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O retorno da classe operária “com características chinesas”

André Barbieri

O retorno da classe operária “com características chinesas”

André Barbieri

Merece reflexão atenta o componente operário que inspirou o estouro de protestos a nível nacional que desafiaram a política da Covid-zero, de Xi Jinping. Estaremos diante de uma recomposição subjetiva do proletariado chinês?

Jenny Chan, coautora do livro Dying for an iPhone (com Ngai Pun e Mark Selden) e pesquisadora sobre os protestos nos diversos complexos fabris da Foxconn na China, descreveu o cenário que desatou a atual greve na planta de Zhengzhou, a maior fábrica mundial de celulares da Apple. “A partir de meados de outubro, a fábrica da Foxconn opera em regime de ‘circuito fechado’, ou seja, uma bolha autocontida, com os trabalhadores apenas se deslocando entre seus dormitórios e as oficinas da fábrica. O sistema fechado ‘peer-to-peer’ é adotado para manter a produção do iPhone e minimizar a propagação do vírus da Covid. Os trabalhadores estão, de fato, isolados ali […] As coisas pioraram quando os trabalhadores relataram que alguns haviam testado positivo para Covid. Existem mais de 200.000 trabalhadores nesta fábrica de Zhengzhou. Sua vida se reduz a trabalhar, dormir e depois voltar ao trabalho. É uma situação caótica para os trabalhadores, coercitiva e exploradora. Não há transparência sobre a situação do Covid. Quando os trabalhadores não aguentam mais, irrompem protestos e greves.” A multinacional de capital taiwanês se encontra, agora, em dificuldade para preencher as linhas de montagem para a demanda de iPhones nesse pico de alta temporada produtiva, embora tenha retrocedido da fraude salarial e prometido bônus para novos trabalhadores.

Esse relato preciso de Jenny Chan sobre os acontecimentos de novembro ecoam sobre a tradição de exploração na Foxconn. Em 2010, Chan e Pun descreviam os protestos de desespero que levaram a uma onda de suicídios na multinacional taiwanesa, diante da superexploração e dos baixos salários. Interpretaram então a trágicas manifestações de repúdio como “um protesto contra um regime de trabalho global que é amplamente praticado na China. Suas mortes desafiadoras exigem que a sociedade reflita sobre os custos de um modelo de desenvolvimento promovido pelo Estado que sacrifica a dignidade humana pelo lucro corporativo em nome do crescimento empresarial”. A superexploração na China em nome da empresa ícone do capitalismo global (Apple) foi responsável pelo escândalo das mortes operárias, que eram respondidas pela Foxconn com a instalação das não menos escandalosas “redes anti-suicídio” ao redor do prédio em Shenzhen...

Tratava-se do final do período de enriquecimento chinês primariamente apoiado no modelo de crescimento orientado à exportação de manufaturas, no ocaso do governo Hu Jintao. Desta vez, em 2022, a resposta operária foi diferente. O descumprimento de promessas salariais para a alta temporada, junto com o enclausuramento forçado de trabalhadores ordenado pelos confinamentos da Covid-zero, foram o estopim de protestos operários inesperados na Foxconn, com características de radicalização.

Ao contrário de recorrerem a táticas desesperadas, os trabalhadores da Foxconn em Zhengzhou – capital da província de Henan, parte do interior chinês que se beneficiou com a busca capitalista por menores salários, diante de remuneração mais alta nas zonas costeiras – atacaram a empresa e o aparato repressivo com radicalizados métodos de classe. Paralisaram a produção. Trancaram e defenderam os portões da fábrica para que a polícia não entrasse. Armaram-se com barras de ferro para derrubar as zonas de defesa da polícia, que foi apedrejada nas instalações fabris. Viraram viaturas policiais e gravaram vídeos dos combates que viralizaram nas redes sociais. Trata-se de uma aproximação sintomática com o que de melhor deu o proletariado chinês na última década, em especial na onda de greves de 2010 que teve como culminação a heróica rebelião operária na Honda.

Os acontecimentos de Zhengzhou formam uma reação inesperada diante de uma combinação de fatores altamente inflamável. A situação política na China foi alterada por uma intervenção decidida dos trabalhadores.

