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Os papéis de Carolina: os pães de cada dia e as rosas da vida eternizada

Luciana Vizzotto

Os papéis de Carolina: os pães de cada dia e as rosas da vida eternizada

Luciana Vizzotto

Neste Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-americana e Caribenha compartilhamos aqui este artigo sobre Carolina Maria de Jesus, sendo um dos capítulos do livro "Mulheres Negras e Marxismo", publicado neste ano pelas Edições Iskra.

– A Felicidade está aqui?
O pórteiro sórriu. Depôis ficou sério e respondeu-lhe:
– Meu filho! A Felicidade nunca passóu pór aqui. Os que aqui ressidem são todos infelizes.
– Ela ha de estar em outro hospício e eu, vóu procurá-la.

Felicidade foi uma das personagens de Carolina Maria de Jesus. Maria da Felicidade, para ser mais exata. Nesse trecho, nome próprio e ideia se misturam, como em todo o seu conto “Onde estás Felicidade?”. Mesmo sem ler o conto todo, pode-se notar a profundidade que essa mistura (ou a confusão do porteiro) revela sobre a escrita da autora. Carolina escrevia assim: propondo reflexões e sensações profundamente humanas ao mesmo tempo que retratava – e mais!, denunciava – um mundo totalmente desumano.

Carolina Maria de Jesus foi, antes de tudo e como ela mesma se descrevia, uma poeta; assim mesmo, sem flexão de gênero. Este foi o principal papel que cumpriu em nossa história. Com estudo regular parco, aprendeu a gostar das letras, ainda pequena, escutando um contador de histórias. E lia incessantemente livros emprestados ou encontrados. Começou a escrever muito jovem, nos anos 1940 teve seu primeiro poema publicado em um jornal. E passou a vida, durante todos os momentos de sossego (de “paz interior”, nas palavras dela), escrevendo.

Tem dez obras publicadas, das quais três o foram com seu próprio dinheiro e seis delas, póstumas. E tem mais 27 obras inéditas, as quais sua filha, Vera Eunice de Jesus, quem reuniu todo o acervo da mãe, ainda hoje tenta publicar. Dentre elas, há inúmeros poemas, romances, diários, peças teatrais e contos. Porém, você (e uma imensa maioria dos que sabem de sua existência) provavelmente conhece somente uma única obra: Quarto de despejo: diário de uma favelada – retratado pela grande mídia como o “improvável best-seller” da negra catadora de papel que morava na favela do Canindé, na zona norte de São Paulo.

A história desse seu estranho desconhecimento (calma, você tem muito pouca, senão nenhuma, responsabilidade por ele) começa nas origens de Carolina – e nas origens de seu país natal, o nosso.

Breves e humildes linhas sobre história de Carolina

Ela nasceu supostamente em 1914 (não há registros oficiais) em Sacramento, pequena cidade de Minas Gerais, e era neta de ex-escravos. Deixou a escola no segundo ano do ensino primário. Há relatos de que não gostava das regras da escola, mas adorava escutar histórias nas cirandas de rua formadas por contadores. Nesta cidade, ainda menor de idade foi presa e torturada, junto com a mãe como sua responsável, por ter sido acusada levianamente do roubo de 20 réis (o equivalente a atuais 2,50 reais, mais ou menos) de um frei. Chegou a pedir a morte; foi solta depois de terem encontrado o dinheiro.

Tinha no avô Benedito uma grande referência de sabedoria, inteligência e bondade. Foi conhecido como o Sócrates africano, e dessa alcunha nasceu um conto de Carolina com esse título. Escreveu:

O seu nome é Benedito José da Silva e tenho orgulho de acrescentar que ele foi o Sócrates analfabeto. Era impressionante a sapiência d’aquele homem. Eu tinha a impressão que o meu ilustre avô era semelhante a uma fita, unindo a família como se fosse um bouquet de flores.

Sua descrição parece apontar para seu mais alto valor moral, um ideal de humanidade que compreende solidariedade, cuidado com o outro, reflexão e razão.

A acusação e totalmente injusta punição que sofreu eternizou marcas que passaram a descrever para Carolina sua cidade natal. Após a morte da mãe, em 1937, decidiu sair da cidade e morar em São Paulo, lugar cuja fama de provedor de oportunidades ganhou a sua atenção. Foi sozinha a pé cruzando o interior paulista até a capital. Chegando, passou a trabalhar como empregada doméstica em várias casas dos chamados “quatrocentões”. Nas folgas semanais, ao invés de sair da casa (morava nos fundos das casas, os substitutos das senzalas), pedia permissão aos patrões para permanecer em suas bibliotecas para ler; lia sem parar, provavelmente sendo a primeira leitora de muitos dos volumes, empoeirados e encostados como ornamentos de parede.

