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O mito da “direita democrática” no Brasil partido ao meio

André Barbieri

Vitória Camargo

Arte:@alicecauma.arte

O mito da “direita democrática” no Brasil partido ao meio

André Barbieri

Vitória Camargo

A sensação de prorrogação das eleições atravessou a semana que se seguiu à vitória eleitoral de Lula sobre Bolsonaro. Caminhoneiros e manifestantes da base social bolsonarista bloquearam rodovias nos quase dois dias de silêncio do presidente derrotado, com a colaboração ativa das “instituições” (como a PRF) sobre as quais parte da esquerda depõe a esperança vã de estabilidade. No feriado de finados, manifestantes protofascistas, e aqueles que consideraram “fraudada” a eleição, protestavam diante de sedes militares uma intervenção em nome da reversão dos resultados eleitorais. As interdições nas rodovias diminuíram quando um Bolsonaro, chateado pela derrota, despejou um vídeo de lamúrias pedindo o desbloqueio, não sem alentar os “democráticos” protestos que contaram com coreografia marcial e saudações nazistas. Embora reconhecendo em discurso ambíguo que vai haver transição entre governos, Bolsonaro passou a mensagem que queria, a de que é líder de uma nauseabunda oposição de ultradireita que tem força para ocupar as ruas.

Enquanto essas manifestações reacionárias de cunho golpista questionavam nas ruas o resultado do pleito, o PT olhava para o outro lado. Toda a atenção do governo eleito estava concentrada em “pacificar o país”, operando a transição institucional em meio aos desfiles impunes da extrema direita, contra os quais a ordem petista foi não entrar em conflitos. Geraldo Alckmin, espancador de professores em São Paulo e um dos símbolos da direita nacional, foi encarregado de operar a transição junto a Ciro Nogueira, ministro-chefe da Casa Civil, e o general Luiz Eduardo Ramos, chefe da secretaria-geral da Presidência da República. Alckmin recebeu com alegria as felicitações dessas abomináveis figuras da extrema direita, enquanto movia as peças com o relator do Orçamento 2023, Marcelo Castro (MDB), para flexibilizar o teto de gastos e garantir o valor de R$ 600 do Auxílio Brasil para o ano que vem.

Além dos acordos de transição, a equipe de Lula moveu fichas para conseguir base de apoio legislativo para o novo governo. Gleisi Hoffmann, presidente do PT, anunciou querer o apoio de todo o MDB de Baleia Rossi e Temer, e do PSD de Gilberto Kassab, partidos apoiadores do golpe institucional de 2016, além de buscar ampliar apoio congressual com siglas como o Republicanos (partido do centrão da base bolsonarista), União Brasil (em que figura o infame Sérgio Moro), o PSDB e o Cidadania. A estratégia seria “isolar Bolsonaro”, um eufemismo para a frente ampla de governo com boa parte da direita não-bolsonarista. Kassab, que foi chave para a eleição de Tarcísio, já anunciou que quer “se sentir governando” e com uma reforma administrativa contra o funcionalismo público, se Lula almeja obter seu apoio. E almeja: precisa do apoio de Rodrigo Pacheco, presidente do Senado que tentará reconduzir ao cargo para poder contar com maior margem no Congresso. A cobrança será generalizada. Rapidamente os aliados desenham concretamente a promessa de Lula em campanha: este não será um governo do PT, e sim da frente ampla com a direita.

Esse quadro representa os traços gerais da polarização assimétrica traduzida ao idioma brasileiro. A extrema direita se apresenta com um discurso agressivo de ruptura do status quo dominante, mesmo sendo a fiel serviçal do capital financeiro e da casta política; os reformistas emergem como os moderados “defensores do status quo desafiado”, um arranjo institucional capitalista que foi degradando cada vez mais os direitos da ampla maioria da população. Esses traços da polarização assimétrica são heterogêneos segundo o país em foco, mas são em geral fruto da crise do “extremo centro” neoliberal tradicional (segundo conceito de Tariq Ali) e exibem uma direita muito mais apta a se mobilizar para defender suas pautas devido às direções burocráticas e reformistas que contêm a mobilização da esquerda.

