Logo Ideias de Esquerda

Logo La Izquierda Diario

SEMANÁRIO

O novo timoneiro Xi Jinping em águas turbulentas

André Barbieri

O novo timoneiro Xi Jinping em águas turbulentas

André Barbieri

O 20º Congresso do Partido Comunista Chinês se encerrou com a confirmação do inédito terceiro mandato de Xi Jinping como líder máximo do aparato burocrático partidário. As modificações no Comitê Permanente do Politburo e em todo o alto escalão transformam o PCCh na extensão do poder do próprio Xi. Discutimos com o economista marxista Michael Roberts sobre as conclusões do Congresso e as tarefas dos trabalhadores a nível internacional diante da disputa entre o imperialismo norte-americano e a burocracia bonapartista chinesa.

O 20º Congresso do Partido Comunista Chinês se encerrou com a confirmação do inédito terceiro mandato de Xi Jinping como líder máximo do aparato burocrático partidário. Sua recondução à presidência da República Popular da China será ratificada em março pelo Congresso Nacional do Povo. Ao assumir um terceiro mandato, Xi elimina de facto o sistema creditado para as transições ordenadas de liderança de 2002 e 2012. Em 2002, Hu Jintao sucedeu Jiang Zemin como secretário-geral do partido. Em 2012, Xi sucedeu Hu Jintao.

A quebra do sistema sucessório é um precedente potencialmente instabilizador para o horizonte próximo do PCCh, e esgarça o tecido da luta de classes na China. A transição de poder de Hu Jintao para Xi em 2012, após completar dez anos no cargo, foi a primeira transição ordenada de liderança desde a Revolução Chinesa de 1949. Uma década depois, no entanto, Xi terá um terceiro mandato de cinco anos – quebrando as normas que Hu ajudou a estabelecer.

Inevitáveis paralelos surgem quando discutimos uma sociedade milenar. O imperador Qin Shi Huang é celebrado por unificar a China, iniciando sua Grande Muralha e construindo ele mesmo um vasto mausoléu, guardado por um exército de guerreiros de terracota. Menos conhecido é o que aconteceu depois de sua morte no ano de 210 antes da era atual, em uma viagem pelo leste da China. Segundo o historiador Sima Qian, conselheiros ocultaram a morte de Qin Shi Huang até que a comitiva imperial chegasse à capital, a fim de impedir que seu filho mais velho tomasse o poder. Eles mandaram comida para a carruagem real e trataram dos negócios de lá, como antes. O ardil funcionou no início. O filho mais velho cometeu suicídio e um mais novo, apoiado pelos conselheiros no estratagema, tomou o trono. Mas ele se mostrou fraco. Em quatro anos, ele estava morto e revoltas camponesas fizeram entrar em colapso a dinastia Qin.

Quanto mais tempo Xi Jinping se agarra ao poder, mais difícil será engendrar uma transição ordenada. Isso porque o partido tenta reger a China num momento de instabilidade, desaceleração econômica, insatisfação social com a política “Covid-zero” e a política agressiva do imperialismo estadunidense para interromper o desenvolvimento tecnológico endógeno. Inscrito no marco da volúvel situação mundial, com a pandemia e a guerra na Ucrânia como reatualizadores das características de época assinaladas por Lênin, o regime interno da China pode sofrer solavancos maiores, não somente de crises e guerras, mas de processos sociais de luta que saiam do controle do “líder inquestionável” e configurem possíveis revoluções.

A nova corte de Xi

Xi apressou-se em aposentar dois altos funcionários de um molde político mais moderado, e posicionou aliados para dominar a nova liderança. Manteve nos cargos os funcionários militares que promoveram sua abordagem agressiva na diplomacia e nas Forças Armadas.

Um dos resultados mais esperados do Congresso era saber a composição da nova direção. Duas imagens tomaram o centro das atenções: a aposentadoria prematura do primeiro-ministro Li Keqiang de seu posto no topo do partido, e a surpreendente visão do antecessor de Xi, o encanecido Hu Jintao, sendo escoltado para fora do palco principal.

