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"O capacitismo se sustenta em questões estruturais da sociedade capitalista, estruturalmente excludente"

Entrevista com Marinalva Oliveira

"O capacitismo se sustenta em questões estruturais da sociedade capitalista, estruturalmente excludente"

Entrevista com Marinalva Oliveira

Publicamos aqui a entrevista com a professora da UFRJ e militante pelos direitos das pessoas com deficiência Marinalva Oliveira, concedida à Rita Frau Cardia do MRT e do Esquerda Diário, debatendo sua perspectiva sobre a luta anticapacitista e sua vinculação com uma perspectiva anticapitalista.

Rita Frau: O governo Bolsonaro em 2020, em plena pandemia, reduziu em 70% em relação ao ano anterior, a verba do programa de apoio à saúde para pessoas com deficiência. Quais foram as consequências ao público que necessita de políticas específicas?

Marinalva Oliveira: A pandemia potencializou a desigualdade, a vulnerabilidade e a negação de direitos em que as pessoas com deficiência já se encontravam. A necropolítica pandêmica teve retrocessos no campo dos direitos humanos e impactos pandêmicos se fizeram sentir em diferentes segmentos populacionais, particularmente entre as pessoas com deficiência que cotidianamente enfrentam barreiras que lhes inviabilizam o exercício dos seus direitos fundamentais. As consequências é que todas as formas de opressão e exclusão das pessoas com deficiência foram aprofundadas com a pandemia e permaneceram com a ampliação das diversas barreiras, que as impedem de se adequar ao “mundo novo”. O aprofundamento no atual cenário, bem como o enfrentamento às barreiras impostas diariamente, só denuncia o quão precária é a vida das pessoas com deficiência na sociedade capitalista com a ausência de políticas públicas e sociais. A pandemia e suas consequências tornou mais transparentes questões já existentes e aprofundou a crise do capitalismo, ao demonstrar mais do que nunca a necessidade de uma ação efetiva do poder público na garantia de condições mínimas de sobrevivência, principalmente dos mais vulneráveis social e economicamente.

Rita Frau: A pandemia aprofundou a exclusão de crianças e jovens com deficiência das atividades escolares. Com mais de um ano da retomada das aulas presenciais quais desafios você considera que estão sendo enfrentados por jovens e crianças e os trabalhadores da educação?

Marinalva Oliveira: Durante a pandemia, milhares de crianças ficaram sem acesso às escolas e as dificuldades foram ainda maiores para as pessoas com deficiência com a proposta de ensino remoto. O ensino remoto aprofundou as desigualdades de acesso no direito à educação e nunca foi indicada como substitutiva da educação presencial, pois aprender sem ter um professor por perto é uma tarefa desafiadora para qualquer pessoa, mas principalmente para as pessoas com deficiência. Em outras palavras, na dimensão pedagógica, o prejuízo foi causado pela maior ausência de professoras/es na mediação direta com as/os estudantes, atingindo muito mais profundamente as pessoas com deficiência. No retorno presencial nenhuma medida foi tomada para recuperar os prejuízos sociais, psicológicos e emocionais das/os estudantes com deficiência, que não estavam habilitados para o ensino remoto e sofreram com a falta de socialização; as dificuldades das famílias que assumiram o ensino dos filhos sem ter condições infraestruturais e, principalmente, pedagógicas. As consequências são a exclusão que se tornou permanente, pois muitas pessoas com deficiência não retornaram à escola e, outras que retornaram estão sem o direito de poder frequentar a sala de aula, pois sequer tem professor de apoio, ou quando frequentam com carga horária reduzida entre outras violações ao direito educacional. As/os estudantes com deficiência estão enfrentando de forma mais intensa o capacitismo institucional. Não existe uma política de permanência com professores de apoio, professores do AEE, equipe multidisciplinar e formação de profissionais da educação.