Essa crise do “extremo centro” poderia ser amplificada na ideia gramsciana da crise orgânica, na divisão entre representantes e representados que se configura como uma crise da autoridade estatal, em que as velhas formas organizativas já não são reconhecidos como sua expressão por sua classe ou fração de classe. “Em cada país o processo é distinto, ainda que o conteúdo seja o mesmo. E o conteúdo é a crise de hegemonia da classe dirigente, que se produz seja porque a classe dirigente fracassou em algum grande empreendimento político para o qual solicitou ou impôs pela força o consenso das grandes massas (como a guerra) ou porque vastas massas (especialmente camponeses e pequenos burgueses intelectuais) passaram da passividade política a uma certa atividade e colocam reivindicações que em seu conjunto não orgânico constituem uma revolução. Fala-se de ‘crise de autoridade’ e isto é precisamente a crise de hegemonia, ou crise do Estado em seu conjunto” (C13 §23, entre maio de 1932 e início de 1934).

Um resultado assimétrico dessa crise orgânica no Brasil diz respeito à configuração das velhas forças da mal chamada “Nova República” de 1988. Se o bolsonarismo foi capaz de obrigar o regime a resgatar o PT para relegitimar seu sistema político, foi capaz também de absorver a base votante e social da direita tradicional, praticamente liquidando-a. A conquista dos governos do Rio Grande do Sul, de Pernambuco e Mato Grosso do Sul mal pode conter a tendência de que o PSDB se torne uma agremiação quase irrelevante para a política nacional. Tanto assim que seus ideólogos já assentam que a recriação do campo da direita moderada neoliberal é o grande desafio da política brasileira.

A ideia da recriação do espaço tradicionalmente tucano e a da funcionalidade da estratégia de “isolar o bolsonarismo” nos marcos da frente ampla estão relacionadas entre si. Para além da superfície, uma alimenta a outra. Queremos discutir com ambas.

Recriar um partido democrático da direita?

O professor titular de ética e filosofia política da USP, Renato Janine Ribeiro, em entrevista para a Folha de S. Paulo sobre seu livro “Maquiavel, a democracia e o Brasil”, cravou que o maior desafio da política brasileira nos próximos anos será “recriar um partido democrático de direita”. Janine Ribeiro encontra em Simone Tebet – que assumiu protagonismo na campanha de Lula maior que o de Alckmin, especialmente na reta final – uma alternativa viável para liderar o projeto. Esse partido deveria ser comprometido com os direitos humanos e democráticos, valores supostamente identificados com o velho tucanato da era Fernando Henrique Cardoso. O PSDB teria se perdido nas malhas da campanha pró-impeachment a partir de 2015, e definitivamente entregue a alma à anti-política que elegeu Bolsonaro a partir de 2018, depois que a primeira opção da direita golpista de 2016, Geraldo Alckmin, derreteu.

Tivemos um espaço democrático de direita com o PSDB. O partido havia surgido com uma mensagem mais centrista, até um pouco de centro-esquerda, mas aliou-se à direita, aproximou-se do então PFL. Perdeu quatro eleições presidenciais para o PT, o que o deixou desarticulado, embora continuasse fazendo governadores em estados importantes. Havia até um equilíbrio razoável: o PT não ganhava nos estados, o PSDB comandava os principais estados. No entanto, o PSDB decidiu namorar o golpe, e o Aécio Neves fez o quê? Subordinou [o PSDB] à extrema direita e ao Eduardo Cunha, e outras lideranças do PSDB não souberam ou não quiseram dar um limite. O partido não quis esperar a eleição de 2018, o que foi trágico.

O PSDB se transformou ao longo das décadas, mas em um lugar distinto daquele em que Janine Ribeiro o situa. A prática define a realidade histórica das agremiações políticas. Mesclando certos traços vagos oriundos da social-democracia, calibrado pela democracia cristã e o liberalismo econômico e social, o PSDB foi provavelmente o mais fiel representante do Consenso de Washington na América Latina durante a década de 1990. O PSDB foi responsável pelas medidas econômicas de espoliação cada vez maior do proletariado brasileiro, que se conformou na arquitetura neoliberal do chamado tripé macroeconômico (metas de inflação, responsabilidade fiscal e câmbio flutuante), seguido pelo lulismo. Essa base foi central para estabilizar a subordinação do país ao capital imperialista, ao mesmo tempo que foi combinada ao aumento da precarização do trabalho com a terceirização. FHC transpôs os ordenamentos dos Estados Unidos em todas as esferas sociais, aplicando cortes e ajustes neoliberais de monta, como a onda de privatizações sobre subsidiárias da Petrobras e sobre empresas siderúrgicas — a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa) e a Aço Minas Gerais (Açominas), além da Vale do Rio Doce. No curso desses ataques, que estavam inscritos na agenda de “centro-esquerda”, o PSDB se enfrentou com os trabalhadores, tendo o governo FHC reprimido a greve dos petroleiros em 1995. Muito antes das convulsões da crise orgânica, o social-liberalismo do PSDB já se utilizava de mão dura para aplicar ajustes direitistas. Em São Paulo, Alckmin, Serra e o PSDB “democráticos” sistematizaram a repressão aos professores e estudantes.