A imagem de Hu, aparentemente sem saber o que se passava, sendo removido da mesa cerimonial é um símbolo da retirada do poder dos “anciões” partidários. Como havíamos mencionado no último artigo, desde a morte de Mao em 1976 essa camada de antigos dirigentes exerceu pressão poderosa sobre os sucessores na chefia do PCCh, e Xi fez o possível para eliminar esse atributo, evitando o destino de seu antecessor, Hu Jintao, que sofreu uma interferência constante do seu predecessor imediato, Jiang Zemin. A perseguição, aposentadoria ou encarceramento da maioria dos seguidores de Jiang e Hu sob acusação de corrupção foi o método permanente na última década para eliminar a concorrência e abrir caminho para veteranos leais ao novo poder. As vagas conquistadas aos aliados pela campanha anticorrupção, somadas àquelas oriundas da aposentadoria dos funcionários aos 68 anos, deram a Xi ampla margem de atuação: 65% dos 270 membros do Comitê Central foram substituídos desde 2017, e 66% dos 25 membros do Comitê Permanente do Politburo também o foram.

Seguindo esse padrão, o domínio de Xi ficou claro ao sinalizar a aposentadoria de dois pesos-pesados da direção do partido, Li Keqiang e Wang Yang, anteriormente membros do órgão mais poderoso do partido, o Comitê Permanente do Politburo. Nenhum dos dois foi listado como membro do novo Comitê Central de 205 membros do PCCh, de acordo com uma lista publicada pela agência Xinhua. Li e Wang eram ambos suficientemente jovens para serem novamente nomeados para o Comitê Permanente do Politburo, que possui hoje sete membros. Outros dois membros do Comitês Permanente foram aposentados, tendo atingido a marca igual ou superior a 68 anos: o presidente do Congresso Nacional do Povo, Li Zhanshu; e o vice primeiro-ministro, Han Zheng.

Suas saídas permitiram a Xi incrementar o número de políticos leais a si mesmo no Comitê Permanente do Politburo, juntamente com 13 novos nomeados para o Politburo de 25 membros do partido. Os quatro novos membros do Comitê Permanente do Politburo são todos aliados Xi e incluem, por ordem de classificação: Li Qiang, chefe do partido de Xangai; Cai Qi, chefe do partido em Pequim; Ding Xuexiang e Li Xi, o mais alto funcionário do partido na província de Guangdong. O ranking sugere que Li Qiang, o chefe do partido de Xangai, que supervisionou o lockdown da megacidade no início deste ano pela política da Covid-zero, sucederá Li Keqiang como primeiro-ministro, embora as posições do governo não sejam confirmadas até que o parlamento chinês convoque sua sessão anual em março. Wang Huning, que recentemente completou 67 anos, permaneceu no Comitê Central e provavelmente continuará a ser um tenente político chave para Xi.

Li Qiang, nascido em 1959 em Zhejiang e ex-trabalhador de uma estação de irrigação e drenagem em sua juventude, trabalhou diretamente sob as ordens de Xi enquanto este governava a província de 2004 a 2007. Em 2013, ele mesmo tornou-se governador de Zhejiang, antes de assumir o cargo de secretário do partido da província de Jiangsu, e mais tarde chefe do centro financeiro de Xangai, uma nomeação feita no último congresso do partido em 2017. Vai substituir o protegido de Hu Jintao no cargo de primeiro-ministro e eliminar o ex-rival de Xi Jinping da direção máxima. Tem boa reputação entre o caiptal privado industrial e financeiro, e é um sinal verde de Xi aos investimentos estrangeiros, sendo Xangai a capital tecnológica e financeira do país.

O novo Comitê Central também indicou uma revisão das posições-chave que dirigem a segunda maior economia do mundo. Além de Li Keqiang, a lista também excluiu o tsar econômico de Xi, Liu He, e o principal regulador bancário do partido, Guo Shuqing, além de Yi Gang. O diplomata-chefe do governo até então, Yang Jieshi, que representou Pequim no primeiro encontro da administração Xi com o governo Biden, também ficou de fora do Comitê Central. O chefe do partido da região de Xinjiang, Chen Guanguo, também ficou de fora. Em todos esses casos, não estar na lista do Comitê Central implica a aposentadoria forçada dos membros da antiga direção, que não receberão qualquer cargo de importância no Estado.

“A geração de tecnocratas financeiros com treinamento profissional e profundas conexões com a comunidade financeira global está passando de cena”, disse Victor Shih, especialista em política e finanças da China na Universidade da Califórnia. Estes tecnocratas estavam sendo “substituídos por banqueiros provinciais de carreira que têm um histórico de execução das políticas do partido”.

