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Os Banshees de Inisherin: as aflições e desesperos que antecedem a morte de uma amizade

Adriano Favarin

Os Banshees de Inisherin: as aflições e desesperos que antecedem a morte de uma amizade

Adriano Favarin

Essa crítica contém inúmeros spoilers.

Indicado a nove premiações ao Oscar, incluindo o de melhor filme e diretor (Martin McDonagh), “Os Banshees de Inisherin” não deixa nada a desejar em relação à trilha sonora, às expressões e atuações dos atores nos personagens principais e coadjuvantes e menos ainda, à bela fotografia das ilhas irlandesas e suas falésias. Mas o que ressalta no filme é o seu roteiro, que consegue trazer reflexões profundas sobre a maneira como as pessoas lidam com a morte (o fim) de algo ou alguém, a partir do centro no término de uma amizade.

O filme se passa em uma fictícia ilha remota na Irlanda, durante os anos da guerra civil irlandesa (1922-1923) - que vai estar presente no enredo para servir como parte das analogias da trama. A trama começa com uma decisão abrupta de Colm (Brendan Gleeson) em parar de falar com Pádraic (Colin Farell). Tanto Pádraic, quanto os moradores do pacato vilarejo - como os telespectadores - ficam inicialmente confusos sobre o que teria motivado essa atitude abrupta e ríspida de Colm, sendo que os dois eram bastante amigos e sempre estavam juntos e próximos, e sensibilizados com a tristeza de Pádraic (em que Farell transmite brilhantemente uma expressão facial desoladora).

Pádraic não se conforma com a situação, afinal, porque Colm estaria aborrecido com ele, sendo que não fez nada de errado? Em primeiro lugar busca negar o que está ocorrendo, se desculpa por algo que nem sequer sabe que possa ter feito, tenta se apegar na crença de que é uma brincadeira do amigo, depois de que o amigo possa estar deprimido. Nada disso vai dobrando a decisão de Colm. A insistência de Pádraic em tentar entender as motivações para esse término e reatar a amizade levam a que Colm finalmente seja direto com Pádraic: ele não gosta mais de Pádraic, não gosta da companhia de Pádraic, não quer mais perder tempo da sua vida com conversas inúteis com Pádraic, quer se dedicar a compor músicas e Pádraic estava sendo um estorvo em sua vida.

A negação

Pádraic fica arrasado e começa a questionar seus próprios valores: seria ele uma pessoa tão chata, entediante e desagradável assim? Ele não se conforma e o drama vai escalando e envolvendo na trama outros personagens do vilarejo, como sua irmã, Siobhán (Kerry Condon), que, diferente do irmão, não tem nada de simplória e destoa completamente do clima do conjunto do vilarejo, de acordo com Pádraic sua irmã “gosta mais de ler do que de falar”. Também surge Dominic (Barry Keoghan), um jovem retratado inicialmente como “tapado” e infantil. Vítima de abusos sexuais e agressões periódicas pelo pai, o policial que garante a “lei e a ordem” do vilarejo, Dominic vai ocupando o papel de amigo de Pádraic durante esse momento sem Colm. Ainda como uma última atitude da fase de negação do luto da perda daquela amizade, Pádraic pede ao padre da cidade que o ajude.

Ainda que breves, as duas passagens de Colm pelo confessionário apresentam elementos importantes da subjetividade de Colm. A motivação do término pragmático e ríspido de Colm com a amizade de Pádraic vai sendo justificada na trama pelo seu sentimento de fracasso na vida, de não ter produzido nada pelo qual será lembrado, e a necessidade de produzir músicas que o façam encontrar sentido naquela existência deprimente, que o padre vai chamar de “desesperadora/aflitiva”. Mas somente isso não seria uma motivação suficiente para que competisse com a amizade de Pádraic, afinal, Colm poderia compor pela manhã, já que os dois se encontravam diariamente somente a partir das 14h. Então qual seria a motivação para tal atitude pragmática? No confessionário, o padre vai perguntar a Colm se a motivação não seria uma tentativa de se afastar de um sentimento mais íntimo que ele estaria desenvolvendo por Pádraic. Embora possamos enxergar a relação dos dois homens como um “bromance”, a trama não explora esse caminho. O centro da trama do filme é menos desenvolver as motivações de Colm e mais tratar da reação de Pádraic. Ao mesmo tempo, o roteiro deixa registrada essa observação.

As tentativas desesperadas de Pádraic e as negativas recorrentes de Colm escalam ao absurdo no momento em que Colm ameaça arrancar um dedo da mão cada vez que Pádraic aborrecê-lo insistindo em retomar a amizade. Pádraic, porém, não quer desistir daquela amizade, ele se importa, ele quer mantê-la, ele tenta corrigir até o que não sabe onde errou, e é nessa ameaça de Colm que a negação do luto do coração partido se transforma em raiva. E é esse um dos momentos em que se inicia a inflexão na trama.

