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Análise | O que extrair das eleições para a luta contra Bolsonaro?

A experiência das alianças de Lula com a direita e os empresários passou pela prova das próprias eleições. E terminaram por fortalecer o inimigo bolsonarista.

André Barbieri São Paulo | @AcierAndy

segunda-feira 3 de outubro de 2022 | 19:45

As eleições do domingo terminaram, dando um triunfo a Lula sobre Bolsonaro, mas levando o pleito ao segundo turno. Venceu o 1º turno com uma vantagem de 5 milhões de votos, na proporção de 48,4% contra 43,2%.

Bolsonaro conseguiu mais de 51 milhões de votos e entrará no segundo turno com uma margem muito maior do que a esperada. Também melhorou sua posição no Congresso e seus aliados ganharam vários cargos para governador (Claudio Castro no Rio de Janeiro e Romeu Zema em Minas Gerais se reelegeram; Tarcísio Freitas e Onyx Lorenzoni lideram o 2º turno em São Paulo e Rio Grande do Sul).

Esse reacionarismo bolsonarista se recalibra, e vai buscar galgar uma nova posição, a partir do Congresso e dos governos estaduais, para atacar os trabalhadores, as mulheres, os negros e os LGBTs. São inimigos jurados que se encastelam dentro do novo regime político em formação. Isto confirma, caso houvesse dúvidas, que o bolsonarismo não é um fenômeno passageiro na política brasileira. O cenário é de um país muito mais à direita do que se esperava.

Lula celebrou seu resultado no primeiro turno dizendo que "vai ganhar as eleições, e que isso é apenas uma prorrogação". O tom foi macambúzio e sem entusiasmo. Foi uma vitória mais magra do que se considerava nas pesquisas. A preparação do 2º turno virá com um bolsonarismo encorajado, e com uma política petista que ajudou a criar um clima mais à direita no país.

Um país mais à direita

Com efeito, para além de um movimento de rua, o bolsonarismo se mostrou uma tendência consistente na superestrutura política. Absorveu a base social dos velhos PSDB e MDB, legendas enfraquecidas ou mesmo liquidadas, no caso do tucanato. O PSDB foi aniquilado em SP pelo bolsonarismo nos interiores: a vitória de Tarcísio de Freitas foi um símbolo desse desenlace. Ibaneis Rocha (DF), Cláudio Castro (RJ) e Ratinho Jr. (PR) foram governadores bolsonaristas que já venceram no primeiro turno.

O bolsonarismo obteve resultados importantes no Congresso. Marcos Pontes, ex-ministro da Ciência e Tecnologia do governo Bolsonaro, foi eleito senador por São Paulo, juntando-se a outros bolsonaristas que tiveram êxito na corrida. Também foram eleitos o ex-ministro da Justiça Sergio Moro, pelo Paraná; a ex-ministra da Agricultura, Tereza Cristina, pelo Mato Grosso do Sul; e a ex-ministra Damares Alves, no Distrito Federal. O vice-presidente Hamilton Mourão venceu no Rio Grande do Sul. Ao todo, com as seis novas cadeiras conquistadas no Senado, o PL de Bolsonaro é o partido com maior crescimento de bancada neste ano, com 13 assentos; pode perder o posto de primeira bancada caso se efetive a fusão do União Brasil com o PP (o novo partido chegaria a 16 senadores). O PT deve manter a quinta maior bancada do Senado, passando de sete para nove senadores. O MDB cai de 13 para 10 senadores, e o grande perdedor é o PSDB, que fica com 4 senadores. O movimento nessa câmara de escravistas é o mesmo a nível nacional: a extrema direita bolsonarista absorve a base social da velha direita tradicional do MDB e do PSDB.

Na Câmara dos Deputados, o PL de Jair Bolsonaro ganhou ao menos 23 deputados, chegando a 99, e se tornou a maior bancada eleita na Câmara nos últimos 24 anos, desde que o antigo PFL —que daria origem ao Democratas, hoje parte da União Brasil— fez 106 parlamentares na reeleição do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), em 1998. O PP do presidente da Câmara, Arthur Lira, perde deputados em benefício do PL.O PT também elevou sua bancada, dos atuais 56 para 76. A federação formada por PT, PV e PC do B vem a seguir, com 80 deputados ao todo, 12 a mais do que a bancada atual. A federação composta pelo PSOL (que se dissolveu na campanha Lula-Alckmin) e Rede Sustentabilidade (de Marina Silva), também viu sua força aumentar, mas no marco do deslocamento à direita do PSOL se unindo a um partido burguês e integrando-se mais ao regime; assim, a federação elegeu quatro deputados a mais do que tem hoje e chegou a 14, com Boulos sendo o segundo deputado federal mais votado no país.

Existe, portanto, um fortalecimento da direita em todos os quadrantes do Legislativo, que trará maiores instabilidades a qualquer tipo de governo, segundo oThe Economist. Como diz Marcelo Godoy, mesmo se a chapa Lula-Alckmin vencer, seu governo terá de conviver com um Congresso ainda mais bolsonarista do que o eleito quando o chefe da extrema direita se tornou presidente em 2018. O próprio jornal das finanças britânicas, Financial Times, diz que a bancada do boi, da bíblia e da bala de Bolsonaro veio para ficar.