Reconhece o próprio Janine Ribeiro a mescla política do PSDB com a extrema direita do PFL, sigla de Paulo Maluf e Marco Maciel, a fim de ganhar algum terreno no Nordeste. Lembra Lincoln Secco que os tucanos, nascidos como força de centro-esquerda e com o fito de tornar-se uma agremiação social-democrata, resvalaram rapidamente para os braços da direita reacionária, como no caso do malufismo em São Paulo. Mais ainda levando em conta as transformações. Da derrota eleitoral de Aécio Neves em 2014 até o triunfo do bolsonarismo, o PSDB foi parte fundamental da degradação autoritária do regime político. Apoiando Eduardo Cunha na Câmara dos Deputados, foi o maestro político do golpe institucional que o terminou por engolfar. O PSDB não se suicidou, como atesta Janine Ribeiro, e sim se bolsonarizou. João Doria ficou famoso por encampar a postiça retórica “anti-casta” do gestor, emprestada da própria extrema direita que através da Lava Jato e Sérgio Moro catapultaram os alicerces do discurso de Bolsonaro; Doria fez campanha aberta pró-Bolsonaro em 2018. Mesmo depois de trucidadas suas principais forças, e tendo perdido o bastião mais importante do tucanato (o governo de São Paulo), Rodrigo Garcia, candidato a governador pela sigla, apoiou incondicionalmente Tarcísio de Freitas. “O PSDB nutriu e concedeu forças à extrema direita”, sim, e viu essa transformação no interior de seu quadro organizacional. Tendo no seu repertório a comunhão com malufistas nas décadas anteriores, o PSDB, hoje, abriga também bolsonaristas disfarçados. De direita “democrática”, só o nome.

O tucanato foi, portanto, parte fundamental para o surgimento da extrema direita, e se dividiu a partir de então. Uma fração do PSDB se bolsonarizou abertamente após o desenlace de 2018. Outra parte do PSDB, ligada a FHC, Tasso Jereissati e Aloísio Nunes, se dissociou desse rumo, e aparece dentro do arco de apoio do governo Lula-Alckmin na esperança de recompor a dita “direita democrática”. As expectativas de Janine Ribeiro e os que professam essa política no regime estão aí. Com efeito, o governo Lula-Alckmin operou duas novidades históricas dentro das transformações atravessadas pelo sistema político. Em primeiro lugar, articulou a frente ampla fundindo os dois pontos polares do regime pós-transição pactuada de 1988, o PT e o PSDB “clássico”. Tão potente foi nesse aspecto a figura de Alckmin, novo encarregado da organização política do governo Lula, que logrou substituir com sua persona a “Carta ao Povo brasileiro” de 2002, que segundo Lincoln Secco foi um símbolo do transformismo petista, acalmando o capital financeiro com o reconhecimento da “pouca margem de manobra da política econômica”, da necessidade de responsabilidade fiscal e de superávits primários para o serviço da fraudulenta dívida pública. Em condições novas e distintas, Alckmin foi o porta-voz da manutenção “democrática” das reformas ultraliberais (trabalhista e previdenciária) herdadas dos governos anteriores. Em segundo lugar, e fruto disso, o governo Lula-Alckmin se postula como uma incubadora potencial de uma nova direita tradicional, que faleceu no PSDB e precisa de tempo para nutrir-se e reorganizar-se. Esse aspecto, que não é secundário, não apenas alimenta as esperanças do mesmo regime que resgatou Lula para relegitimar-se, mas também garante outra fonte potencial de instabilidade no interior do governo.

