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“O Baile foi Feito pra Curtir e pra Dançar”: O Tuim não é Poluição Sonora

Brenda Brossi

“O Baile foi Feito pra Curtir e pra Dançar”: O Tuim não é Poluição Sonora

Brenda Brossi

No último semestre, foram enviados a uma página da Unicamp comentários de que comparavam o tuim à “poluição sonora”, o que passou a ser apontado como um conteúdo claramente racista, após uma festa em que esse som foi protagonista. A expressão “Tuim” remete a um som marcado por ser extremamente agudo e estridente, difícil de passar despercebido. Esse ruído distorcido e muito intenso é o principal e mais importante componente nas novas experimentações sonoras do funk, além de cumprir um papel chave na consolidação de uma sonoridade mais agressiva no som em bailes nas periferias, principalmente no estado de São Paulo.

Tá loco de bala, ou tu tá no tuim?

O “Tuim” é uma derivação do termo em latim tinnitus, que significa zumbir. Atualmente é a expressão usada para representar a experiência de alucinação auditiva provocada no uso de lança-perfume, uma das drogas mais usadas em bailes de rua, principalmente por ser a droga mais barata no mercado. Dentre os principais efeitos do loló estão: sensação de euforia e excitabilidade, alterações sensoriais capazes de provocar alucinações e ruídos altos, tontura, aumento da frequência cardíaca e formigamento. A intensidade desses efeitos podem variar dependendo da dose utilizada, podendo causar desmaios e em casos mais extremos coma. A “brisa bate rápido” e esses efeitos, que não duram muito tempo, surgem poucos segundos após o contato da substância com a corrente sanguínea. Nesse contexto, as faixas do funk tuim são pensadas para intensificar as experiências, sensações corporais e sentidos nos corpos dos ouvintes.

Tuim estoura tímpano

Funk é um gênero musical dinâmico, que constrói e é construído pelos ouvintes e pelas formas que se consomem o som, além de ser marcado por experimentações sonoras que, com o passar do tempo teve diversas facetas, desde no conteúdo, com funk ostentação, funk proibidão, bregafunk, trapfunk, entre outros, tanto quanto a produção, vê-se faixas que samplearam dizeres em árabe, leituras do alcorão, berimbau, flautas, assovios, etc. como nos automotivos e no funk tuim.
A utilização do ruído tuim não é nova. Em 2014, MC Bin Laden soltou “Lança de Coco - Passinho do Romano”, utilizando essa experiência sonora. Todavia, a situação muda no último período, no qual o tuim não é apenas um ponto, mas constitui a parte principal nos funks. Regularmente, músicas eletrônicas são focadas no som grave, isso também ocorre com o funk, todavia, com os fortes laços do gênero com as tecnologias e corporeidade dos funkeiros, isso tem mudado. Esse movimento escancara a sintonia das produções com as dinâmicas dos bailes.

Balança e bafora

O lança-perfume foi a principal droga dos carnavais do século passado. Chega nos blocos do Rio de Janeiro em 1904, e nos anos seguintes a demanda aumenta, o que consolida o lança como uma das drogas mais populares e incorporadas na sociedade brasileira. A cantora Rita Lee eternizou o entorpecente em sua música “Lança Perfume”, uma das faixas mais famosas em sua carreira. “Lança menina, Lança todo esse perfume, Desbaratina, Não dá pra ficar imune, Ao teu amor - Que tem cheiro - De coisa maluca”. Isso mudou em 1961 quando, por decreto presidencial, Jânio Quadros, alegando provocar embriaguez, proibe a fabricação, o comércio e o uso de lança-perfume no país. Essa proibição moralista não impediu a prática, mas marginalizou os consumidores de loló, tornando os casos responsabilidade da polícia - no sentido da preservação de uma “ordem”- e não mais da Saúde Pública. Atualmente ocorre um trafico internacional do produto, com o Paraguai e Argentina.