Essas figuras que se retarem ao anonimato da aposentadoria política possuem traços em comum. A maioria foi erguida durante a era Hu Jintao, e expressava posições menos assertivas diante do imperialismo norte-americano o Ocidente, uma marca da administração chinesa durante a década de 2000. Nos escalões inferiores, a repressão foi ainda mais forte contra aliados dos “anciões”. Sentenças de morte – que podem ser comutadas em prisão perpétua após dois anos – foram proferidas na semana passada a Fu Zhenghua, ex-ministro da justiça de Xi; Sun Lijun, ex-vice-ministro da segurança pública; e Wang Like, ex-funcionário de alto escalão em Jiangsu. Também foram emitidas penas de prisão de mais de 10 anos para três outros ex-chefes de polícia e segurança. Entre eles está Liu Yanping, um ex-chefe anticorrupção, que é acusado de participar do grupo de Sun Lijun.

Zhang Youxia, vice-presidente da Comissão Militar Central, órgão presidido por Xi e responsável pela direção do Exército de Libertação Popular, permaneceu no Comitê Central apesar de ter atingido 72 anos. Zhang esteve na vanguarda da modernização das Forças Armadas, e tem experiência de combate no conflito fronteiriço da China com o Vietnã em 1979. Nicho de atenção especial de Xi Jinping, é nas Forças Armadas que buscou construir apoio leal para a empreitada do terceiro mandato, com o apoio do ministro da Defesa, Wei Fenghe.

“Não existem centros alternativos de poder no Comitê Permanente, se é que alguma vez existiram, ao mesmo simbolicamente”, afirmou Richard McGregor, um especialista em política chinesa no Lowy Institute, em Sydney. Cheng Li, especialista em política chinesa na Brookings Institution, teve parecer semelhante. “Xi Jinping consolidou ainda mais o poder quase absoluto ao promover seus protegidos à liderança superior”.

A política do novo grande timoneiro é construir uma direção política à sua imagem e semelhança. Sem polos alternativos de poder, a direção monolítica atrai toda a atenção a Xi Jinping, o patrono do PCCh. Se essa escolha fortalece no imediato suas posições internas, o deixa mais vulnerável a processos de luta de classes em que os trabalhadores chineses identifiquem no “grande timoneiro” a figura responsável pelas suas misérias.

As mensagens do novo timoneiro

Os congressos do Partido Comunista Chinês raramente são ocasiões para anúncios políticos dramáticos. Para mostrar consistência na linha do partido, os líderes enviam relatórios que na maioria das vezes elogiam as realizações do partido e reafirmam objetivos amplos, usando frases familiares. No início do 20º congresso do partido, Xi Jinping aderiu à convenção. Mas apenas em parte. Em termos estratégicos, o discurso de duas horas do novo “líder do povo” quebrou paradigmas assentados pelos congressos anteriores.

A mensagem central a ser retirada do 20º Congresso é que, com Xi Jinping, da economia às relações estrangeiras, a definição de segurança nacional substituiu a economia como o foco central da China para o futuro. Até agora, um ambiente externo benigno era visto pelos herdeiros de Deng Xiaoping (seus sucessores Jiang Zemin e Hu Jintao) como a chave para a concentração exclusiva da China no desenvolvimento econômico. Relatórios congressuais até 2012 também sustentavam que “a China estava passando por um período de oportunidade estratégica”, enfatizando a necessidade de enriquecer evitando problemas internacionais. A ênfase de Xi é muito diferente. As frases padrão sobre a calmaria externa foram abandonadas. O partido aparenta não descartar mais a possibilidade de uma grande guerra num futuro próximo. Xi descreve uma “situação internacional severa e complexa”. O partido, diz ele, deve estar “preparado para os perigos em tempo de paz”, bem como “preparar-se para a tempestade”. E ao fazer isso, Xi pede ao PCCh que continue a aderir “ao espírito de luta”, nos próximos cinco anos, que seriam “críticos” para a contínua construção de uma poderosa nação chinesa. Xi pede “uma maior capacidade para o exército vencer”; uma “maior proporção de novas forças de combate”; e a promoção do “treinamento de combate real para os militares”. Tudo se daria virtuosamente com a concentração de todos os poderes de Estado na figura de Xi.