A recriação de uma “nova direita democrática” tem o seu viveiro fértil no novo governo Lula-Alckmin. Tanto assim que Janine Ribeiro aponta a perspectiva de Tebet como possível líder desse engendro. Essa figura do MDB, que ganhou destaque nos debates presidenciais, votou favoravelmente às reformas trabalhista e previdenciária (votou a favor de 86% das pautas bolsonaristas desde 2018). Oriunda de uma família oligárquica que possui propriedades rurais em territórios tradicionais reivindicados pelos povos Guarani-Kaiowá, Tebet já votou a favor da suspensão de todas as demarcações durante um período de quatro anos, e pela indenização de grileiros e latifundiários. Ademais, é vocal opositora do direito das mulheres ao aborto, como outra das parceiras de campanha de Lula, Marina Silva, evocada como alternativa para a hipotética “nova direita”. Marina Silva foi acérrima defensora do golpe institucional e da prisão arbitrária de Lula em 2018, ligada ao capital financeiro (Itaú) e amiga do imperialismo francês de Macron. Essas duvidosas credenciais “democráticas” mostram a natureza do projeto, que envolve no plano econômico as figuras liberais do Plano Real (Edmar Bacha, Armínio Fraga, Pérsio Arida, Pedro Malan, André Lara Resende e cia.).

Na qualidade de sementeira dessa mitológica “direita democrática”, os planos podem ir para outro lado. O novo governo pode gozar no imediato de maior tolerância entre as massas que se viram livres de Bolsonaro, e o próprio regime atua para estabilizar a situação política. Mas a conciliação de classes contida no programa petista, ao ser percebida como incapaz de cumprir as expectativas geradas de melhoria e se chocar com essa perspectiva, pode alentar um retorno mais poderoso da extrema direita.

Todas essas são hipóteses que a realidade ainda começará a testar. O que se pode afirmar é que a corrida por uma direita dita “democrática” nos costumes e neoliberal na economia não pode fazer voltar o relógio da história. Os quatro anos de bolsonarismo não passaram em vão. Essa extrema direita atuará para moldar os contornos de qualquer engendro político que queira ocupar o espaço do “conservadorismo esclarecido”.

Um pacto com a "direita democrática" que isole a extrema direita?

Por sua vez, o professor de Filosofia da Unicamp Marcos Nobre também está entre aqueles que assume como sua bandeira a necessidade de "reconstruir a direita democrática", o que só seria possível, em sua visão, a partir de um "pacto democrático" entre o PT e uma direita opositora que isole a extrema direita. Desse ponto de vista, "reformando as instituições democráticas" e retomando uma polarização similar à que marcou o regime de 88, com PT e PSDB. Seu diagnóstico, cujas bases estão desenvolvidas em seu livro recém-lançado "Limites da democracia", tem como alerta que "se Lula quiser de fato superar a crise em que nós estamos, ele precisa construir um governo que seja maioria, mas que não tenha uma supermaioria, característica do pemedebismo". Já se Lula voltar ao "velho esquema peemedebista", em suas palavras, Bolsonaro estará eleito em 2026.

Pemedebismo é o termo que Nobre utiliza para designar o modo de funcionamento do sistema político desde a chamada redemocratização, calcado na conformação de "supermaiorias" parlamentares que leva a que as oposições sejam absorvidas para dentro dos governos e estes não consigam efetivamente promover mudanças, pelo nível de fragmentação partidária e político-ideológica em seu interior, culminando no que chama de "conservadorismo democrático". "No modelo que prevaleceu de 1994 a 2013, partidos funcionam como empresas de venda de apoio parlamentar a governos de coalizão. (...) A esse modo de operar que a ciência política brasileira convencionou chamar de presidencialismo de coalizão, chamei de peemedebismo, em homenagem ao partido que, durante pelo menos três décadas, foi o líder do cartel de empresas de venda de apoio parlamentar, o PMDB". A partir de Junho de 2013, para o autor, foi esse modelo que passou a ser questionado, e, para Nobre, essa ordem pré-Junho não pode ser simplesmente restaurada, já que teria demonstrado a necessidade de uma autorreforma do sistema político desde então. A partir de 2019, quando "a Lava Jato conseguiu de fato impedir o sistema político de retomar o controle da política", sem ela mesma "tomar o lugar da política oficial", passamos a viver uma "situação de emergência democrática duradoura" com Bolsonaro, com um movimento "que usa a institucionalidade como instrumento, e não como fim".

Frente a isso, o que propõe Marcos Nobre efetivamente ao novo governo eleito? Que o PT governe "somente" com os partidos da direita necessários para construir maiorias parlamentares, e não as "supermaiorias", como forma de evitar o "velho esquema peemedebista". Isso seria a chave para supostamente promover mudanças no sentido de "combater desigualdades e democratizar o sistema político" e sobretudo garantir uma parcela substantiva dos partidos da direita na oposição institucional "democrática" ao governo. Essa seria sua receita para que a direita não hegemonizada pela extrema direita passe a existir de fato, terminando por “isolar o bolsonarismo”, em um grande pacto democrático que inclui, obviamente, golpistas de 2016 - que ele basicamente espera que tenham se arrependido de seu golpismo. O fato é que, a não ser nas utopias reacionárias daqueles que apostam na direita para fugir da luta de classes a qualquer custo, essa teoria não encontra bases possíveis na realidade.