O lança-perfume da empresa francesa Rhodia do começo do século 20/Wikimedia Commons

Apesar de nunca ter saído de cena, nos últimos 5 anos a popularidade do lança volta à tona, principalmente nas periferias. Essa questão de como as pessoas consomem o bailão afeta a dinamicidade do evento e, consequentemente, do próprio funk. Nesse período vê-se o aumento de produções musicais remetendo ao uso do lança, como: “Espirra o lança cachorrada vai rolar - MC2Jhow e Dj Serpinha” (2021); “Montagem Balança e Bafora - MCs Juninho da VD e GW e DJ Mandrake” (2019); “Até na transa você não larga o lança - MC Kitinho, MC Luiggi, MC Yago, DJ TH e DJ Douglinhas MPC” (2020); “Eu Tenho L4NÇ4 P0rr4 - W1, RD, Datorre, DJ Sati Marconex DJ João Marconex e DJ HIGONI (2021); “Rave lança perfume - Megabaile Do Areias” (2021), etc. E mais recentemente, mais músicas falando de tuim/com tuim, como: “Tuin destrói noia - Mc Mr. Vim, DJ K e DJ Magro” (2021), “Tuim Infernal 6.0 - DJC15 DA ZO, Igor Vilão” (2022), “Tuim Agressivo - DJ Rick” (2022), entre muitos outros..
Todavia, a composição química atual do produto é diferente da do século passado. A mistura tem sido realizada com compostos mais fortes e de pior qualidade, como solventes e tiners, o que resulta numa droga muito mais prejudicial ao corpo, ainda mais com a necessidade de se manter doses contínuas e cada vez mais fortes para manter o “barato”. O uso excessivo do loló provoca intoxicação cerebral, e em longo prazo, o comprometimento e retardo das funções psicomotoras. Os riscos à integridade física são ainda maiores quando utilizado junto com bebidas alcoólicas, como ocorre nos bailes. Tendo em vista que é a droga mais barata do mercado e o acesso a substância é facilitado pelo tráfico, vê-se um grande impasse no consumo de lança-perfume pela juventude mais precária.

Tuim mata fofoqueira

O bailão é o alicerce de lazer da juventude mais periférica, majoritariamente negra, que reúne milhares de jovens ocupando espaços públicos com seu som e seus corpos, indo frontalmente contra a rotina do dia-a-dia, na qual em grande parte são vítimas da superexploração do capitalismo, ocupando os trabalhos mais precarizados. Em dezembro de 2019, a operação policial que deixou 9 jovens mortos no baile da Dz7, conhecida como a chacina de Paraisópolis, é exemplo da política racista do Estado, principalmente contra a juventude negra e periférica. Nessa mesma perspectiva são alvo de uma brutal estigmatização por parte da ala mais conservadora, que vomita seu preconceito contra a periferia e ao estilo de vida periférica, camuflado o racismo atrás de um suposto “bom gosto estético”. O tuim tem sido considerado por alguns setores como “poluição sonora”, “barulho de sirene”, “som alarme de carro”. Num set de funk tuim disponível no youtube, “Tuim Mata Fofoqueira, Pt. 2 · Igor VIlão · DJ M13 da ZO” tem a colagem de um áudio de uma mulher dizendo: “Que diabo de barulho é esse? Parece um grilo cantando! Ai, eu até liguei meu rádio e pus alto, porque eu falei: Eu prefiro escutar música do que escutar esse barulho infernal”.

O funk tuim inverte radicalmente os valores sonoros hegemônicos e segue reinventando o movimento de conjunto. Esses comentários demonstram a invalidação do som, intrinsecamente ligado ao estilo de vida da juventude negra periférica. São sintomas de criminalização do funk de favela, a legitimação da segregação espacial, racial e consequentemente as ações truculentas por parte da polícia nas favelas. Como estudado pela historiadora Juliana Bragança em seu livro, “Preso na Gaiola: A Criminalização do Funk Carioca nas Páginas do Jornal do Brasil”. A manchete do Jornal do Brasil de 1992, que levava o título “Movimento funk leva desesperança”, foi um importante marco para um movimento de taxação do funk, que discorre numa associação da periferia/morador à violência/crime.