Muito jovem, engravidou do primeiro filho de um europeu. A partir daí, não era mais aceita para trabalhar em nenhuma casa. Buscou abrigo na favela do Canindé, onde morou boa parte da vida e de onde saíram suas memórias descritas no seu diário mais famoso. Passou a trabalhar como catadora de papel e sucatas em geral. Era da venda de papel que tirava o pão de cada dia; havia dias em que conseguia, e em outros, não, nos quais a fome se impunha como algoz. Também encontrava livros e cadernos, que lhe serviam a sua paixão pela literatura, as rosas de sua vida, aquilo que lhe devolvia o sentido humano de sua existência.

Teve mais dois filhos, de homens diferentes. Nunca quis se casar, dizia que só traria mais trabalho e controle sobre sua vida. Mas amava, sonhava e escrevia sobre o amor. Dedicou-se totalmente aos filhos, os quais a enchiam de alegria quando contentes e de tristeza quando famintos. E a enchiam também de inspiração para escrever, assim como toda esta dilacerante realidade em que vivia. Perante esta, entre retratos e imaginações, escrevia: “É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela” – para esquecer que estava no ambiente onde se joga aquilo que a cidade não quer e, assim, poder se ver como humana.

No final dos anos 1950, enquanto ameaçava vizinhos de denunciar suas más condutas em seu livro – no Quarto de despejo retratava tudo que julgava errado –, conheceu um jornalista que gostaria de saber mais sobre ele. Segundo Vera Eunice, Audálio Dantas (editor do referido diário) já sabia que ali naquela comunidade morava uma escritora; foi procurá-la e a encontrou, assim como suas dezenas de cadernos repletos de literatura. O papel resgatado do lixo era também seu instrumento de humanização, era seu material de criação literária.

A partir deste encontro, Audálio, jornalista empregado em um jornal importante da época e com reputação, propôs a Carolina editar e publicar seu diário que viria a ser um estouro de vendas no Brasil e fora dele – foi traduzido para treze idiomas. Nesta época, conseguiu sair da favela do Canindé para morar no porão da casa de um magnata da indústria alimentícia.

Depois do “alarde de interessante ressonância” de Quarto..., como descreve o historiador José Carlos Sebe Bom Meihy, Carolina sofreu um enorme silenciamento, principalmente após o golpe militar de 1964. Mais nenhuma editora queria publicar suas outras obras, não era mais convidada a eventos literários, não se falava mais dela em nenhum veículo de comunicação (como fora inúmeras vezes dentre os poucos anos de sucesso).

Com o dinheiro que juntou com o sucesso do diário, publicou independentemente mais três obras: Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada (diário da vida pós-fama), Pedaços da fome (romance) e Provérbios (compilado de ideias descritas em forma de provérbios). Também comprou um pequeno sítio em Parelheiros, na zona sul de São Paulo, onde viveu até a morte.

Em 1966, voltou a aparecer nos jornais, mas dessa vez para venderem a notícia de que a escritora favelada e famosa havia sido vista catando papéis novamente para sobreviver. Faleceu em 1977, esquecida, pobre e repleta de escritos não publicados, os quais deixou, em carta que escrevera um ano antes, aos cuidados da filha Vera Eunice.

Uma história de vida que conta a História do Brasil

[...] Na campa silente e fria
Hei de repousar um dia...
Não levo nenhuma ilusão
Porque a escritora favelada
Foi rosa despetalada.
Quantos espinhos em meu coração.
Dizem que sou ambiciosa
Que não sou caridosa.
Incluiram-me entre os usurários
Porque não critica os industriaes
Que tratam como animaes.
– Os operários...

Carolina, mulher negra, mãe solteira, pobre e favelada, ao transformar sua realidade em narrativa literária, pinta a cores vibrantes e chocantes a constituição histórica da sociedade brasileira. E o fato de ser uma escritora com estas características e sofrer tais dificuldades para ter sua arte reconhecida, também.

A realidade degenerada e desumana de Carolina é a que foi imposta para os milhões de descendentes de africanos sequestrados e escravizados no Brasil. Após a interessada (pela própria burguesia que usou e abusou deste “mercado”) abolição da escravidão, às negras e negros foram reservadas as condições mais degradadas de sobrevivência, os piores locais de habitação, os piores postos de trabalho (quando os há), a princípio nenhuma educação formal e depois a pior delas – ou a mais funcional aos capitalistas. As mulheres negras, em particular, ao sofrerem também a opressão de gênero, ficaram relegadas ao excruciante trabalho doméstico, à exploração sexual e a mais um sem número de dificuldades impostas às que são mães. Tudo para que se mantenha o conjunto da classe trabalhadora subjugada, pressionada e dividida entre brancos e negros, entre homens e mulheres, entre o trabalho considerado de mais valor e o de menos, entre o empregado e o desempregado. Carolina retrata vivamente tudo isso, ornando cada elemento narrativo de profunda sensibilidade e crítica mordaz.