A raiva e a barganha

Após ficar bêbado, Pádraic vai tirar satisfação com Colm, que desfruta em outra mesa da companhia do policial, o pai abusador de Dominic. Na troca de ofensas, entre a humilhação de quem apela para entender o porquê da rejeição, o porquê Colm estaria agindo dessa maneira diferente com ele, Pádraic parece chegar na conclusão de que talvez Colm sempre fora essa pessoa, de que ele só tinha sido utilizado por Colm e que a amizade que ele, Pádraic, sentia pelo outro, era superestimada, e não tinha correspondência. Após o fim dessa cena, já sem Pádraic no bar, Colm comenta de canto que talvez desse Pádraic ele até gostaria.

No dia seguinte, Colm cumpre sua promessa e arremessa contra a porta de Pádraic um dos seus dedos decepado. O apelo ao recurso do absurdo e as analogias do que se desenvolve daí para frente são fundamentais para conseguir transmitir o nível em que as sensações vão escalando de cada lado. O telespectador não vai conseguindo encontrar motivação para nenhuma das ações de ambos os lados, ao mesmo tempo que sente com os dois personagens a amargura da situação. Colm, com o dedo decepado toca o violino, em um som triste e imperfeito. Pádraic se nega a se desfazer do dedo, o guarda em uma caixa e decide que vai devolvê-lo a Colm.

Sua irmã, Siobhan, inconformada com o irmão, assume essa tarefa. Siobhan já vinha cumprindo o papel de mediadora do conflito entre o irmão e o ex-amigo com reflexões mais sábias e racionais, criticando o pragmatismo e a postura egocêntrica de Colm, ao mesmo tempo que buscando consolar e fazer seu irmão aceitar essa situação. Nesta cena com o diálogo entre Siobhan e Colm, este transmite pra ela mais profundamente a sua crise existencial e a faz pensar também em suas próprias aspirações de vida, muito diferentes das de seu irmão, limitada ao mundo e a vida em Inisherin.

A utilização desse recurso do absurdo por McDonagh da ação de Colm em decepar os dedos, justamente os dedos de tocar violino e arremessar contra Pádraic, representa também uma maneira de Colm aliviar aquilo que o deprime, que é saber que não deixou nenhum legado pra posteridade e que está ficando velho e provavelmente não vai deixar. Ao levar até o final sua promessa, Colm transfere para Pádraic a responsabilidade pelas suas frustrações, em um processo de punir Pádraic por ter feito com que ele fosse “obrigado” a decepar seus próprios dedos de tocar violino.

Mesmo diante dessa demonstração macabra de Colm, Pádraic ainda não se conforma e insiste em sua dor e sofrimento pelo retorno daquela amizade. Ao encontrar Colm no bar em risadas e trocas de experiências com um aluno violinista que veio de fora, Pádraic se acomete de ciúmes e afasta o rapaz de Colm, mentindo a ele que seu pai havia sido atropelado por um carro de leite e estava prestes a morrer. Pádraic se orgulha ao contar essa pulha para Dominic, que o reprova duramente. Para Dominic, Pádraic era uma das únicas pessoas boas e gentis da ilha, e com essa atitude, ele se decepciona profundamente.

Pádraic se sente ainda mais humilhado e vai até Colm mais uma vez, dessa vez não mais gentil e dócil, mas da mesma maneira que o enquadrou no bar, só que agora sóbrio. Nesse momento do filme, talvez a parte mais próxima do que poderia ser um diálogo de retomada de amizade entre os dois, Colm lhe conta sobre a composição que fez, “Banshees de Inisherin”. Banshees é uma figura mitológica celta que representa o presságio da morte, um símbolo do mau agouro. Pádraic demonstra sincera felicidade diante do amigo ter terminado de escrever essa composição, busca no diálogo a esperança da retomada novamente da amizade e propõe esperar Colm no bar de sempre. Colm pede para ele ir na frente. Ele vai. Colm fica. Nesta cena de um humor um tanto macabro, a gente vê o cão de Colm retirando a tesoura da sala. Colm olha para o cachorro e esboça um sorriso de canto de boca, desolado. A barganha final.

A depressão e a aceitação

Colm não aparece. Mas sim sua irmã, Siobhan, decidida a aceitar uma proposta de emprego que recebeu no continente e deixar a ilha. Nesses minutos finais do filme a trama atinge as últimas fases do luto e o telespectador só consegue acompanhar em apreensão e impotência o desfecho final, já não mais em busca daquela motivação inicial do término da amizade, mas angustiado diante do turbilhão de ações e reações dos personagens e do sentimento crescente da solidão interna de cada um.

