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MaréProfessora designada na rede estadual de MG

sexta-feira 5 de março de 2021 | Edição do dia

Ela sabe que todos os dias paga a conta pela crise por, além de ser trabalhadora da saúde, ser mulher, negra, não reconhecida pelo Estado como efetiva e também pertencer ao grupo de risco. Seu medo é que seus filhos passem pelo que passaram os de outras colegas: virarem órfãos da Covid. Mas agora, que está vacinada, trabalha ininterruptamente por horas sucessivas vezes para se liberar e visitar a família em outra cidade. Enquanto o país atinge recorde atrás de recorde de mortes, enquanto Minas Gerais e Belo Horizonte estão no pior momento da pandemia, ela passa dezenas de horas sem dormir, sem descansar, em contato com o coronavírus.

Os 470 quilômetros que a separam da mãe e às vezes também dos filhos são todos os meses trilhados em um caminho cotidianamente repetido... entre um hospital e outro. Ela sabe que os 19 quilômetros diários, feitos às pressas e sob extremo cansaço, do plantão anterior para o seguinte, não são justos. Por que ela precisa de dois empregos? Aliás, por que além dos dois empregos e o trabalho doméstico e cuidado dos filhos, ela ainda batalha contra o próprio corpo e mente para se concentrar nos estudos e conseguir realizar o sonho de passar em um concurso público? Ela já deveria ser efetiva, trabalhar em apenas um hospital – o público, da rede Fhemig – com direitos iguais aos de qualquer trabalhador que trabalha como ela, no mínimo.

Mínimo, porque nem isso a foi assegurado. Romeu Zema, como “bom” patrão que é aprofundou a divisão entre os trabalhadores (aplicada também nos governos anteriores) precarizando ainda mais as condições de uns, para assim quem sabe poder dizer que os demais estão até bem, mesmo que não tenham um aumento salarial há mais de década. Agora os auxílios, que pela incorporação dos quais ao salário os trabalhadores da Fhemig seguem batalhando, estão sendo cortados. Para alguns isso significou mil reais a menos!

“Ajuda de custo”, dizem. A que nível de humilhação chegam trabalhadoras que dão suas vidas nos hospitais e dependem de ajudas de custo porque não têm salário que cubra suas despesas? Não tem fundo esse poço: em um hospital – o privado – ela recebe um adicional de R$400 para acompanhar o paciente com Covid desde o momento em que entra no hospital até o momento que sai, vivo ou não. Esse valor sequer paga um teste seguro para ela e seus filhos, não paga remédios para ajudar na recuperação caso ela se contamine. Sequer paga um acompanhamento psicológico profissional para quem convive com a morte agonizante pelo sufocamento invisível. Na Fhemig não a pagam nada por esse trabalho.

Ela me chama de Eliza. “Tô chateada, Eliza. Esse serviço nosso aqui é desumano, tá adoecendo, tá matando a gente. Outro dia a colega da Unimed se matou, Eliza, com filha pequena pra criar.”. Para mim, sempre um incremento de ódio de classe. “Tô chateada, Eliza. A Xuxa do outro hospital morreu de Covid, eu queria ter convivido mais com ela, sabe? Eu me sinto culpada de não ter ido ver ela antes.”. Mas sempre nos lembramos, juntas, dos responsáveis por essas mortes.

Bolsonaro outro dia disse “querem me culpar pelas 200 e tantas mil mortes”. Queremos e culpamos, a Bolsonaro, Mourão, Pazuello, mas também os golpistas do Câmara, do Senado, do STF, os militares, governadores e prefeitos. Eles são responsáveis, não podemos esquecer. E ela não vai esquecer, porque não teve equipamentos de proteção individual para trabalhar, seus colegas não tiveram. “Uma N95 é pra usar por três dias”, disse a responsável por dividir as migalhas enviadas pelos governos. “Quem estiver com Covid, mas for assintomático, que trabalhe normalmente” dizia o comunicado feito pela direção da Fhemig – os burocratas do Zema – e colado nos corredores dos hospitais.