Nesses elementos se ancoram os motivos pelos quais o conjunto das obras de Carolina Maria de Jesus foi silenciado pela censura explícita do regime militar de 1964 a 1985, em primeiro lugar, e pela censura implícita das editoras e do cânone literário (que influenciam a – não – recepção do público) desde a redemocratização do país, em segundo.

Como caracteriza Meihy, no momento em que se decide publicar seu livro, Carolina com seu Quarto de despejo foi alvo de uma transformação por parte da classe dominante em “bonequinha negra de uma sociedade que aprendera a ser flexível”. Foi parte de uma narrativa ideológica promotora da nova democracia brasileira no período democrático de 1945 a 1964. Foi uma peça usada pelo regime para demonstrar uma suposta possibilidade da ascensão social a partir da ideia de “self made woman” (mulher que se formou pelos próprios esforços), construindo assim a imagem meritocrática de uma nossa “moura (des)encantada” – versão que omite, obviamente, que Carolina só conseguiu publicar seu diário por ter tido o “patrocínio” de um homem branco com uma posição de trabalho favorável para tanto.

Com as viragens conjunturais e de interesses políticos expressas no golpe militar de 1964, se tornou necessário para a classe dominante ocultar as contradições sociais escancaradas, dentre outros fatores, pelo cotidiano precarizado da favela, pela pauperização de setores de massa da população e pelas intensas mobilizações de trabalhadores por direitos sociais dos anos de 1960, 1970 e 1980. Assim Carolina passa então a ser rejeitada e suas obras, apagadas, esquecidas, silenciadas.

Após a redemocratização (acordada com os militares) “lenta, gradual e segura”, resgatar conteúdos denunciativos como os da autora não combinavam com o pacto instaurado, que intencionava conformar a nova Constituição Federal de 1988 com base, ainda, em vários aspectos do que foi o projeto nacional varguista. Este incluía manter um setor gigantesco da classe trabalhadora por fora dos direitos constituídos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT); ou seja, os que não fossem empregados através dessa mediação, ficariam jogados à própria sorte. Parte da obra de Carolina critica tal projeto, evidenciando a vida dos excluídos das leis trabalhistas, sem mencioná-lo tacitamente. O linguista e sociólogo Carlos Vogt também aponta esta característica de nossa autora: “De algum modo [Carolina] intui que para quebrar o círculo de reprodução da miséria é preciso mais do que simpatia. Por isso fala às vezes em revolução e denuncia com frequência o populismo demagógico de muitos políticos importantes da época”.

E o cânone literário (orientado pela academia burguesa), rejeitando o assim considerado “português pobre” da autora como marca da desigualdade social, procura manter imaculada a literatura como espaço do mais alto valor social. O conjunto da obra da “Carolina poetisa” foi mantido, dessa forma, fora do alcance do público e a autora, vista quando muito como escritora de diário de denúncia. Dessa forma, sua obra, como parte do universo literário e, portanto enquanto direito social (e também enquanto direito à memória do povo negro), foi usurpada em seu próprio potencial papel humanizador.

Sobre as referências à linguagem usada por Carolina em suas obras, vale um importante parêntese. São recorrentes as menções e estudos sobre a sua linguagem, com transgressões a certas regras gramaticais da chamada “norma padrão” da língua portuguesa, ao mesmo tempo que usa vocábulos eruditos por influência dos autores que lia, criando um estilo discursivo bastante peculiar. No entanto, este seu estilo é recorrentemente apontado como resultado de sua parca formação escolar e assim julgado como estética pobre. Tal caracterização acaba por desqualificar a obra de Carolina também em seu conteúdo, seus recursos figurativos, seu caráter lírico. Como diz a crítica literária Marisa Lajolo, para a academia, “na literatura que se pensa com letra maiúscula, [...] não se admite a ignorância das normas gramaticais. […] Tolera-se a infração, mas não o desconhecimento do que se infringe”. Sendo toda obra uma criação, os motivos pelos quais a autora transgrede as normas não deveria importar para a análise literária. Carolina, ao contrário do que vários de seus “juízes” postularam, apresenta obras muito ricas, nas quais inova pensamentos, interpretações de mundo, significações e adjetivações, bem como seus motivos de escrita (a temática), que só são possíveis por suas condições materiais de sua vida. Como ela mesma escreveu: “Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido”. Tal julgamento da escrita de Carolina sem dúvida contribuiu para o seu silenciamento.