A mitomania do PCCh é ainda mais necessária quando seu líder supremo precisa justificar libertar-se dos controles da direção coletiva. “Nosso partido tem se dedicado a alcançar a grandeza duradoura para a nação chinesa e se comprometeu com a nobre causa da paz e do desenvolvimento para a humanidade. Nossa responsabilidade é incomparável em importância, e nossa missão é gloriosa sem comparação. É imperativo que todos nós no Partido nunca esqueçamos nossa aspiração original e nossa missão fundadora”. Filosoficamente, era necessário estabelecer uma ponte entre a glória da China com a manutenção do poder inconteste da burocracia bonapartista chefiada por Xi. A ideia de evitar sucumbir como a União Soviética em 1991 foi tornada uma só com a transformação do PCCh segundo os desígnios de Xi, a maneira de contornar o risco de “ascensão e queda” de todo império. “Por meio de esforços meticulosos, o Partido encontrou uma segunda resposta para a questão de como escapar do ciclo histórico de ascensão e queda. A resposta é a autorreforma. Asseguramos que o Partido nunca mudará sua natureza, sua convicção, ou seu caráter”. Nem o retorno ao isolamento da era maoísta, nem a ocidentalização do capitalismo chinês, desejado por muitos adeptos dengistas: Xi quer impor a marca de um capitalismo em rápida ascensão que desafie certos nichos da hegemonia dos EUA, adotando um discurso de livre comércio e relações bilaterais mutuamente benéficas que melhore as posições da China no sistema capitalista de Estados. A autorreforma, indispensável para manter o PCCh de pé no poder, é a identificação de Xi com o próprio Estado. Não há lugar para dissidência.

Os grandes objetivos precisam de um grande adversário a fim de reunir consenso ao redor do poder unipessoal. A visão de mundo de Xi Jinping é de um mundo inquieto, cuja potência hegemônica trata desesperadamente de frear sua própria decadência relativa impedindo que a China participe da moldura de uma nova ordem global. Em seu discurso, a instabilidade na ordem mundial recebeu a ênfase de um político que quer alterar as escalas em favor da China. Estariam em curso no cenário internacional “mudanças drásticas, especialmente tentativas externas de chantagear, conter, bloquear e exercer a máxima pressão sobre a China”. Diz também o relatório que “As incertezas e fatores imprevisíveis estão aumentando. Devemos estar prontos para resistir a ventos fortes, águas agitadas e até mesmo tempestades perigosas”. Não poderia escapar a Xi Jinping a divulgação do primeiro documento de estratégia de segurança nacional do governo Joe Biden, dias antes da abertura do Congresso do PCCh. No documento, a China foi destacada como o principal rival estratégico dos Estados Unidos, abrigando “a intenção e, cada vez mais, a capacidade de remodelar a ordem internacional em favor de uma ordem que incline o campo de jogo global em seu benefício”. As tentativas de “conter, bloquear e exercer máxima pressão” sobre a China são o principal objetivo da administração Biden, em um nível superior ao exercido por Trump, como admite Edward Luce, do Financial Times. Basta observar o draconiano controle de exportação de alta tecnologia imposto pela Casa Branca, uma guerra econômica total contra a China com o bloqueio da venda de semicondutores fabricados com tecnologia norte-americana para uso em inteligência artificial, computação de alto desempenho e supercomputadores.

As palavras usadas no informe que balizou todo o Congresso respondem a esse cercamento do imperialismo sobre a burocracia chinesa. A análise dos termos é instrutiva: algumas palavras vêm sendo utilizados com maior frequência, de congresso a congresso. Uma dessas palavras é anquan (segurança). Ela aparece 91 vezes no documento, em comparação com 35 no relatório de despedida entregue por Hu Jintao, em 2012. Outro palavra que recebeu abuso de menções foi junshi (militar). Desta vez, foram 79 menções, enquanto em 1982, no primeiro congresso da era Deng Xiaoping, passou apenas quatro vezes pelo informe de abertura. A palavra douzheng (luta) aparece 22 vezes no relatório (“Mostramos um espírito de luta e uma firme determinação de nunca ceder ao poder coercitivo”, diz Xi, em uma clara menção ao Ocidente). Hu Jintao havia usado o douzheng apenas cinco vezes em 2012. Já a expressão zhengzhi tizhi gaige (reforma política estrutural), que no congresso de 1987 recebeu 12 menções, foi omitida, pela primeira vez em 35 anos. Após uma campanha anticorrupção, sem freios em uma década, o relatório mencionou fu (corrupção) 29 vezes, um recorde para os congressos posteriores à era Mao Zedong. A campanha anticorrupção, com efeito, foi saudada como exemplo único da virtude da autorreforma partidária. “A corrupção é um câncer para a vitalidade e a capacidade do Partido, e combater a corrupção é o tipo mais completo de autorreforma que existe. Enquanto as bases e condições para a corrupção ainda existirem, devemos continuar soando o alarme e nunca descansar, nem mesmo por um minuto, em nossa luta contra a corrupção”.

