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“O conceito de ‘racismo estrutural’ é uma espécie de ’mão invisível racista’, sem responsabilidade de empresas ou classes sociais”, diz Wagner Damasceno

Redação

“O conceito de ‘racismo estrutural’ é uma espécie de ’mão invisível racista’, sem responsabilidade de empresas ou classes sociais”, diz Wagner Damasceno

Redação

O semanário teórico-político Ideias de Esquerda entrevistou Wagner Miquéias Damasceno, que lançou recentemente o livro: Racismo, escravidão e capitalismo: uma abordagem marxista, pela editora Mireveja. O autor é militante do movimento negro e socialista. É professor no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). As perguntas foram elaboradas por Iuri Tonelo e Marcello Pablito, da equipe do Ideias de Esquerda.

IdE: Wagner, pode nos contar um pouco sobre seu novo livro Racismo, escravidão e capitalismo no Brasil?

W.D.: Claro. Este livro é resultado da minha tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UNICAMP, sob a orientação do estimado professor Ricardo Antunes. Como o título já indica, neste livro eu busco evidenciar os vínculos entre capitalismo e racismo, com uma ênfase na formação da sociedade brasileira. Analiso as diferentes ideologias racistas que deitaram raízes em nosso país, dando ênfase à ideologia do branqueamento e à ideologia da democracia racial. Além disso, eu argumento que o racismo surgiu como uma necessidade de justificar a escravidão negra no quadro da acumulação primitiva capitalista e que sua persistência, apesar do fim da escravidão, se explica por sua conveniência política e econômica para a burguesia hoje.

IdE: Temos visto um fortalecimento de perspectivas liberais sobre a questão racial ou de uma valorização da identidade racial descolada de uma perspectiva de classe. Como você vê a relação entre raça e classe e essa perspectiva liberal sobre a questão racial?

W.D.: Vejo essa relação entre raça e classe como algo fundamental, não só para entendermos a escravidão, haja vista que o capitalismo é o sistema que se robusteceu com a escravização de milhões de negros e negras traficados da África para as Américas. Mas relacionar raça e classe é fundamental também para entendermos a exploração e a opressão contemporânea que atinge os negros e negras. Numa sociedade cindida por classes sociais antagônicas é impossível existir o “negro” em abstrato, isto é, o conflito entre burgueses e trabalhadores segue mais vivo do que nunca e por isso podemos dizer que esse antagonismo de classes atravessa todo o universo negro. Ao contrário disso, a perspectiva liberal não só tenta revisar a história, dissociando completamente os caminhos da escravidão negra e do capitalismo, como fomenta a ideia de que é possível resolver os problemas dos negros e negras dentro do capitalismo. É o caso, por exemplo, dos discursos de black money e empreendedorismo negro que estimulam a crença de que o racismo será eliminado com o enriquecimento dos negros, ignorando que, por sua natureza excludente e monopolista, o capitalismo não permite que todos os negros se tornem ricos e nem permite que pequenos empreendimentos se agigantem. Esses discursos servem também para desmobilizar a luta coletiva contra o racismo e contra o sistema capitalista já que estimulam um tipo de ação mais individualista.

IdE: Alguns autores como Carlos Moore fazem uma verdadeira falsificação dos escritos de Marx e dizem que o marxismo não tem nenhuma contribuição para a luta antirracista. Quais contribuições na sua opinião o marxismo deixou para a luta negra?

W.D.: Há muitas contribuições. Acho que a primeira grande contribuição talvez nem seja tão notada, e reside na abordagem materialista histórica e no uso da dialética. Digo isso porque, diferentemente das explicações idealistas, essa abordagem trouxe para o chão da vida material as explicações sobre a origem da exploração e das opressões. Em segundo lugar, Marx e Engels entenderam que as chamadas opressões são estimuladas pela burguesia e dividem os trabalhadores exigindo dos comunistas a necessidade de combater essas opressões com o fito de uni-los. Revolucionários como Lênin e Trótski seguiram adiante com essa compreensão e se posicionaram firmemente ao lado dos negros na luta contra o racismo. Não à toa, Trótski dizia no Programa de Transição, escrito em 1938, que “antes de sufocar ou afogar a humanidade em sangue, o capitalismo envenena a atmosfera mundial com os vapores deletérios do ódio nacional e racial”. Por fim, além de explicar o funcionamento do capitalismo, o marxismo explica o que devemos fazer para construir uma sociedade socialista, que varra toda forma de exploração e opressão e construa uma sociedade comunista de produtores livremente associados.