Todavia, vale salientar uma questão difícil de lidar que é gerada com a própria falta de estrutura para o evento, levantando consigo contradições com o conjunto dos moradores das comunidades. Muitos dos bailes acontecem na porta de casas de trabalhadores que, após um dia exaustivo no trabalho, passam a noite em claro por causa da movimentação e da música alta, além da sujeira e da complexa relação do tráfico com os bailões. Concomitantemente à falta do “direito à cidade” da juventude que mora nas periferias, com valores de transportes cada vez mais caros e precarizados, valores absurdos para acessar outros espaços de lazer, etc., restringindo os locais quais a presença desse setor seria “socialmente aceita” pelas classes dominantes. Ademais, o próprio discurso conservador contra as drogas e com a proibição do tráfico nesse regime político degradado desde o golpe de 2016, gera lucros imensos à burguesia, além de fazer manutenção no aparato repressivo do Estado, que justo ao sistema judiciário mantém em torno de 40% dos presos sem julgamento.

O funk de fluxo segue se renovando e é um forte movimento contra cultural, de caráter de massas, contraditório (devido os lucros altíssimos gerados pela própria indústria do funk) mas, extremamente subversivo e dissidente, auto-organizada pelos próprios funkeiros contra a repressão, colocando em cheque os valores culturais conservadores, exaltando produtores, MC’s, a periferia e seus próprios costumes. Essa perspectiva insubordinável (pessoalmente rs) me retoma a uma colagem feita na faixa “Montagem Trava Noia”, do DJ Patrick Muniz e DJ Yan, onde tem um diálogo antes de iniciar a faixa feita pelos personagens da série Chaves.

Seu Madruga grita: “Silêncio! Será se não tem outra coisa pra fazer mais escândalo?!”
Chaves responde: “Temos sim! Temos isso!”

Tuim derruba GCM

A ideologia da extrema direita, baseada em valores morais cristãos, têm como inimigo a auto-organização da juventude periférica, que promove as festas e ocupa espaços. Neste sentido, o nível de degradação do regime aprofunda essa perseguição e valida ações repressivas. O peso da politica racista do Estado de guerra as droga sobrecai na juventude e o povo negro que, com a proibição das drogas são marginalizados e vitimas de operações truculentas por parte da Policia, como por exemplo em 2019, no Grajaú, periferia da capital de São Paulo, uma intervenção policial em um baile deixou 9 mortos. Essa situação, longe de ser um caso isolado, é costume dessa política, que tem como alvo a pele preta e aterroriza os moradores das favelas, responsáveis pelas mortes de crianças da comunidade que estavam “no lugar errado na hora errada”, como é o caso de Agatha Felix, Jenifer Cilene Gomes, Kauã Vitor, Rayane Lopes, entre muitas outras.

A alternativa revolucionária para essa situação é a da legalização das drogas sob controle dos trabalhadores e dos usuários. Com a nossa classe educada sobre os efeitos, tem o direito de tomar suas decisões, tendo acesso aos conhecimentos necessários para isso. Essa saída garante amplos debates sobre as mentes e corpos da nossa classe, sem os preconceitos da moral religiosa (que reprime a expressão da sexualidade da juventude) e a repressão burguesa. Sendo assim, o incômodo de um setor devido o Tuim ser o som protagonista em uma festa dentro do campus, com a presença de populações que não necessariamente são estudantes da Unicamp, em uma universidade de excelência, majoritariamente branca e de classe média, é certamente um ataque racista.


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Brenda Brossi

Estudante de Ciências Sociais - UNICAMP
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