Sobre a corrida tecnológica, a ideia chave do governo chinês é o zixin (autoconfiança): apostar na tortuosa superação da dependência ocidental. Washington quer aumentar a dificuldade para as empresas chinesas obterem ou fabricarem microchips de computação avançados, desenvolver supercomputadores com aplicações militares, além de retardar seu progresso no ramo da inteligência artificial. Diante disso, o lema em Pequim é aproveitar as sanções e o bloqueio comercial de Washington para concentrar energia no salto tecnológico endógeno. Segundo Xi, a modernização chinesa está enraizada na China e o foco é a economia interna, a fim de aumentar a segurança das cadeias de valor e suprimento chinesas. O Congresso ratificou a mensagem oficial de que a China vai acelerar a criação de um novo padrão de desenvolvimento e buscar desenvolvimento de alta qualidade. “Devemos aplicar plena e fielmente a nova filosofia de desenvolvimento em todas as frentes, continuar as reformas para desenvolver a economia de mercado socialista, promover uma abertura de alto padrão e acelerar os esforços para fomentar um novo padrão de desenvolvimento que se concentre na economia doméstica e apresente uma interação positiva entre os fluxos econômicos nacionais e internacionais”, disse Xi Jinping.

A concentração no avanço tecnológico doméstico não implica desacoplamento com a economia global. O discurso oficial do PCCh busca deixar ao imperialismo norte-americano o ônus da guerra econômico-tecnológica que move. Tanto assim que a equipe econômica foi obrigada a esclarecer as dúvidas. Zhao Chenxin, vice-diretor da Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma, esclareceu em uma coletiva de imprensa à margem do 20º Congresso que “é errado pensar que, ao se concentrar na economia doméstica, a China reduzirá seus esforços de abertura ou mesmo se voltará para uma economia autossuficiente”. A impossibilidade da autossuficiência na realidade superior da economia mundial é agravada pelas difíceis circunstâncias da economia chinesa. Em outro plano, como assinala Kevin Rudd (https://www.ft.com/content/8576916d-2cf5-483f-bfe4-2238080a5c70), a preocupação do governo recai sobre a necessidade de uma “crescente internacionalização do renminbi” – parte de uma estratégia mais geral para reduzir a dependência do país dos mercados financeiros globais, que continuam a ser denominados pelo dólar americano. A China está atenta às sanções aplicadas contra a Rússia após a invasão da Ucrânia e ao que pode acontecer no futuro se houver uma ação militar chinesa sobre Taiwan.

Contrariando os analistas liberais que observam um suposto retrocesso da propriedade privada na China, Xi anunciou que o Partido Comunista adere à risca à continuidade da política de reforma e abertura de Deng Xiaoping, e que o desenvolvimento da República Popular, em sua visão, passa pelo acolhimento dos investimentos privados internos e externos. “Nos últimos anos, a China continuou a ampliar o acesso ao mercado e a encurtar a lista negativa para o investimento estrangeiro. Ela colocou em vigor leis e regulamentos, incluindo a Lei de Investimento Estrangeiro, para proteger os direitos e interesses legítimos dos investidores estrangeiros”, expôs o Xinhua. Michael Roberts, importante economista marxista que nutre ilusões na burocracia de Pequim, é obrigado a assinalar que a “prosperidade comum” foi apenas um reconhecimento de que o setor capitalista fomentado pelos líderes chineses (que ganham mutuamente com o grande capital) está tão fora de controle que ameaça a estabilidade do Partido Comunista, aduzindo o dado de que a parcela da riqueza pessoal dos bilionários chineses dobrou de 7% em 2019 para 15% do PIB em 2021. Segundo Roberts, se a desigualdade continuasse, “começaria a abrir cismas no PCCh e se deterioraria o apoio do partido entre a população. Xi quer evitar outro protesto como o da Praça Tiananmen em 1989, ocorrido após um enorme aumento da desigualdade e da inflação sob as reformas do mercado social de Deng”.