IdE: Qual a sua visão e quais problematizações você vê no conceito de "racismo estrutural" que se popularizou com Silvio Almeida?

W.D.: Em meu livro digo que é uma espécie de “mão invisível racista”, que pratica o racismo, sem responsabilidade de indivíduos, empresas nem classes sociais. É um conceito que, além de vago, separa racismo e capitalismo e repousa numa revisão teórica do que seria o Estado. Não por acaso esse conceito teve uma boa acolhida em setores do empresariado e entre políticos burgueses.

IdE: Como você vê o conceito de “necropolítica” elaborado pelo filósofo Achille Mbembe?

W.D.: Esse é um conceito que está bastante em voga mas que, na minha opinião, além de equivocado é propositalmente confuso. Me chama a atenção a ausência da palavra “capitalismo” nessa elaboração de Mbembe. Ora, o capitalismo – desde seus primórdios – vem promovendo assassinatos e extermínios em massa, nas mais diferentes formas, mas Mbembe resolve desaparecer com a palavra “capitalismo” – como se isso fizesse esse sistema econômico desaparecer – e tenta, em seu lugar, atribuir as guerras e o extermínio em massa a uma necropolítica. Mbembe fala do Estado nazista, por exemplo, e ignora que esse Estado era burguês e uma manifestação do próprio desenvolvimento do capitalismo. Na verdade, Mbembe fala uma única vez em “capitalismo”, mas quando critica de forma caricatural Marx atribuindo a ele a velha – e infundada – pecha de economicista. Ademais, me parece que Mbembe subsume a classe social à raça, ao falar em “racismo de classe”. Portanto, não acho que este seja um conceito adequado para explicar a realidade ou a violência que se abate sobre os negros e negras.

IdE: Partindo de que os resultados das eleições de 2022, se por um lado levaram a derrota eleitoral do Bolsonaro, indicam que o bolsonarismo não será derrotado sem luta e organização. Por outro lado, vemos a formação de uma frente ampla com setores da direita tradicional possivelmente sendo parte do governo. Como você avalia que deverá seguir a luta contra o racismo e as mazelas do capitalismo brasileiro nesse novo contexto?

W.D.: Penso que a derrota eleitoral de Bolsonaro foi muito importante. Isso enfraqueceu o bolsonarismo já que seu líder – até agora inconteste – não terá mais o comando do Estado. No entanto, o bolsonarismo elegeu uma grande bancada no Congresso e mostra que não é um fenômeno passageiro. Por outro lado, devemos permanecer com a “guarda levantada” não só para enfrentar o bolsonarismo, mas para nos defender de futuros ataques que, fatalmente, serão desferidos pelo novo governo Lula. Estamos falando de um novo governo que, por sua aliança com setores importantes da burguesia, já nasce sob o signo da conciliação de classes e que exercerá uma pressão imensa sobre as organizações da classe trabalhadora e sobre os movimentos sociais. Uma pressão para cooptação, trazendo diretamente para o governo ou para sua órbita, movimentos e lideranças sociais, como já estamos vendo com a composição do gabinete de transição. E exercerá uma pressão permanente para o silenciamento das críticas e para a desmobilização das lutas, sob o argumento de que as críticas fariam “o jogo da direita” e que greves e mobilizações fariam “a direita voltar”. Isso deixará que a crítica e a ação contra o novo governo se tornem monopólios da ultradireita bolsonarista, que é vil, corrupta e nada tem a oferecer aos trabalhadores. Por isso acredito que uma das principais tarefas pro próximo período é a defesa da mais resoluta independência de classe e autonomia dos movimentos sociais frente ao novo governo e a construção de uma alternativa socialista para o Brasil.


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