Ela, mesmo vacinada, não se acostumou com o medo da morte. “Não posso pedir licença. Porque não é remunerada, a gente não recebe a ajuda de custo nos dias em que não trabalha. E também porque eu sou contratada e não efetiva, eu tenho ainda menos valor pra eles. Mesmo eu sendo hipertensa, obesa e negra (eu sei que os negros tão morrendo bem mais), eu tenho que ficar aqui, né, fazer o quê?”.

Fazer o quê, hein? Eu me pergunto todos os dias.

Há quatro anos, em um oito de março literalmente tempestuoso, eu decidi que não me furtaria de, todos os dias, construir uma resposta para essa pergunta. Que “sorte” eu tenho de não estar sozinha nessa tarefa, e menos ainda de ter que começá-la do zero.

Eu soube, nessa época, que já houve um país governado pelos trabalhadores, que lá haviam creches, hospitais, escolas, lavanderias e restaurantes públicos, que homens e mulheres empenhados nessas funções o faziam como seu trabalho, plenamente remunerado, e podiam acessar todos esses serviços de forma gratuita. Nesse país não fazia sentido que alguns recebessem menos que os outros cumprindo as mesmas funções. Não fazia sentido que os que recebessem menos fossem marcados na pele e na história por um passado de escravidão. Não fazia sentido que as mulheres fossem privadas do seu papel político, público, e ficassem presas a fórmulas que só fazem nos desvalorizar. Não fazia sentido que quem salve vidas fosse empurrado à morte.

Esse país atravessou inúmeras dificuldades, a maior delas se deu pelo fato de que em outros países a situação não tivesse avançado tanto. Mas nos deixou muitas respostas sobre “fazer o quê?” e muitas outras nos cabe responder hoje mais do que nunca, as atuais gerações mais do que quaisquer outras. Esse país só nos deixou tamanho legado porque, em um 8 de março (de 1917, para ser mais específica), em meio a uma guerra mundial, as mulheres trabalhadoras se levantaram, insubordinadas contra a imposição da morte e da miséria para si e sua classe.

Eu quero dizê-la que o que temos que fazer é nos insubordinar contra a imposição da morte e da miséria para nós e para a nossa classe. E nosso último exemplo, embora tenha sido o melhor, não ficou no longínquo 1917, mas se atualiza constantemente e dá demonstrações de que podemos fazer maravilhas, mesmo em meio à pandemia. Por um ano me atenho no exemplo das trabalhadoras da saúde em luta em tantos países, com exemplos inclusive no Brasil; nas mulheres e homens, brancos e negros, que gritam “vidas negras importam” nos EUA; nas operárias de Mianmar, enfrentando um golpe militar; as precárias na Argentina, segurando com seu corpo, cansado de pedalar para fazer entregas de aplicativos e com um lenço verde no pescoço, um pedaço de terra para viver; as francesas, fortalecendo a greve Petroleira na Total; e tantas outras...

Elas estão em todos os lugares, são a cara da precarização, mas também serão o rosto estampado nas bandeiras da nossa vitória. Em meio a uma situação asfixiante, tento fazê-la não esquecer, e com isso também me lembro: carregamos o futuro nas mãos e temos toda capacidade de fazê-lo se impor, porque “somos estudantes, mulheres operárias, nossa classe é revolucionária” (diz a música que aprendi a cantar há quatro anos). Não sei quando, mas daqui até lá precisamos fomentar o ódio contra os donos desse jogo, a solidariedade entre trabalhadores e respeito com os e as oprimidas, a confiança em nossas próprias forças e nos organizar para transformar a tristeza numa força capaz de romper tudo o que nos mantém paralisadas.

“Cuidado com as mulheres quando sentirem nojo de tudo que as rodeia e se levantarem contra o velho mundo, nesse dia nascerá o novo mundo.” – ouvi de Louise Michel, combatente da primeira experiência de um governo de trabalhadores da história. Acredito que vou ouvir dessa e tantas outras trabalhadoras precárias da linha de frente, com todas as letras, que estão fartas desse velho mundo. Podemos ser a alavanca que vai romper a apatia para que possamos atropelar toda burocracia, nos enfrentar com aqueles que nos condenam e conquistar o direito de fazer, no mínimo, o que as mulheres e homens trabalhadores do mundo já fizeram pela nossa libertação até hoje, provando que não é nenhuma utopia: é tão científico quanto a existência dessa pandemia.




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