O aspecto militar (junshi) do Congresso foi um dos mais ressaltados. Segundo Xi, o Exército de Libertação Popular (ELP) precisa “se apressar com o treinamento de tropas, estratégias e a conquista de novos sistemas técnicos de dissuasão para se converter em um exército de nível mundial”. O alinhamento concertado previamente mostrou a ascendência de Xi sobre as Forças Armadas. Os principais militares da China juraram no Congresso estar em “alerta máximo e preparados para a guerra”, promessas menos simbólicas depois do estouro da conflagração militar na Ucrânia. O Ministro da Defesa, general Wei Fenghe, disse que a China estava encontrando “condições severas e graves de segurança nacional” e que era importante que os militares aderissem às diretrizes de Xi Jinping. “Os militares devem implementar o pensamento de Xi sobre como fortalecer o exército e melhorar sua capacidade de vencer. Os militares têm que manter um alto grau de vigilância, preparar-se sempre para a guerra e defender resolutamente a soberania, a segurança e os interesses de desenvolvimento do país”. Li Zuocheng, chefe do Departamento de Estado-Maior Conjunto da Comissão Militar Central, disse que os militares precisam apoiar o desenvolvimento da nação, incluindo o aumento da prontidão de combate e a melhoria do equipamento militar.

Os atritos entre China e EUA se incrementaram após a visita a Taiwan da porta-voz da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, em agosto. Pequim interpretou a viagem como endosso dos EUA à agenda pró-independência do Partido Democrático Progressista, e orquestrou uma represália com inéditos exercícios militares em torno da ilha. Xi disse que Pequim tentaria o melhor para trazer Taiwan de volta por meios pacíficos, mas não renunciaria ao uso da força se necessário. “Continuaremos a lutar pela reunificação pacífica com a maior sinceridade e o maior esforço, mas nunca prometemos renunciar ao uso da força, e nos reservamos a opção de tomar todas as medidas necessárias. As rodas da história estão rolando em direção à reunificação da China e ao rejuvenescimento da nação chinesa. A reunificação completa de nosso país deve ser realizada, e ela pode, sem dúvida, ser realizada!”. Detalhe: buscou separar as “pequenas forças separatistas e a intervenção estrangeira” do grosso da população de Taiwan, com o fim de estancar a animosidade cada vez maior com os taiwaneses. Pequim e Washington também contendem sobre o Mar do Sul da China, cuja soberania é contestada entre Pequim e seus vizinhos do sudeste asiático, e sobre o Mar da China Oriental, que também é reivindicado pelo Japão.

Em todos os âmbitos, a segurança nacional ganha preponderância sobre o mero enriquecimento e crescimento econômico, lema das últimas administrações. Essa é a nova marca do governo Xi, e seu papel é mais do que um ponto de junção. Mao ajudou o povo chinês a “se levantar” após um século de humilhação por potências estrangeiras. Deng colocou a China em um caminho de “enriquecimento”, depois de séculos de pobreza. Agora, Xi está ajudando a China a “se tornar forte”. Mas os desafios são enormes.

Águas turbulentas

Michael Roberts, em suas observações sobre o Congresso, demonstra certa simpatia (ainda que crítica) ao caminho adotado por Xi. Explicita essa opinião, por exemplo, na discussão da política de prosperidade comum, que seria um índice da política de maior controle estatal sobre o setor privado. Ou, nos termos do problema imobiliário, que envolve políticas diferenciais, mas complementares, entre o governo central e os governos locais (“Pequim queria casas e as autoridades locais queriam receita”). Mais explícita fica essa opinião quando sugere um itinerário próprio a Xi, sustentando que o regime bonapartista chinês “não deveria” buscar resolver suas “pequenas crises” com a liberalização da economia, e sim reverter a expansão do setor privado e introduzir novos planos de investimento estatal, que sempre foram uma base de investimento mais estável que o setor privado. A confiança excessiva nos mecanismos de controle estatal da economia parece advir dessa mesma visão. “O governo pode ordenar aos quatro grandes bancos que troquem os empréstimos a inadimplentes por participações acionárias e esquecê-los. Ele pode dizer ao banco central, o Banco Popular da China, para fazer o que for preciso. Pode dizer aos gerentes de ativos estatais e aos fundos de pensão para comprar ações e títulos para sustentar os preços e para financiar empresas. Pode dizer às empresas de ativos do estado para comprarem dívidas ruins de bancos comerciais. Portanto, uma crise financeira está excluída porque o Estado controla o sistema bancário”.