Rachaduras na infalibilidade de Xi Jinping

Isso representa algo novo na era Xi Jinping. Houve greves durante o decênio do atual autocrata, que conseguiu há apenas um mês um inédito terceiro mandato como secretário-geral do Partido Comunista Chinês tornando-se o líder mais poderoso desde Mao Zedong. O “biênio vermelho” de 2015-2016 somou um número recorde de greves na era Xi. O China Labour Bulletin registrou 2.774 greves em 2015 (o dobro das 1.379 greves de 2014, um número já considerável), fruto da desvalorização do yuan e a quebra do mercado de ações daquele ano; em 2016 foram mais de 2.500 greves, contra o não pagamento de salários em segmentos da manufatura e construção civil. Politicamente, elas se precederam o estouro de crises orgânicas pelo mundo que originaram o Brexit no Reino Unido e o triunfo de Trump nos EUA. Mas foram controladas circunstancialmente dentro dos mecanismos de contenção do Estado, em especial pela burocracia sindical ligada ao PCCh, ou pela repressão direta da polícia. Eram greves econômicas contra os primeiros efeitos da desaceleração chinesa, mas em que ainda predominavam conflitos internos à relação de exploração com o empresário local. Traziam o eco característico dos protestos de resistência operária do final da década de 90 e início dos anos 2000. Segundo o pesquisador Tim Pringle, registrando as greves dos anos 2000, “quase toda semana os jornais da China e de Hong Kong traziam reportagens de alguma forma de ação operária: uma manifestação exigindo aposentadorias; uma linha ferroviária bloqueada por trabalhadores furiosos pelo não pagamento de salários; ou ações coletivas contra o comportamento ilegal de patrões que exigiam horas-extras forçadas”.

Nenhuma daquelas greves teve a ressonância que a atual em Zhengzhou. O desgaste nacional com as rígidas medidas restritivas da Covid-zero, responsáveis pela promoção de lockdowns de dezenas de milhões de pessoas em cidades como Xangai, Tianjin, Pequim, Chengdu, incrementando a taxa de desemprego na juventude (que hoje é de 20%, enquanto a média do desemprego urbano na China é de pouco mais de 5%), fez com a greve dos trabalhadores da Foxconn em Zhengzhou se tornasse o estopim de um desafio inédito à diretriz central do governo Xi.

Ainda que a abrangência nacional dos protestos deva ser medida, jovens estudantes e setores das classes médias de cidades centrais como Pequim, Xian, Nanjing, Chongqing, Chengdu e Wuhan saíram às ruas replicando as táticas de enfrentamento dos operários da Foxconn contra a polícia. A simultaneidade dos protestos contradiz a tradição das últimas décadas, em que os protestos eram estritamente localizadas e sem coordenação. Politicamente, a novidade é que o protesto atinge o governo central, nomeadamente Xi Jinping e sua política “insígnia” que foi defendida no 20º Congresso do PCCh, quando tradicionalmente o governo central em Pequim é blindado pelas administrações provinciais, responsabilizadas por “distorcer” as diretrizes do governo. É usual na China que o governo central distribua punições aos funcionários locais para calar os trabalhadores descontentes. A vice primeira-ministra, Sun Chunlan, se valeu do mesmo expediente para desinflar os protestos, atribuindo-os aos “excessos na implementação” por parte dos governos locais e não à diretriz central da Covid-zero, mas é simbólico que nem o próprio governo confie na suficiência desse expediente: ao mesmo tempo, anunciou uma “nova etapa” na crise pandêmica para justificar o relaxamento das medidas restritivas em Pequim, Xangai e Chengdu.

A repressão policial também mostrou suas limitações. O aparato repressivo levou dias para sufocar violentamente os protestos. Mais importante ainda, a greve dos trabalhadores da Foxconn opôs resistência física à repressão estatal. Fruto das reformas pró-capitalistas que liquidaram a rede de direitos sociais garantidos pela indústria estatal (sistema danwei) e levaram dezenas de milhões ao desemprego, múltiplos protestos operários foram contidos com a força bruta do Partido Comunista. O falecido Jiang Zemin ordenou em 2001 o aumento das unidades de polícia antidistúrbio em todas as grandes cidades fabris, prévio ao ingresso da China na Organização Mundial do Comércio. Nesse ambiente repressivo, por anos os conflitos operários tenderam a não recorrer a métodos radicais de enfrentamento, com certas exceções (como a emblemática greve da Honda Foshan, em 2010). Agora, abriu-se um precedente inesperado na raiva dos trabalhadores contra a polícia sanitária que tinha ordens para sufocar a rebelião contra os confinamentos. A gradual perda de legitimidade do aparato repressivo do Estado é um importante componente para a subjetividade que emerge.