Siobhan se vai, não sem antes ter uma cena com Dominic em que o rapaz decide arriscar um pedido de casamento para Siobhan, que é obviamente recusado. Essa cena tem todo um simbolismo em si, porque vai expressar a contradição entre as aspirações simples de Dominic, de ser gostado por alguém, e passar o resto da sua vida naquele lugar simples e rotineiro e as aspirações de Siobhan, de ir embora e partir pra buscar algo que não seja uma vida simplória, ainda que para isso tenha que deixar seu irmão para trás. Nessa cena a expressão facial de Barry Keoghan é digna de nota, o telespectador consegue sentir naqueles segundos em que a câmera foca no rosto de Dominic digerindo aquela negativa, e entende na decepção expressa no seu rosto e nas palavras entrecortadas e desconexas do personagem, qual vai ser o seu triste fim.

Antes do desfecho final é importante falar sobre uma personagem interessante, cuja presença sinistra é como um espectro que acompanha o desenrolar dos acontecimentos em toda a trama. É a senhora McCormick (Sheila Flitton). Uma velha, sinistra, chamada em determinado momento do filme de bruxa, que pode facilmente representar a personificação de uma banshee. Tem uma aparição simbólica nesse momento da conversa entre Siobhan e Dominic na beira do lago e ao final do filme observando ao longe o desfecho final. Mas sua principal contribuição vai ser o presságio que irá transmitir para Pádraic ao encontrá-lo no seu retorno para casa após se despedir da irmã, de que “pelo menos uma morte, senão duas, chegarão à ilha de Inisherin antes do fim do mês”. Esse presságio, como veremos daqui em diante, se mostrará verdadeiro, literal e metaforicamente, como faziam as banshees da mitologia celta.

Pádraic retorna para casa após se despedir da irmã, e encontra nos degraus da porta um dedo, ao seguir o rastro de sangue, outro dedo e ao virar atrás de sua casa, a sua amada jumenta de estimação e parceira, Jully, morta, engasgada com um terceiro dedo. A dor de Pádraic pulsa na tela: a decepção de Dominic, a viagem de Siobhan e a morte de Jully. Ele estava só. Naquela noite a parte gentil e simpática de Pádraic morreu junto com Jully. E ele era só ódio por dentro. Foi até a casa de Colm disposto a matá-lo, mas só encontrou por lá o seu cachorro. Envoltos na apreensão do que Padraic fará, o vemos acariciar o cão e, para alívio de todos, dizer: “Jamais machucaria você. Não iria fazer mal a melhor parte de Colm”. Essa maneira como McDonagh envolve os animais dentro da trama é bastante marcante também, durante todo o filme, mas especialmente na conclusão que essa frase sobre o cachorro de Colm traz, na verdade, sobre o que representa a morte de Jully, a jumenta de Pádraic, que vai ser a morte do antigo Pádraic, da melhor parte dele, enquanto ele próprio constata e aceita, finalmente, a morte do velho Colm pra ele. Colm, à sua maneira, vai reconhecer isso na sua segunda cena no confessionário, em que assume o pecado de ter matado a Jully, não intencionalmente, mas que se sentia culpado por isso.

No desfecho final, a velocidade dos acontecimentos se acelera, a angústia do desfecho chega no seu clímax, e a cada movimento a certeza de que não há mais volta. Pádraic sobe ao bar. Colm lamenta a morte da jumenta e pergunta se agora estão quites (essa fala de Colm reforça o sentido da transferência de culpa no seu processo de auto-mutilação). Pádraic ameaça queimar a casa de Colm com ele dentro. Dominic é encontrado morto no lago. Pádraic queima a casa de Colm como prometido. Colm e Pádraic se reencontram na praia da ilha, observam o continente, falam sobre a guerra civil que aparentemente terminou, Colm pergunta outra vez, se agora estavam quites e Pádraic responde que não, preferia que Colm estivesse dentro da casa queimada, e a trama conclui com o arremate final das palavras do novo Pádraic: “Não há como superar certas coisas. E eu acho isso bom”.

Um filme triste, melancólico, com pitadas de um humor ácido e mórbido, mas extremamente belo e profundo, não somente na fotografia, trilha sonora e atuação dos personagens, mas em como consegue fazer o telespectador entrar e sair diferente após assisti-lo. O drama e as aflições de cada um dos personagens te faz olhar para si mesmo. Ao final, você já não consegue se sentir em condições de julgar ou definir simpatia ou antipatia por nenhum dos personagens da trama. Você é arrastado com todos eles para Inisherin e pelo turbilhão de acontecimentos e sensações que percorrem a trama do momento em que Colm decide não ser mais amigo de Pádraic e esse não aceitar, até o momento em que um novo Colm e um novo Pádraic se reencontram na praia da ilha. Ao final você entende que os reais protagonistas da história são os lamentos das banshees, os dramas e aflições do fim, seja esse fim a morte, um término, uma mágoa ou uma partida.


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Adriano Favarin

Membro do Conselho Diretor de Base do Sintusp
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