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Os Anonymous em meio aos levantes das massas negras e trabalhadoras

Vitória Camargo

Imagem: Alexandre Miguez

Os Anonymous em meio aos levantes das massas negras e trabalhadoras

Vitória Camargo

Com a fúria negra da juventude que vem tomando os Estados Unidos e se espalha pelo mundo, o horizonte de que as ruas não podem ser o reduto do ódio da extrema direita bolsonarista voltou também ao Brasil. Por sua vez, o grupo de “hacker ativistas” Anonymous, que existe há quase duas décadas, sem ideologia ou posição política bem definida, desaparecendo e ressurgindo, em particular quando há levantes, ganha a simpatia de um setor da juventude.

No último domingo, com os atos antifascistas e pelas vidas negras, inspirados pela revolta da juventude estadunidense, sentimos uma mudança de clima no Brasil. A partir de então, houve atos antirracistas em Curitiba, Salvador, São Gonçalo, Recife, dentre outros. Nenhum Miguel, nenhum João Pedro, nenhuma Marielle, nenhum George Floyd passou desapercebido. O grito de justiça contra o racismo, que é um pilar do Estado capitalista aqui e também nos Estados Unidos, vem tomando conta das redes, além de atos em outros lugares do mundo, como França, Reino Unido e Alemanha. Somado a isso, estão sendo chamados novos atos antifascistas e antirracistas neste fim de semana no Brasil.

Apesar das necessárias preocupações e cuidados com as questões sanitárias, no marco da pandemia que faz tantas vítimas no Brasil, parte da população se dá conta de que houve um expressivo setor da juventude e da classe trabalhadora que seguiu obrigado a trabalhar, que segue exposto ao vírus e morrendo todos os dias, com o próprio governo agora buscando esconder esses dados em meio à subnotificação brutal, um setor que é assassinado em sua casa pela polícia, que passa fome, amarga redução de salário e desemprego. Agora, além do escandaloso negacionismo autoritário de Bolsonaro, que sempre alentou sua base a seguir nas ruas pedindo intervenção aos militares, os governadores e prefeitos de todo o país já organizam a reabertura das atividades, uma tragédia mais do que anunciada por aqueles que não vieram garantindo testes, leitos e respiradores.

Enquanto são os negros que mais sofrem com as balas da polícia, morrem por Covid-19 e entregam suas vidas pelos lucros capitalistas, não à toa, na Paulista, trabalhadores dos serviços de entrega por aplicativo organizaram-se para protestar, e foram também alguns desses jovens vistos à frente do ato chamado pelas torcidas no domingo. A força dos negros, em um país marcado por maioria negra, é parte central da força da classe trabalhadora brasileira, a mais precarizada, que mais paga por essa crise e a que segue fazendo tudo funcionar. É daí que pode vir uma resposta à crise sanitária, política e econômica, isto é, à miséria capitalista no Brasil.

Justamente por isso, é de gerar ao menos alguma desconfiança o retorno à cena dos chamados Anonymous, um grupo de “hackers ativistas” que se dizem em busca de “justiça”, dizem-se apartidários, nem de esquerda, nem de direita, e que se colocam no campo da guerra por informações na internet. Suas últimas ações, sobre dados bancários e pessoais de Bolsonaro e seu clã, foram dos assuntos mais comentados no Twitter nessa semana, ainda que sem nenhum grande revelação ou vazamento de informações. O que, a princípio, poderia soar progressista em um mundo marcado pelo monopólio da informação por potências imperialistas, pelos mecanismos de espionagem da Google e controle da vida por Zuckerberg, deve ser analisado com cuidado. Sempre que as massas irrompem na cena internacional e encontram protagonismo na arena política, sempre que há luta de classes, esse grupo reaparece. Foi assim em processos como Occupy Wall Street, está sendo assim em um momento que poderia aparecer somente como mais uma luta, agora nos Estados Unidos mas que, na realidade, revela mudanças subterrâneas de grande magnitude na sociedade americana, com apoio ativo e passivo de uma imensa parcela da sociedade às demandas dos negros no principal imperialismo do mundo. Afinal, escândalos de corrupção de todo tipo, por parte de empresas e governos, não são aspecto sistêmico dessa sociedade capitalista, isto é, estrutural? Ou são algo que deixa de existir no tempo e no espaço ao redor do mundo e reaparece somente quando jovens, negros, mulheres e trabalhadores se colocam em luta com seu protagonismo?

O que queremos debater aqui é qual armadilha pode estar contida no apoio a um grupo do qual pouco ou quase nada se sabe. A desestabilização dos governos e regimes, até mesmo no caso de um regime de extrema direita e herdeiro do golpe como no Brasil, sem interesses, ideologia e política definidos, abre espaço a saídas com sujeitos quaisquer – à própria burguesia, ao imperialismo, à casta política.