Outro componente relevante é a capacidade testada da burocracia em dividir os trabalhadores. A burocracia estatal, através da Federação Nacional dos Sindicatos da China, lançou mão tradicionalmente de inúmeros expedientes para dividir os trabalhadores no mesmo local de produção. Segundo Ching Kwan Lee, em Pathways of labor insurgency, “trabalhadores urbanos locais e trabalhadores migrantes são divididos por origens geográficas (operários de dentro do cenário urbano e operários “de fora”), origens socioculturais (trabalhadores urbanos e rurais), por faixa etária (os mais jovens contra os mais velhos). Esses grupos se encontram frequentemente em termos de competição pelo mesmo emprego de baixa qualificação e baixos salários, nos setores estatal e privado”. Há, ademais, a separação entre empregados e desempregados, utilizada pela patronal e o Estado para angariar um afluxo permanente de força de trabalho sob as piores condições, segundo as regras do mercado capitalista. A greve da Foxconn mostrou a capacidade de unificação em combate desses setores fragmentados, mesmo que o desafio para superá-lo esteja ainda por se conquistar.

Parte desse avanço se deve a uma nova geração de trabalhadores migrantes, muito diferente daquela primeira onda migratória oriunda do campo após a restauração capitalista na China. Alvin So, em seu Class and Class Conscience in Post-Socialist China, nota que a crise de 2008 marca uma inflexão no surgimento de uma nova geração de trabalhadores migrantes chineses, algo que apontam também Jenny Chan e Ngai Pun. Essa nova geração, parte da qual esteve presente na rebelião operária da Foxconn de Zhengzhou, se diferencia da anterior em termos de experiência de infância, identidade social e a luta por condições de trabalho dignas. Essa segunda geração – que já precede uma terceira, marcada pela pandemia e a desaceleração econômica – nunca trabalhou no pedaço de terra alocado a cada habitante rural individual (0.07 hectares por pessoa) ou o reconhece como excessivamente insuficiente para garantir a sobrevivência. São trabalhadores que passaram a maior parte da vida adolescente e adulta nas cidades, o que impacta em sua identidade: segundo pesquisa da Federação Sindical, essa segunda geração já se identifica igualmente como operário (32.2%) quanto como camponês (32.2%), enquanto a primeira geração tinha uma identidade camponesa (58.4%) muito mais marcada que a operária (22%). É, ademais, uma geração de trabalhadores com maior nível educacional, com maiores aspirações e mais consciente dos direitos trabalhistas básicos (considerados na Nova Lei de Contrato Laboral, de 2007, que elenca direitos elementares raramente adotados pelos empresários).

Não é necessário exagerar essa mise em scène do proletariado migrante em Zhengzhou para enxergar sua importância. A greve em suas condições reais representa a recomposição subjetiva de uma classe que foi fragmentada e humilhada nas últimas décadas pelo próprio Partido Comunista como um estrato de párias que deveria levantar sobre seus ossos o império do capital chinês.

Classificar esse fenômeno como “contrarrevolução”, como faz o pesquisador Elias Jabbour, é o fruto exacerbado do sabujismo à linha política oficial em Pequim, que não pode oferecer à história mais que a defesa de uma burocracia restauracionista como a do PCCh. Em verdade, estamos diante dos primeiros episódios de um retorno da classe operária chinesa ao grande palco dos eventos históricos. Isso preocupa não apenas o governo de Pequim, mas o próprio imperialismo estadunidense, que através da imprensa aconselhou Xi a conter os protestos ajustando a linha sanitária. Será decisivo saber se os trabalhadores chineses retornarão como coadjuvantes diluídos na cidadania em geral ou como classe independente sabendo o que quer e como conquistar suas demandas. E o ponto crucial desse momento é a fissura que se opera na aura de infalibilidade daquele visto como o “inquestionável” Xi Jinping.