Vamos à realidade. Em entrevista ao Opera Mundi, de Breno Altman, o próprio Marcos Nobre propõe, seguindo sua cartilha, que a chave, daqui em diante, é que o PT governe com alianças suficientes para obter uma maioria de 280 deputados na Câmara e 45 senadores, "nada mais". Essa seria a solução do autor para recompor uma direita democrática no Brasil. Levando em conta que a chamada "centro-esquerda" na Câmara não chega à metade desse número, isso significa, como o próprio Nobre admite, que o PT não deve fazer alianças somente com o PL de Bolsonaro, o PP e o Republicanos de Tarcísio. No mais, todos os outros partidos da direita são bem-vindos nessa "frente ampla democrática". Inclusive, quando perguntado sobre o MDB de Tebet e Temer, o União Brasil e o PSDB, chega ao ponto de responder que o União Brasil de Sérgio Moro, cuja maioria da bancada eleita declarou apoio a Bolsonaro nessas eleições, tende a ser "um polo aglutinador de uma direita não bolsonarista" no Congresso. Claro, essa seria a única resposta possível seguindo sua lógica, já que sem alianças com esses partidos ou parte deles, não se alcança maioria parlamentar. Para não lembrar que, no caso das chamadas "reformas constitucionais", para as quais é necessário atingir maioria qualificada no Congresso, como para revogar o Teto de Gastos (uma das poucas medidas presentes no programa do PT, porque está presente também entre economistas liberais como Armínio Fraga, enquanto Lula-Alckmin se recusam a tocar na revogação integral das reformas escravistas), nem mesmo esse acordão seria suficiente. A isso, Marcos Nobre indica: "é preciso negociar". Negociar cada vez mais.

Assim, estamos falando de partidos burgueses reacionários, defensores de ataques aos trabalhadores de todos os tipos e pilares do fortalecimento da extrema direita no Brasil. Mas, pelo contrário, na visão de Marcos Nobre, o PT, atendendo a essa maioria, "vai montar um governo muito mais enxuto, muito mais aguerrido, muito mais coeso". Essa coesão estaria a serviço de qual programa? Sabemos de qual não estaria, e já não está. Explicitando o cálculo do autor, fica ainda mais clara a falência representada pela ilusão de combater a extrema direita pelas vias do próprio regime.
Afinal, sobra pouca "direita democrática" na oposição institucional ao governo eleito, já que este terá de se aliar, como já fez em campanha e deixa claro que fará muito mais, a Deus e o diabo para "governar". A direita institucional segue espremida entre o bolsonarismo e a frente ampla que se elegeu no domingo passado.

Por outro lado, Nobre repete um mantra utilizado também por lideranças da esquerda institucional, sobre a tal limitação imposta pela "correlação de forças" que torna impossível qualquer saída que não seja por dentro do regime. Quando questionado sobre a efetividade de se confiar em uma "direita democrática", em um país cuja burguesia já deu inúmeras mostras históricas de seu reacionarismo, a resposta foi a mesma: "não há correlação de forças para uma revolução". Mas Nobre vai além, ao contrário de alguns petistas como seu entrevistador, Breno Altman, que defendem como modelo algo como um Allende, um governo que supostamente recorra à mobilização popular para "conseguir governar" pela esquerda (o que Allende não fez, fugindo da luta de classes e facilitando o caminho para o golpe pinochetista). Nobre é aberto em rechaçar qualquer forma de mobilização e organização nas ruas para "ajudar" Lula a governar. Pelo contrário, sua fórmula combina a necessidade da construção de uma nova "direita institucional" para isolar a extrema direita com a necessidade de uma esquerda que se organize pela base nas redes. Ou seja, das lições que o bolsonarismo deixa à esquerda, Nobre assimila somente sua capacidade de organização como partido digital.

Embora esse aspecto da capacidade de intervenção do bolsonarismo não seja para nada desprezível, é sintomática a recusa do autor em tirar lições da polarização assimétrica que já citamos. De um lado, diante de uma extrema direita que combina maior institucionalização, Nobre é representante de um determinado modus operandi petista que segue vendendo a farsa de governar com "maioria", com coesão ideológica e política, quando a extrema direita vem impondo um regime cada vez mais à direita. Na prática, o próprio autor repete a fórmula que alerta a Lula como um risco, cedendo ao "velho esquema peemedebista", para usar sua conceituação, aquele que foi o grande responsável pelo fortalecimento da extrema direita nos anos de governos petistas.