Entretanto, a confiança no regime bonapartista de Xi é injustificada, sendo ela parte componente dos enormes desequilíbrios que a ordem capitalista impõe à classe trabalhadora no mundo inteiro. Internamente, como mostrei nesse estudo (https://www.esquerdadiario.com.br/Qual-o-real-significado-da-politica-de-prosperidade-comum-na-China-de-Xi-Jinping), a política de prosperidade comum foi lançada como um complemento à adesão às reformas liberalizantes, não como instrumento de contenção do peso do setor privado na economia (mais de 60% do PIB, e 80% do emprego urbano), menos ainda um ataque à propriedade privada em geral. O Estado capitalista chinês promulgou a política de prosperidade comum junto com inúmeros tranquilizantes por parte da burocracia do PCCh ao grande capital, frisando a segurança do investimento privado doméstico e estrangeiro, que seguirão gozando do melhor clima para negócios, em território chinês.

Esquematicamente, são quatro os objetivos da política de “prosperidade comum”: evitar explosões sociais que minem a estabilidade política num momento delicado do conflito entre Pequim e Washington; expandir a capacidade de consumo da nova classe média e o potencial mercado interno chinês; dividir as fileiras operárias, registrando determinados direitos salariais e laborais para um setor em detrimento dos demais; disciplinar determinados grandes monopólios aos desígnios políticos do governo central. A perseguição a certos magnatas se faz para assegurar a reciprocidade dos favores entre o grande capital e o PCCh, com a aquiescência daquele sobre o poder inconteste deste. A preocupação com a desigualdade se faz em consonância com o capital, mas em especial com as posições privilegiadas do PCCh. Como explica o periódico britânico The Economist: “O PCCh esclareceu aquilo que a ‘prosperidade comum’ não implica: não significa que todos acabarão gozando de igual prosperidade. Os empresários que criam sua própria riqueza, ‘trabalham duro com integridade e têm a coragem de iniciar seus próprios negócios’ devem ser encorajados. Nem a virada igualitária será abrupta. Deve ser perseguida ‘passo a passo’ de forma ‘gradual’, reiterou a Comissão este mês.” Estamos tratando de ajustes no interior das reformas capitalistas na economia chinesa, não em detrimento dela. O jornal oficialista Global Times, que responde às diretrizes estritas de Pequim, assegurou o capital estrangeiro que as medidas não vão acarretar qualquer prejuízo a seus negócios. O próprio documento do Conselho de Estado de 2021 afirma que “o ambiente para os negócios empresariais será melhorado ainda mais, a reforma administrativa será promovida e será construído um ambiente empresarial orientado para o mercado e baseado na lei. Diferentes grupos serão encorajados a iniciar negócios, e os sistemas e plataformas de serviços empresariais serão atualizados”.

Já os mecanismos estatais de controle econômico, embora assegurem ao PCCh uma margem maior de ação frente ao modelo de administração capitalista ocidental, não estão blindados de crises. O descontrole das finanças na crise de 2015 é um lembrete muito vivo na cabeça da própria burocracia. A economia chinesa não é uma ilha cercada pelo oceano da crise capitalista: é parte integrante da ordem capitalista global, vendo-se afetada pelos choques da pandemia e da guerra. A desaceleração estrutural do país levou o Banco Mundial a prever que este ano a taxa de crescimento do PIB da China ficará atrás do resto da Ásia pela primeira vez desde 1990. Essa é a provável razão para o atraso na liberação dos dados do terceiro trimestre do PIB. Uma taxa de crescimento de 3% anual está se convertendo o novo normal. Como assegura o mesmo Roberts, “As exportações caíram em termos de dólar em 1% em 2020, e depois subiram acentuadamente no ano da recuperação global de 2021 em 21%. Mas nos primeiros oito meses deste ano (2022), as exportações caíram 7,1% em relação ao ano anterior. Como resultado, a produção industrial subiu apenas 3,6% e as vendas no varejo subiram apenas 0,5%. O investimento em ativos fixos permaneceu mais forte, quase 6% em taxas anuais, com base no aumento do investimento em infraestrutura (estradas, ferrovias, pontes e serviços públicos)”. Ao não aderir aos argumentos keynesianos simplórios dos economistas ocidentais, é necessário também entender o alto impacto social da desaceleração chinesa nos marcos da crise capitalista global.