Os protestos contra a Covid-zero podem alentar a politização da consciência operária

A verdade é que o regime chinês está em uma encruzilhada. É tão arriscado manter a política da Covid-zero quanto suspendê-la; embora seja um regime bonapartista que aperfeiçoou suas medidas de controle social, o PCCh toma com cautela a relação com as massas. Se levantar abruptamente as restrições, cedendo às demandas, Xi corre o risco de ferir a imagem de autoridade inatacável que construiu, ademais de causar efeitos imprevisíveis sobre a taxa de mortos, num país em que a imunização pela vacina foi ineficiente, especialmente entre os idosos. Como escreve o periódico britânico The Economist, ao tornar a Covid-zero um teste de lealdade, Xi Jinping transformou uma crise sanitária em crise política.

A rebelião da Foxconn e os protestos da juventude estudantil que se seguiram contra a Covid-zero atuaram como uma espécie de significante vazio para todos os descontentamentos, desde o alto desemprego juvenil, as dificuldades econômicas até o regime autoritário do Partido Comunista Chinês. O desemprego da juventude é especialmente preocupante ao regime. A Covid-zero ajudou a erodir uma economia que perde velocidade, num ano em que quase 11 milhões de graduados universitários entraram no mercado de trabalho. A taxa de desemprego na juventude subiu de 15.8% em março para 19.9% em julho. Isso significa que cerca de 20 milhões de jovens entre 16 e 24 anos estão sem emprego nas grandes e médias cidades. Já os setores de classe média, de maneira mais geral, foram a base social sobre a qual se ergueu o projeto de “grande rejuvenescimento da nação chinesa” de Xi Jinping. O caos sanitário promovido pela Covid-zero operou uma distensão notável dentro dessa classe heterogênea, que vinha apoiando as medidas de projeção de força internacional do governo (modernização das Forças Armadas, Nova Rota da Seda, etc.). Muitos se viram em circunstâncias penosas de quarentena em meio à perda de familiares e à histeria dos lockdowns. Nos setores mais penalizados pela crise, houve desemprego e desesperança diante do desaquecimento do PIB. Esse setor de classe média urbana, que foi treinado pelo PCCh a odiar a classe trabalhadora e temer mais que qualquer outra coisa retroceder ao “status humilhante” de trabalhadores fabris, observou o efeito da rebelião operária em Zhengzhou, mesma cidade em que se deu a fraude bancária que fez desaparecer os depósitos financeiros de milhares de famílias da pequena burguesia, que foram reprimidas ao protestar na sede do Banco Popular da China.

A raiva dos setores da juventude trabalhadora e universitária, junto com os segmentos mais baixos da pequena burguesia urbana, prejudicados pela desaceleração econômica e contados entre os representantes dos novos desempregados ou precários, pode ser um estímulo à perigosa a uma aliança tóxica aos interesses de Pequim. Aliança que foi parte componente do outro importante episódio de questionamento à autoridade do Partido Comunista Chinês: os protestos de Tiananmen em 1989. Estes se diferenciam em grau, natureza e massividade dos atuais protestos contra a Covid-zero, num contexto histórico bastante diverso que envolvia o fim da Guerra Fria, o triunfalismo neoliberal e a restauração capitalista na URSS e em distintos estados do Leste europeu por parte das próprias burocracias stalinistas. Alguns motores dos protestos daquele então, não obstante, ajudam a ampliar a perspectiva atual. O desemprego entre a juventude era alto, e a inflação histórica de 1988-89, com o levante do controle de preços, incrementou a sensação de pobreza entre as camadas mais desfavorecidas da classe média e dos trabalhadores. Muitos dos postos de trabalho que estavam surgindo nos anos 80 na China eram empregos de manufatura de baixa qualificação, e nos anos 90 isso pioraria com a orientação decididamente pró-capitalista de Deng Xiaoping. O regime político autoritário também era questionado, para além dos interesses cínicos do imperialismo norte-americano. Os protestos começaram em várias cidades, com protagonismo estudantil, mas logo o componente operário passou a fazer parte, inicialmente, das manifestações nas cidades industriais como Xangai. Isso arreliou as preocupações da burocracia chinesa, como afirma Julian Gewirtz: “A liderança chinesa nessa época havia olhado para o que fez com que os movimentos na antiga União Soviética e na Europa Oriental fossem tão ameaçadores para os partidos comunistas no poder, e a participação dos trabalhadores era um dos fatos centrais”.