Essa relação de forças à direita vai requentar ainda mais a atmosfera dos gestos ao conservadorismo. Lula foi pronto em dizer que "vai buscar seus novos aliados e angariar mais apoios". Esses apoios buscados pelo PT serão aqueles que sustentaram todo o giro à direita no Brasil desde 2016. O regime político vai conquistando o que queria, navegando a candidatura de Lula para o "hemisfério direita". Analistas como Gerson Camarotti ou Otávio Guedes afirmam que "a eleição de 2018 ainda não acabou, e que Lula deve entender o sinal das urnas". Não é preciso saber português para entender que a gesticulação da imprensa é um sinal para deslocar ainda mais a política programática do PT à direita, em direção ao mal chamado "centro". Para Lula, a articulação vai muito além de Simone Tebet (4,2% dos votos) e Ciro Gomes (3%): terá de lidar com governadores de direita, e prefeitos que em suas cidades apostaram em impulsionar o bolsonarismo.

Não é demasiado lembrar que a candidatura de Lula e do PT foi ressuscitada do ostracismo pela luva do próprio regime político que havia encarcerado Lula em 2018, com o objetivo de relegitimar/restaurar a figura combalida do sistema político brasileiro. Para os efeitos dessa operação, o PT introjetou em seu seio o PSDB clássico, fundindo em seu interior a sigla com quem havia polarizado a política durante o transcurso do velho Regime de 1988. Nessa condição, diante da instabilidade permanente representada por Bolsonaro, Lula é ainda mais sensível aos anseios dos fatores reais de poder, que exigem do petista o que ele esteve sempre disposto a dar: a garantia de governabilidade e a não reversão das reformas que os capitalistas conquistaram no ciclo 2016-2022. Agora vão querer compromissos ainda mais duros contra as necessidades mais mais sentidas pela classe trabalhadora e pelo povo pobre, e nomes que representem isso dentro do governo.

No trâmite presidencial, é ponto pacífico que o erro na mensuração se deu nos votos de Bolsonaro, não nos de Lula. Esses resultados explicam o quadro dos Estados. Os principais dados das eleições foram os erros nas pesquisas em São Paulo e Minas Gerais. Em São Paulo, as enquetes apontavam um triunfo de Lula sobre Bolsonaro (48% a 39%): na prática, Bolsonaro ficou 7% à frente (47,71% a 40,89%), com exceção da capital paulista, em que Lula venceu por quase 10% de diferença. O interior paulista esteve nas mãos do bolsonarismo, que engolfou definitivamente o PSDB (o tucanato teve 6,4 milhões de votos para governador em SP em 2018; em 2022, ficou com 3,8 milhões). Em Minas Gerais, Lula ficou à frente por menos de 5% (48,29% a 43,6%), quando as pesquisas apontavam uma proporção de 47% a 33% em favor do petista. No Rio de Janeiro a diferença foi muito maior: tinha-se, em favor de Lula, 46% a 42% (Ipec) e 42% a 37% (Datafolha). Feita a contabilidade real, o placar foi de 51,09% a 40,68% para Bolsonaro.

Nota à parte é que o resultado no interior de SP, justamente o “bastião” de Alckmin, mostra como essas alianças sequer deram força eleitoral à chapa de Lula, e só servem para marcar um compromisso do PT com os interesses burgueses mais antipopulares, e desmoralizar sua própria base social.

Em seu discurso, o próprio Bolsonaro anotou as dificuldades que terá de superar. Reconheceu que sua campanha "não atingiu a porção mais importante da sociedade", que "há o sentimento de que a economia ficou pior", se referindo a que a população pobre identifica no governo a responsabilidade pela crise, a fome e a miséria. Como diz o cientista político Alberto de Almeida, a figura de Bolsonaro mostrou certas rachaduras na fortaleza geral da direita. “Um presidente que disputa a reeleição leva tradicionalmente grande vantagem sobre seus adversários. Além de ter ficado atrás de Lula, ele ficou próximo de ser derrotado em primeiro turno. Sua força tem a ver com um percentual mais elevado que o previsto pelas pesquisas, e pela eleição de vários candidatos bolsonaristas, muitos deles ex-ministros com votações expressivas”. Lula teve 25 milhões de votos a mais que Haddad em 2018. Bolsonaro ganhou 1,7 milhão de votos a mais que no 1º turno de 2018, mas isso representa uma queda de 2,83% diante dos resultados que obteve naquele então. Nos setores mais pobres da população, Bolsonaro foi derrotado. Bolsonaro foi derrotado de conjunto no Nordeste. Bolsonaro e Tarcísio foram derrotados na cidade mais populosa e economicamente mais importante do país, São Paulo. Em toda SP, Eduardo Bolsonaro perdeu 1 milhão de votos, e ficou atrás de Boulos, deputado federal mais votado em SP.

