforma do Ensino Médio, aprovada pelo governo Temer após o golpe institucional de 2016, o Esquerda Diário publicará como tribuna aberta alguns textos de autoria do Professor Saulo Lance Reis, que é mestrando na Faculdade de Filosofia da USP.

sexta-feira 24 de fevereiro de 2023 | Edição do dia

Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Não é casual que os professores se sintam indignados com relação às jornadas de trabalho que o “Novo Ensino Médio” lhes impõe. Mesmo os professores contratados por “notório saber” –aqueles que muitas vezes se veem sem campo de atuação em suas áreas de formação e que se alegram por ao menos poderem pegar aulas para sobreviver abaixo do nível de vida de qualquer outro profissional com curso superior – mesmo estes sentem a necessidade de alterar este cenário. Afinal, a dita revolução educacional representada pelo “Novo Ensino Médio”, realizada num momento em que a movimentação política e a oposição sistemática se encontravam largamente dividida pela pandemia, oferece aos professores as piores condições de trabalho se considerarmos as décadas anteriores: para retomarmos nossa discussão sobre o aprofundamento da lógica neoliberal nas escolas, poderíamos dizer que a condição de trabalho atual do professor revela a faceta prática do ideal de “flexibilização”. E isto em alguns sentidos distintos, que exploraremos neste texto.

Para que possamos entrar adequadamente no nosso tema, vejamos o que significou na prática a dita “revolução curricular” promovida pelo Novo Ensino Médio, pois foi ela que encaminhou programaticamente a infeliz e extenuante jornada de trabalho do professor. De forma bastante resumida, podemos dizer que houve um aumento da carga horária total do Ensino Médio (que passou de 2400 horas para 3000 no conjunto dos três anos, o que não é ruim por si), mas também uma diminuição na quantidade de horas voltadas ao ensino das disciplinas “tradicionais” (justamente aquelas que preparam os alunos para os vestibulares). E, como se sabe pelo atual protesto dos alunos, tal alteração se deu em favor dos itinerários formativos. Para termos uma ideia dos seus efeitos sobre os professores, dado que este é o nosso tema aqui: antes, as 2400 horas de formação distribuíam-se entre o ensino de matemática, física, química, biologia, português, artes, história, geografia, filosofia e sociologia. Agora, das 3000 horas de formação, apenas 1800 são voltadas ao ensino destas matérias (uma considerável diminuição de 600 horas, que afasta mais ainda o aluno de escola pública das universidades públicas, muitas vezes as únicas acessíveis para alunos sem recursos financeiros). Por outro lado, os itinerários e a formação profissional ocupam um total de 1200 horas, conjugando cada uma das “opções” (a saber, “Linguagens e suas tecnologias”, “Matemática e suas tecnologias”, “Ciências da natureza e suas tecnologias”, “Ciências humanas e sociais aplicadas” e, por fim, “Formação técnica e profissional”) um conjunto de disciplinas dividido entre as grandes áreas do saber (as áreas de exatas, humanas e biológicas). É esta reorganização que faz aos professores a exigência de flexibilização, exigindo ainda deles um tipo de frieza ou indiferença com relação à condição dos alunos.

Afinal, se, antes, o professor com poucas aulas semanais devia se deslocar entre duas ou três escolas para cumprir a sua carga horária, lidando com salas superlotadas (uma “tradição” da escola pública desde o contexto da sua expansão no período da ditadura, que sadicamente se intensifica com a escassez de vagas promovida pelo PEI), agora ele ainda faz algo similar, mas numa condição em que deve conseguir lecionar sobre temas que constantemente fogem ao escopo específico de sua formação acadêmica. Em outros termos, se cada um dos itinerários engloba diversas matérias em seu interior (em “ciências humanas e sociais aplicadas”, por exemplo, conjugam-se na prática história, geografia, sociologia, artes, filosofia e português), isso significa que os professores se veem individualmente na tarefa de dominar todos estes conteúdos de forma articulada, como condição para que os alunos tenham algum aproveitamento. E isto descontando-se o fato de que o estudo individualizado das disciplinas foi reduzido, dificultando mais ainda o seu trabalho com os alunos. Num primeiro sentido, portanto, o professor deve ser “flexível” por ter de aprofundar-se em campos de estudo que não são os seus, gastando muito mais tempo na preparação de suas aulas para conseguir “chegar” efetivamente nos seus alunos.

Mas este é apenas um lado da coisa, o qual se costuma compreender como condição objetiva da prática docente. Se, por outro lado, observarmos o aspecto ligado à responsabilidade do professor com relação aos seus alunos (geralmente compreendido enquanto parte da “condição subjetiva” da prática docente), ou seja, se observarmos a prática docente com relação às suas finalidades de promoção do conhecimento e de inclusão social efetiva dos alunos nos diversos espaços sociais e políticos, aí sim podemos compreender o ódio atual do professorado àquele que supostamente paga o seu salário: o Estado. Há aqui toda uma teia de relações complexas que legitima este sentimento não exatamente com relação ao Estado, mas àqueles que direcionam os esforços para a manutenção da população como um rebanho dócil. Passemos brevemente pelo tema.