A indignação precisa encontrar uma estratégia, com sujeitos nítidos

O espírito de época que marcou a ascensão dos Anonymous, como Occupy Wall Street e Junho de 2013 no Brasil, é reflexo da combinação entre o rechaço aos políticos da ordem administradores do Estado capitalista e o primeiro acordar pós-crise de 2008. Contou com jovens que tiveram suas ilusões frustradas pelo neoliberalismo, uma ascensão prometida que nunca veio. No Brasil, Junho de 2013, com uma potência questionadora, escancarou pela primeira vez com mais força as contradições entre as promessas de ascensão social gradual do petismo e o início da piora objetiva das condições de vida, fruto da crise. Entretanto, essa força social, de início progressista, veio separada de uma resposta política bem definida, como expressão de um sentimento de rechaço ao regime, abrindo espaço a todo tipo de fenômeno político-ideológico, como a própria extrema direita. Movimentos como MBL, Vem pra Rua e o próprio bolsonarismo buscaram agarrar o descontentamento que Junho fez saltar, enquanto o PT, como governo e direção da classe trabalhadora em seus sindicatos, desde o início buscou demonizar e reprimir Junho, separando a juventude de qualquer perspectiva demarcada de classe. Por sua vez, direções autonomistas como MPL (Movimento Passe Livre) que, sob uma discussão de horizontalidade vazia escondia os métodos mais burocráticos na organização dos atos, sem colocar à frente um conteúdo político à altura de responder o grande rechaço social espontâneo, sendo direção dos protestos ao mesmo tempo em que negava a noção de direção política, logo deixaram de existir.

Agora, diante de um governo de extrema direita e quando a própria mídia e distintos setores voltam a traçar comparações com o espírito de Junho, inclusive para desestimular a ida aos atos, o apoio às manifestações e a vontade de retomar as ruas precisam se transformar em organização e resposta política clara. Afinal, compreendemos cada jovem e trabalhador desiludido com as velhas instituições desse Estado, que têm um conteúdo de classe claro. Evidentemente, deve haver um rechaço aos políticos da ordem que querem capitalizar o ódio do povo negro para o regime político e suas instituições racistas. Não há frente ampla com golpistas, com defensores das reformas que vieram aprofundando a exploração do povo negro. Não somos 70%. Essa estratégia, unicamente eleitoral, que quer conciliar interesses inconciliáveis, como os da classe trabalhadora com os patrões e seus políticos, foi justamente a que veio sendo levada adiante pelo PT, que Junho questionou, que fortaleceu a base social da extrema direita, desmoralizou os trabalhadores e não foi capaz de enfrentar o golpe institucional e Bolsonaro. Mesmo setores do PSOL, do PCB e outros partidos de esquerda se limitam a uma oposição unicamente a Bolsonaro, sem questionar em seu programa nem mesmo Mourão e os militares, que se fortaleceriam com a saída do impeachment, por exemplo, não fazendo oposição a esse regime fruto do golpe.

A questão é que, se a juventude negra, que mais sofre nas mãos dos políticos que aí estão, dos militares que aprofundam seu papel de poder moderador, que encamparam a ocupação do Haiti, com Maia e o STF, que aprovou a Terceirização irrestrita para precarizar mais a vida dos negros, se essa juventude ao lado dos trabalhadores não derem uma saída política, não há como defender as vidas negras, nem responder à pandemia. As lições de Junho de 2013 e de sua onda de protestos internacionais deve nos fazer ver que, quando tomamos as ruas, precisamos unir nosso método de luta a um conteúdo que de fato enfrente e dê saída às mazelas dessa sociedade, sem nenhum espaço para que políticos burgueses, militares, empresários, STF e toda a corja golpista queiram ser porta-vozes do nosso ódio. Nesse sentido, precisamos querer chacoalhar setores da classe trabalhadora ainda adormecida, querer que os sindicatos e suas centrais, que vieram de quarentena, como a CUT e a CTB, que fecham os olhos quando a juventude luta, chamem os trabalhadores a responder e se organizar nos locais de trabalho – nas fábricas que seguem funcionando, nos bancos, no metrô, nos hospitais. O fato de que torcidas se colocaram à frente dos sindicatos, que deveriam ser os instrumentos da classe trabalhadora, dá um indício de por que o grupo Anonymous, sem ideologia e resposta política claras, justiceiros mascarados, despertam simpatia. Não há vazio na política, essa é uma grande lição de Junho.

Entretanto, apesar do que querem as direções, céticas com seu potencial, não tenhamos dúvida: enquanto é a classe trabalhadora brasileira, em sua maioria negra, que segue movendo a sociedade nessa pandemia, em cima de bicicletas, nos hospitais, na linha de frente, nosso sujeito para enfrentar Bolsonaro e seu regime tem classe, e, à frente, raça e gênero, definidos, deve ter um lado nítido e deve saber impedir que nossos inimigos busquem se colocar nesse momento como aliados.

Por isso, nós, iremos às ruas neste domingo lutando pelas vidas negras, contra o racismo e o capitalismo, por justiça a George Floyd, Miguel, João Pedro, Rodrigo. Iremos confiando na indignação dos jovens e trabalhadores que estarão ao nosso lado ou em apoio em suas casas, mostrando que a indignação precisa se transformar em organização política em cada local de trabalho e estudo, com sujeito claro, sem cruzar nenhuma fronteira de classe. Gritaremos fora Bolsonaro e Mourão, por uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana que questione os pilares desse regime e varra toda a podridão, mostrando que, para isso, só mesmo um governo dos trabalhadores de ruptura com o capitalismo. A luta, sem sombra de dúvidas, é o caminho, mas só a luta organizada, ciente de seus interesses e fins, pode arrancar isso.


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