Foi a velha conciliação de classes que promoveu a atual correlação de forças no regime, fortalecendo as bases reacionárias do bolsonarismo. Longe de "isolar a extrema direita", a receita de Nobre é a que permitiria uma volta “gloriosa” da extrema direita ao poder. De outro lado, o que essa extrema direita mostra já nos primeiros dias da transição é um "novo tipo de oposição", se compararmos aos últimos seis anos do país nos quais o PT foi parte de garantir que as ruas sejam mais utilizadas pela extrema direita do que pelos trabalhadores e todos os oprimidos que querem enfrentar o bolsonarismo.

Desse modo, a chave para começar a compreender o bolsonarismo é a combinação entre sua institucionalização, que avançou nessas eleições, e uma força "extra institucional", que se organiza pelas redes e se materializa nas ruas. A fórmula que tem como alvo buscar construir uma nova oposição institucional é equivocada já como ponto de partida e "casa bem" com a linha das direções petistas que reforçam a confiança nas instituições, em prol dessa frente ampla que somente pode atender interesses alheios a "combater desigualdades" e "democratizar" o sistema político.

Qual lógica de fato ignora a atual correlação de forças? A que busca construir maioria contra o "conservadorismo democrático" com o Congresso mais à direita da mal-chamada Nova República, deixando as ruas livres ao bolsonarismo, ou aquela que aposta na construção de uma força extra-institucional para fazer frente ao bolsonarismo e impor um programa que de fato combata a exploração e opressão, por isso independente do governo eleito? A correlação de forças não é um dado imutável da realidade, como viemos reafirmando, mas sim é construída a cada combate dado ou não. A arena em que se escolhe "jogar" é reveladora de antemão do projeto que o autor se dispõe a construir.

Uma esquerda presa ao regime é incapaz de responder ao bolsonarismo

A diferença entre Nobre e Janine Ribeiro parece ser que o primeiro é mais explícito nos métodos para refazer esse engendro, que passa pelos mecanismos atenuados do presidencialismo de coalizão. O objetivo de "recriar a direita democrática" busca dar corpo a uma suposta reforma das instituições, em chave aparentemente democrática, justamente ignorando a história recente do país, na qual mesmo essas instituições hoje assumem poderes inauditos, como no caso do Judiciário com o STF e TSE e da politização das Forças Armadas, além do peso do Centrão, que avança com seu poder de barganha com mecanismos como o orçamento secreto. Todas essas deteriorações da democracia burguesa brasileira, já degradada, foram essenciais para fortalecer o bolsonarismo e estiveram a serviço de piorar as condições de vida das massas na crise, com reformas, privatizações e destruição ambiental, cujos ataques uniram a extrema direita à direita democrática, com a frente ampla hoje assegurando que essa nova "herança maldita" seguirá intocada. Alertamos incessantemente que o descontentamento em potencial com os próximos anos, sem solução da crise no horizonte, pode, pelo contrário, injetar ainda mais força na oposição bolsonarista.

A recriação de uma nova direita é um objetivo reacionário, que tem no horizonte nos trazer de volta ao lugar em que chegamos com os acontecimentos de 2016, numa nova arena histórica, de maiores crises no capitalismo e conflitos militares como o da Ucrânia e diante de um neoliberalismo que não consegue mais ser projeto hegemônico - momento histórico bastante distinto daquele que lançou as bases para a sustentação do regime de 88. Uma esquerda e intelectualidade que atuem presas ao regime político, dando suporte ao governo, colaboram para que o combate aparentemente "anti-sistêmico" siga nas mãos da extrema direita. A defesa irrestrita de todos os direitos democráticos, junto com o combate pela revogação integral de todas as reformas ultraliberais, deve estar associado a um projeto anticapitalista que tenha como horizonte destruir esse sistema em nome de uma sociedade socialista superior, organizada a partir das bases, o exato oposto da degeneração burocrática stalinista.

A tarefa da esquerda é constituir as bases de uma sólida organização socialista e revolucionária que saiba desafiar o sistema político pela esquerda, o que inevitavelmente implica superar o PT e sua conciliação de classes, com um programa para que os capitalistas paguem pela crise na luta e com auto-organização.


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André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.

Vitória Camargo

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