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Quando a exploração capitalista fragmenta, divide e isola, submetendo a humanidade a um “salve-se quem puder”, qual o valor adquirido pela amizade?

Andrea D’Atri@andreadatri

quinta-feira 20 de maio de 2021 | Edição do dia

Há quarenta anos, em uma entrevista para uma revista com público jovem e gay, o filósofo Michel Foucault explicou como entendia o potencial subversivo da homossexualidade. Ele argumentou que é necessário deixar de entender a questão nos termos da identidade ou do desejo, mas sim questionar que tipos de relação podem ser criadas a partir dessa experiência.

Foucault ressaltou que, a partir desse ângulo, era a amizade que estava em jogo. Apesar da discriminação contra a homossexualidade, o ato sexual entre dois homens não era o que causava a “inquietação” social. “Os dois ficam cara a cara, sem frases prontas, sem nenhum apoio que os tranquilize sobre a atração que sentem um pelo outro. Eles têm que, do nada, criar uma relação completamente nova de amizade, somando todos os elementos que os fazem se amar.”

Para o filósofo francês, o que era verdadeiramente perturbador para a sociedade não era a imagem de dois corpos masculinos entrelaçados pelo desejo, mas sim a possibilidade de que entre eles surgisse ternura, afeto, companheirismo, camaradagem… Ou seja, as condições para estabelecer um vínculo. Voltaremos em breve a esse ponto.

Instantâneo e descartável

Nas últimas décadas alguns autores vêm alertando sobre a fluidez e precariedade dos vínculos afetivos, em consonância com a falta de segurança e flexibilidade do mundo de trabalho nos marcos do neoliberalismo. Além disso, numa sociedade capitalista como a atual, a felicidade está associada ao exercício de uma "psicologia positiva” centrada na subjetividade: a preocupação pelo que eu sinto, o que me afeta e me estressa, o que me causa angústia, o que eu desejo, meu crescimento, meu desenvolvimento, minha satisfação, meu bem-estar.

Neste mundo, como alertam diversos estudiosos das relações humanas, o outro é somente um obstáculo ou um meio de alcançar um objetivo: os cálculos de custo/benefício que se aplicam às decisões de consumo passam a ser aplicadas às relações humanas. Os outros são tratados como ferramentas que servem a um propósito, e são logo descartados se não cumprem sua função: se não me ajudar a crescer a pessoa se torna automaticamente um impedimento, se não satisfaz minhas vontades eu não deveria perder meu tempo, se não me divertir é um aborrecimento. No mercado das relações humanas as possibilidades são infinitas; por que atravessar uma dificuldade, suportar uma reclamação ou aguentar uma discussão em uma relação quando a oferta é abundante?

"Como um macarrão instantâneo, se espera que os relacionamentos não nos tragam nenhum trabalho, que não se precise investir nem tempo nem atenção, que sejam instantâneas. Tal qual caixas de papelão, se espera que possam ser jogadas fora facilmente".

A massificação do acesso a redes sociais, embora possibilite vermos e ouvirmos uns aos outros a milhares de quilômetros de distância, entrar em contato com pessoas que tomaram rumos diferentes de formas que antes eram impensáveis, também desvalorizou o conceito de amizade. Contatos, seguidores e amigos tornaram-se sinônimos.

A amizade já vinha perdendo seu valor há um certo tempo para o amor romântico - especialmente entre mulheres heterossexuais, já que a consolidação de um casal se associa a uma valorização e aceitação social da jovem adulta. E mesmo quando o amor romântico passa a ser questionado a amizade não assume sua devida relevância em nossa sociedade, onde os valores impostos pelo regime social de exploração são os do individualismo, da competitividade, da auto-satisfação e do “salve-se quem puder”.

Uma relação indefinida e indefinível

Voltando às reflexões de Michel Foucault, por que a amizade, entendida como uma aliança, gera uma "inquietação" social? Fundamentalmente porque é uma “relação indefinida”, segundo ele. Desta definição podemos tirar muitas conclusões, indo além, inclusive, das reflexões de Foucault sobre a homossexualidade. A amizade não obedece a uma ordem institucional, nem à conveniência, nem à otimização de recursos, nem ao utilitarismo e nem ao alcance de objetivos pragmáticos.

A amizade é uma das poucas formas de relações interpessoais que não está sujeita aos deveres e obrigações ditados pela lei. Em nenhum Estado existe a institucionalização da amizade como existe a do casamento (heterossexual ou igualitário), da maternidade/paternidade (por meio da guarda compartilhada ou exercida apenas por um progenitor).

“Na sociedade de classes, onde uma minoria exerce o poder através do Estado e suas instituições de dominação sobre a imensa maioria, as alianças dos oprimidos sempre possuem a capacidade de gerar desconforto nos opressores. ”

Durante o ano da pandemia cresceram os casos de ansiedade, angústia e estresse. Um fator fundamental para combater essa situação são os vínculos afetivos, e ainda que estes também tenham sido afetados pelas restrições sociais impostas para a prevenção de contágios, ainda vale a pena apostar em criar tais vínculos. Eles não possuem formas predeterminadas, e com nossas subjetividades “trabalhando” juntas (o que inclui momentos de lazer em comum, mas também questionamentos profundos) permitem um desenvolvimento crítico da individualidade e da criatividade. Estes vínculos permanecem, apesar das dificuldades.

Nestas relações, as regras e os lucros não têm vez, e, portanto, são onde podemos encontrar nossa verdadeira força, nossas verdadeiras vontades e apoios sinceros e altruístas, para que possamos juntos pensar e lutar por um mundo onde não exista mais o ódio que hoje o envenena.




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