Como vimos em “sujeição à contrapelo”, a finalidade deste “novo ensino médio” é a de formar mão de obra barata e não paga. Um caminho que converge, também, com a tentativa de bloquear o acesso à universidade de alunos sem recursos, sob a forma de um tipo específico de divisão do trabalho intelectual (para além da divisão do trabalho manual). A complexidade da situação se intensifica novamente quando consideramos que os empresários do ramo educacional possuem interesse em uma escola defasada, em levar ao limite a própria existência do ensino público. Nesta conjuntura, em que aqueles que dominam tornam os modos de vida dos mais pobres ainda mais difíceis com a finalidade de extrair lucro, o que se exige dos professores é condescendência, um tipo de flexibilidade da consciência: a troco de melhores remunerações, que podem inclusive ser retiradas, exige-se dos professores que eles executem este plano educacional deficitário e, pior, que se responsabilizem ao final do processo ou que se tornem indiferentes aos seus resultados. Ora, o discurso predominante nas escolas, que por vezes convocam empresas privadas para catequizar os professores na doutrina neoliberal, não é o de que o professor deve saber entreter seus alunos, fazer uma aula interessante? Mas como isso seria possível se os alunos desacreditam da escola que lhes é oferecida? Ser “flexível”, assim, é também ter a consciência à venda.

Leia aqui outro texto do mesmo autor: Protagonismo na escola: Sujeição à contrapelo

Mas este é apenas mais um ponto. Num terceiro sentido, a exigência de flexibilidade que se faz aos professores refere-se à sua necessidade de deslocamento. Um professor que se vê na condição de lecionar apenas nos “itinerários formativos” defronta-se com uma dificuldade considerável: as escolas geralmente organizam estas aulas em bloco, no início ou no final do período letivo. Em termos práticos, isso significa que os professores não conseguem lecionar em mais de uma turma por período em cada escola, pois as suas aulas coincidem com os “itinerários formativos” do conjunto das outras turmas. Por este motivo, a sua condição será a de deslocar-se diariamente para uma determinada escola para lecionar apenas duas aulas por dia, devendo cumprir o resto da sua jornada como eventual onde lhe sobrar espaço, seja nesta própria escola, seja em outra – sob ameaça de cancelamento de contrato. E esta é uma condição que não atinge somente os professores “categoria O” (a saber, os professores contratados por tempo determinado e com direitos exíguos, como a possibilidade de ter mínimas faltas médicas), mas também os “efetivos”, que neste ano de 2023 também se viram sem aulas de suas próprias disciplinas. Ser “flexível”, portanto, é aceitar o que sobra e correr atrás do prejuízo.

Além disto, como quarto sentido prático desta “flexibilidade” exigida do professor, notemos que o fato de os “efetivos” terem de lecionar nos “itinerários formativos” faz com que estas aulas sejam relativamente escassas em cada uma das escolas, levando os professores “categoria O” a “pingarem” aqui e ali semanalmente. Daí a situação de professores que nem mesmo conseguiram atribuir metade das suas aulas e se encontram em mais de duas escolas – gastando um tempo de deslocamento que, somado ao tempo de preparação de aula e correção de atividades, supera largamente o tempo em sala de aula com os alunos. Sem contar que a dispersão das aulas em várias escolas acarreta grande afastamento com relação à comunidade escolar, impedindo-os de conhecerem a realidade do meio que atuam e diminuindo a possibilidade de um acompanhamento mais detalhado dos processos que seus alunos passam. A grande consequência aqui, para além do desgaste e das perdas financeiras, é a ausência de um contato efetivamente humano e político com a realidade das escolas – o que opera num sentido contrário à previsão legal de que as escolas devem ser organizadas e devem poder contar com a participação da comunidade escolar. Esta medida, diga-se de passagem, dá demasiado poder aos cargos mais diretamente políticos de uma escola, exigindo dos professores uma conformação muda à situação.

Leia aqui outro texto do mesmo autor: Educação à la carte e mercado educacional.

Trata-se, portanto, de um conjunto de elementos direcionados à asfixia dos professores. Empurrados goela abaixo em troca de uma margem maior de consumo, junto a migalhas já devidas há anos pelo Estado e que, atualmente, nos são dadas sob a forma de falsos ajustes salariais com a finalidade de abafar o barulho da reação ao fracasso das reformas. Pois uma melhor remuneração é pouco, se ela não é acompanhada por melhores condições de trabalho. É aí que reside, em grande parte, a possibilidade de sucesso da prática docente, precarizada dede o contexto da modernização conservadora operada na década de 70, num momento simultâneo à expansão do ensino às classes mais baixas. O mínimo que se deve dizer, neste sentido, é que os rumos da educação devem ser alterados. E mais do que uma exigência, esta é uma tarefa prática da comunidade escolar: pais, alunos e professores e demais trabalhadores da educação.

Leia também: Participe da campanha pela revogação integral da Reforma do Ensino Médio.




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