Aquela derrota de 1989 foi fundamental para o estabelecimento de um regime ainda mais bonapartista e antioperário, encabeçado por um PCCh que completaria a restauração capitalista sobre a derrota operário-estudantil. A nova geração de trabalhadores e jovens, que já vive numa China capitalista como potência global, em desaceleração econômica e introduzindo em seu seio as contradições da crise mundial, podem dar um desenlace distinto. Para isso, a experiência nos desafios da luta de classes é incontornável na recuperação da independência subjetiva.

Lênin, em 1895, tratava justamente do papel das greves para a recomposição subjetiva e política dos trabalhadores. Argumentava que, quando os operários enfrentam sozinhos os patrões, não podem abandonar sua condição de escravos assalariados; mas, quando levantam juntos suas reivindicações e se negam a submeter-se, deixam então de ser escravos, convertem-se em homens e começam a exigir que seu trabalho não sirva somente para enriquecer a um punhado de parasitas. Essa é a primeira base para a autopercepção como classe. Para Lênin, a greve ensina os operários a compreender onde repousa a força dos patrões e onde a dos operários, ensina a pensarem não só em seu patrão e em seus companheiros mais próximos, mas em todos os patrões, em toda a classe capitalista e em toda a classe operária. Então os operários veem com clareza que toda a classe capitalista é inimiga de toda a classe operária e que os operários só podem confiar em si mesmos e em sua união.

Parte dessa percepção ocorreu na própria greve da Honda, em 2010. A 3 de junho, os representantes operários da greve enviaram uma carta a todos os trabalhadores da Honda na China, e à população, em meio à greve histórica que duraria 19 dias para derrotar a multinacional japonesa e o aparato governamental: “Nós exigimos que a patronal da Honda inicie negociações e aceite nossas razoáveis demandas. A empresa tem um lucro de 1 bilhão de yuanes por ano, o que é fruto de nosso trabalho duro. Os trabalhadores da Honda devem permanecer unificados e alertas contra as manobras divisivas da patronal. A nossa luta não diz respeito apenas à melhoria das condições de vida dos 1.800 trabalhadores da Honda, é também pelo interesse mais amplo do conjunto dos trabalhadores de nosso país. Queremos ser um caso exemplar de trabalhadores que defendem os seus direitos”. A confiança dos trabalhadores em sua própria força contra os capitalistas ficou poderosamente marcada nessas linhas.

Mas para além disso, há o componente política da consciência que Lênin frisava. Lênin atribui às greves a capacidade de elevar a consciência dos trabalhadores, incluindo a percepção de que o governo é o seu inimigo e que é necessário lutar contra ele. “Efetivamente, as greves ensinam gradualmente à classe operária, em todos os países, a lutar contra os governos pelos direitos dos operários e pelos direitos de todo o povo. Das greves isoladas os operários podem e devem passar, e passam realmente em todos os países, à luta de toda a classe operária pela emancipação de todos os trabalhadores”. O repúdio a uma diretriz política central de Xi Jinping foi fruto da estafa contida por anos de pandemia. Ainda não há uma tradução coerente ao plano da subjetividade política desse questionamento tão importante feito pelos trabalhadores da Foxconn.

A própria greve em Zhengzhou, que se seguiu aos protestos operários em Guangzhou, não teve continuidade clara. Entretanto, foi um sintoma de época. Recoloca na cena o sujeito perigoso que o PCCh manteve nas sombras da coerção e da repressão nas últimas décadas com a restauração capitalista na China. O que aconteceria se esse primeiro episódio se generalizasse, e dos próprios conflitos da luta de classes se temperasse uma nova vanguarda da classe trabalhadora que, recuperando o marxismo como guia para a ação, encontrasse o caminho à aliança hegemônica com os setores oprimidos?

A derrota do proletariado chinês no ciclo de greves que culminou em Tiananmen não confere ao Partido Comunista nenhuma espécie de invulnerabilidade diante de uma nova recuperação subjetiva dos trabalhadores. Trata-se, aqui como sempre, de um trabalho da estratégia na luta de classes.


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André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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