Isso não altera o panorama de um país que se mostrou mais direitizado e com polarização social. Já que, no Brasil partido ao meio (para usar os termos do bom Ítalo Calvino), quanto mais jogo com a direita e os patrões, mais se alimenta o ambiente intoxicante do bolsonarismo.

Aonde levaram as alianças com direita e patrões na Frente Amplíssima?

Isso é o que a política do PT provou fazer, na realidade. Nem sequer no terreno eleitoral tiveram êxito na falsa ideia de que para ganhar da extrema direita, havia que ampliar suas alianças à grande burguesia.

A política agora é seguir a colheita na seara da direita, e dizer que não se pode vencer Bolsonaro sem alargar a já oceânica Frente Ampla. A imprensa passa a fazer propaganda de que o "brasileiro é conservador". O objetivo é condicionar ainda mais Lula, que já traz uma constelação de direitistas consigo. Merval Pereira ecoa uma das máximas de Pablo Iglesias: não seria possível "governar sem certo consenso de uma parcela da direita". O tom é parecido ao usado por analistas liberais no Chile, ao atribuírem a derrota fragorosa da nova constituição defendida por Gabriel Boric a um suposto "conservadorismo inato" do povo chileno.

A verdade, entretanto, é que o Chile provou que a conciliação de classes sempre fortalece a direita, como viemos dizendo. Isso ficou claro com a política de Boric, que assumiu a agenda da direita, enquanto a Convenção Constituinte, nem livre nem soberana, aceitou passivamente a tutela de todos os poderes constituídos herdados do pinochetismo, como explicamos aqui.

No Brasil, essa lição chilena transparece com os resultados do 1º turno. O giro à direita de Lula e do PT, desde sua aliança com Alckmin até a colheita fértil de adeptos no PSDB "clássico", entre FHC, Henrique Meirelles, seus funcionários neoliberais, chegando até o farto grupo de empresários e banqueiros que respondem à Fiesp e à Febraban: toda essa conciliação com a direita só fortaleceu a política de recuperação bolsonarista. Muitos na esquerda – em especial no PSOL, que se dissolveu na campanha de Lula-Alckmin – diziam ser "necessário ter responsabilidade" e unir-se com as figuras que foram responsáveis por termos chegado até essa catástrofe. Essa política só fortaleceu o clima direitista que permitiu o resultado favorável a Bolsonaro, que não só evitou ser derrotado no 1º turno, como garantiu uma bancada de apoio no legislativo e nos Estados.

As eleições são a prova de que a política de "Frente Ampla" só pode fortalecer a direita. E agora Lula quer que sigamos no mesmo calvário. O PT está no Brasil reeditando a política de conciliação de classes que nos trouxe até aqui, dando fôlego aos piores inimigos dos trabalhadores. Essa reoxigenação da direita pela política do PT, tendo-a em seu próprio seio ao abrigar a velha direita tradicional, beneficiará os pilares que sustentaram o bolsonarismo nos últimos anos. Como argumentam Daniel Feldmann e Fabio dos Santos, no livro “Brasil autofágico. Aceleração e contenção entre Bolsonaro e Lula”, as bases de apoio do bolsonarismo se foram gestando nos meandros das políticas de Estado do lulismo em particular, e do PT em geral, que ao tratar de conter a crise com conciliação, acabou por acelerá-la.

A resposta para a resistência eleitoral do bolsonarismo passa pelo inverso da política de Lula e do PT. Passa por uma política decidida de independência de classes, pela unificação do conjunto dos trabalhadores contra o conjunto do empresariado, e por um programa que ataque os pilares das reformas econômicas ultraliberais que Lula-Alckmin prometeram preservar.

Quem disse que enfrentar o bolsonarismo exige "apaziguar" os capitalistas e "trazê-los" para o lado dos trabalhadores? Pelo contrário, o ponto “zero” de qualquer programa que enfrente seriamente o bolsonarismo precisa começar pela revogação de todas as reformas que massacram os trabalhadores todos os dias, em primeiro lugar a reforma trabalhista e a reforma da previdência, mas também contra a lei da terceirização irrestrita, do teto de gastos, e de todas as privatizações. Assim também, é decisivo batalhar pela redução da jornada de trabalho, sem redução salarial, com 30 horas semanais para enfrentar a precarização, o desemprego, e a miséria, na perspectiva da divisão das horas de trabalho entre empregados e desempregados, e da sua unificação. As burocracias sindicais são uma trava para essa batalha: é fundamental a exigência às direções majoritárias do movimento de massas, em primeiro lugar da CUT, CTB e UNE, a impulsionar um plano de luta sério contra Bolsonaro pela revogação de todas as contrarreformas e ataques, para convocar à luta pelas demandas econômicas da classe trabalhadora contra a carestia de vida e a fome.

A política do PT desmoraliza e enfraquece o combate à extrema direita, e é também responsável pelo fortalecimento do inimigo bolsonarista. É necessário fortalecer a mobilização e organização independente dos trabalhadores, dos negros, das mulheres, da comunidade LGBT para conectar os anseios da população pobre e trabalhadora ao enfrentamento sério com a nefasta extrema direita bolsonarista.




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