Rita Frau: A situação de desigualdade estrutural vivida por pessoas com deficiência se aprofundou com a pandemia combinada com a crise econômica. Capacitismo é a discriminação e a opressão das pessoas com deficiência ao considerá-las inferiores diante de uma série de atividades humanas. Você poderia comentar um pouco sobre a relação da crise capitalista que estamos vivendo e o capacitismo?

Marinalva Oliveira: Na sociedade capitalista a concepção da deficiência está imbuída de valores ideológicos como forma de manutenção das relações de dominação. Os corpos das pessoas com deficiência estão fora da ordem capitalista e, portanto tem “menor valor” são “incapazes” para o trabalho e por isso um obstáculo para a produção e geração do lucro à medida que aquele corpo não responde às condições exigidas são excluídos eliminando qualquer possibilidade de se realizarem por meio do trabalho. Assim a deficiência é uma consequência da imposição econômica, política, cultural e social.

Isso resulta na invisibilidade sócio-histórica das pessoas com deficiência e na ausência de políticas públicas com perda de direitos. Nesse contexto, a deficiência é um sinônimo da opressão social. A relação com o aperfeiçoamento do sistema capitalista está posto à medida que há o estabelecimento de um ideal de corponormatividade que corrobora com a manutenção e aperfeiçoamento desse sistema econômico. É essa cultura capacitista a responsável pela falta de políticas públicas de educação, saúde, habitação, transporte, lazer e cultura. Com isso, ocorre um esvaziamento de direitos e demandas, acentuado por barreiras arquitetônicas, comunicacionais, atitudinais e socioculturais em um conjunto de espaços. Por exemplo, as atuais políticas para a educação “inclusão escolar” das pessoas com deficiência não desestruturam o sistema capitalista, uma vez que são estratégicas para sua própria manutenção. Assim, o capacitismo configura-se como uma estrutura social que produz a violação de direitos humanos das pessoas com deficiência. As situações de preconceito e discriminação se dão em virtude dos corpos e das capacidades que algumas pessoas apresentam, as quais destoam dos padrões considerados normais e capazes pela sociedade.

“Na crítica marxista da deficiência, as lutas anticapacitistas e anticapitalistas estão do mesmo lado da trincheira” (Anahí de Mello, 2021).

Rita Frau: Você acha que a luta dos movimentos por inclusão na educação e por direitos das pessoas com deficiência é uma luta que deve ser incorporada pela esquerda como parte da luta anticapitalista da classe trabalhadora?

Marinalva Oliveira: Todas as formas de opressão e exclusão das pessoas com deficiência são problemas enfrentados e possuem uma origem histórica e, por isso, a maioria é gerada pela ordem social de produção e reprodução da vida material no capitalismo. O capacitismo se sustenta em questões estruturais da sociedade capitalista, estruturalmente excludente. A luta na defesa da inclusão das pessoas com deficiência como projeto político, social e econômico só ocorrerá com transformação e rupturas combatendo privilégios e desigualdades econômico-sociais. A deficiência é uma questão política, de direitos humanos e de luta. Em algumas situações, a deficiência é aprofundada por outros marcadores como raça, classe, etnia, escolaridade, orientação sexual e identidade de gênero. A intersecionalidade dos marcadores sociais permite identificar a forma de construção das relações sociais e se estruturam na disputa de poder e projetos e a gestão da vida são constituídas.

Essa perspectiva interseccional é imperativa considerá-la na luta anticapacitista direcionada à emancipação social desses sujeitos articulando sexismo, racismo, classismo, LGBTfobia e capacitismo. que considere, sobretudo, a adoção de uma postura anticapacitista em todas as lutas sociais. Situar a deficiência na perspectiva interseccional emancipa o lugar da pessoa com deficiência nas lutas anticapacitistas, o que não deixa de ser um ato político, uma vez que visibiliza as trajetórias de lutas por reconhecimento e por políticas sociais. Só assim teremos a possibilidade de surgimento de mobilizações sociais que pressionem pela criação de políticas públicas estruturadas com vistas a garantir direitos às pessoas com deficiência. A emancipação e libertação de todas as opressões só será possível se interseccionada com uma mudança estrutural da sociedade.


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