Assim, não se trata de determinar s eu investimento estatal vai para áreas produtivas ou não; isso é um produto subordinado da orientação pró-capitalista central. Xi Jinping já começou a incrementar as parcerias com o capital privado para desenvolver tecnologia endógena nos ramos dos semicondutores, inteligência artificial e robótica. Milhares de novas start-ups privadas de alta tecnologia estão reformulando a paisagem econômica da China, trazendo suas empresas e a força de trabalho para o interior da China. É equivocado considerar homogeneamente o “capital privado” chinês, sem distinguir os ramos de investimento em que atua. O segmento de alta tecnologia está sendo amplamente beneficiado pelo Estado, e o setor industrial-manufatureiro recebeu novas atribuições ligadas não apenas à montagem de componentes de baixo valor agregado orientados à exportação, mas à produção de bens de capital que sirvam como substrato dessa cadeia de valor. O disciplinamento sobre o segmento do e-commerce (Alibaba, Tencent, Pinduoduo, Meituan, JD.com, etc.) busca reorientar o parque econômico chinês, e retirar de certos magnatas a tão sonhada primazia sobre o setor financeiro, de forte controle estatal.

Tão certo quanto o delineamento de uma maior disciplina interna sobre Jack Ma e o capital digital-especulativo é o plano de favorecimento do segmento capitalista tecnológico-industrial na nova fase do governo Xi. Roberts não fará boa aposta em confiar na diminuição do peso do setor privado dentro do Estado capitalista chinês.

A oposição do verdadeiro inimigo de Xi Jinping e da burocracia do PCCh, a classe trabalahdora chinesa, é mais decisiva nesse desconcerto global. Contra o setor capitalista das empresas de e-commerce, a luta de classes foi muito eficaz em acender o alerta em Pequim. O modelo de trabalho 996 (das nova da manhã às nove da noite, seis dias por semana), difundido por Jack Ma, já causava a ira de trabalhadores do setor tecnológico, e de uma juventude que se opõe ferrenhamente à ideologia neoliberal da Alibaba e das gigantes big techs. As greves e conflitos trabalhistas se dão em algumas das províncias mais ricas, em que a indústria e a construção civil são fortes: dos 1.082 protestos operários registrados pelo China Labour Bulletin (CLB) desde julho de 2020, 120 (11%) ocorreram na província de Henan, seguida por Guangdong com 95 (8,6%) e Shandong (7%). A novidade é que as províncias do interior, como Henan, Xi’an e Chongqing, passam a ter maior número de conflitos operários, na medida em que se tornam bastiões do impulso do parque tecnológico chinês. Segundo o mapa das greves operárias do CLB, somente nos últimos três meses a província de Xi’an viu 51 greves, seguida de Henan e Hunan com 15 conflitos operários cada uma. Esses conflitos se espalham pelo país mesmo durante a intensificação do aparato de segurança e repressão como preparação para o 20º Congresso. Os professores de inúmeras províncias estão em greve por aumentos salariais. Os atrasos no pagamento de salários nas fábricas têxteis de Cantão, ou na construção civil em Shandong e Sichuan, são móbeis para as greves incessantes nesses segmentos.

O novo governo não conta com a “paz social” mesmo com o peso da burocracia sindical da Federação Nacional dos Sindicatos da China. A colaboração política parece estar em questão também. Num exemplo de protesto público dirigido contra Xi Jinping, um homem identificado como Peng Lifa, que manteve uma presença dissidente nas redes sociais, pendurou durante o Congresso consignas contrárias ao secretário-geral e a sua política de Covid-zero, em um viaduto de Pequim. As faixas foram rapidamente retiradas, Peng desapareceu sob custódia e a censura online entrou em ação. Mas o incidente mostra o mal-estar interno inseparável de um regime que recrudesce a dureza de sua política.

A tendência política repressiva, assertiva e beligerante da China, à luz da competição com o agressivo imperialismo norte-americano, aumentará no terceiro mandato de Xi. Tanto mais importante elevar a voz do marxismo entre os trabalhadores e a intelectualidade, para que o combate às campanhas imperialistas seja acompanhado pela luta contra a política bonapartista do Partido Comunista Chinês.


veja todos os artigos desta edição
CATEGORÍAS

[Xi Jinping]   /   [Guerra comercial EUA x China]   /   [China]   /   [Internacional]

André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
Comentários