Para entendermos profundamente o apagamento de Carolina, é necessário compreendermos a nossa relação com a arte no sistema capitalista. À classe trabalhadora é relegada, pela classe dominante, a arte dita popular assimilada pela indústria cultural, que passa nesse processo por uma seleção de forma e de conteúdo. Esta classe promove e propagandeia exaustiva e propositadamente, assim, a arte de caráter simplista e apelativo (nos aspectos amoroso, sexual, ostentatório, individualista), excluindo, na maior parte das vezes, as que revelam conteúdo e forma vistos como ameaçadores ao status quo e/ou aos limites democráticos (que podem mudar de acordo com a conjuntura) desenhados pelo regime político. É necessário para a classe dominante impor uma hegemonia ideológica que serve a manter a estrutura do regime, de preferência construindo uma aparência democrática. Parte do exercício da hegemonia é controlar, o máximo que se pode, todos os elementos culturais que formam a subjetividade das classes e grupos sociais subordinados. O conteúdo selecionado, portanto, em boa parte atende a este projeto hegemônico, e assim se oferta uma arte e uma literatura capazes de sanar a “necessidade universal” de contato com “alguma espécie de fabulação”, como explica Antonio Candido sobre uma das funções da arte para o ser humano. Através da escolha ideológica, a classe dominante então molda tal contato como momentos de alienação (mais do que de reflexão) do mundo desgastante do trabalho e dos problemas cotidianos da vida na sociedade capitalista.

Com o resgate da literatura de Carolina Maria de Jesus, podemos contribuir para o “dessilenciamento” e valorização de sua obra e da própria história do povo negro, feminino e trabalhador brasileiro; e assim talvez possamos também fazer novas descobertas sobre sua obra enquanto patrimônio cultural e enquanto parte de um direito fundamental – o acesso à arte – de nossa sociedade.

Gigante escritora: este é o papel de Carolina na história, marcado a tinta indelével

Muitas fugiam ao me ver
Pensando que eu não percebia
Outras pediam pra ler
Os versos que eu escrevia

Era papel que eu catava
Para custear o meu viver
E no lixo eu encontrava livros para ler
Quantas coisas eu quiz fazer
Fui tolhida pelo preconceito
Se eu extinguir quero renascer
Num país que predomina o preto

Adeus! Adeus, eu vou morrer!
E deixo esses versos ao meu país
Se é que temos o direito de renascer
Quero um lugar, onde o preto é feliz.

Carolina Maria de Jesus é um dos grandes nomes da literatura brasileira e mundial, e pouco a pouco ela começa a ser resgatada para este lugar. E é claro, não se pode negar: ela o foi apesar de toda a opressão e exploração que sofreu.

Neste mundo que constrói realidades desumanizadoras para o conjunto da classe trabalhadora, é muito difícil que a pura iniciativa do indivíduo baste para se criar qualquer vínculo com o universo da literatura – daquela que transcende a arte massificada pela indústria cultural, de conteúdo preestabelecido pelos magnatas dessa indústria. É preciso, antes de mais nada, se ter acesso. Bibliotecas, escolas e até mesmo o acesso à internet, como alternativa nos dias de hoje, são espaços muito distantes, precarizados e/ou inexistentes para a grande massa da população. Também são necessários o incentivo e o tempo livre. O cotidiano massacrante do trabalhador, jovem ou adulto, raramente lhe permite ter energias para aproveitar o tempo do “não-trabalho” para atividades que não sejam apenas de ócio alienante. No caso de muitas mulheres trabalhadoras, este tempo sequer existe, sendo preenchido com o trabalho doméstico e de cuidado com as crianças e os idosos. Em situações como estas, o incentivo, quando existe, acaba tendo uma força reduzida.

Na contracorrente dessa realidade, nossa poeta encontrou na literatura (tanto no seu consumo quanto na sua produção), desde a infância, um alicerce contra sua realidade sempre massacrante. A escrita se tornou uma fonte de esperança de superação da vida precarizada. Mas, mais que isso, era a sua vocação lírica que a fazia, muitas vezes, observar sua realidade entusiástica ou criticamente, dando a esta contornos inesperados, prenhes de significações antes ocultadas pela fome – e esta mesma acaba ganhando um significado muito mais profundo: não é somente a sensação de falta de energia e nutrientes para o corpo seguir funcionando, é também uma cor amarela (como ela mesma descreve) que invade a percepção do mundo e de si mesma, atuando quase como uma personagem.

Sem dúvida, não se pode apartar as obras de Carolina de suas características de origem social, que destoam da maioria dos escritores de literatura reconhecidos por nossa cultura – homens, brancos, com instrução escolar e acadêmica, de classe média ou diretamente da burguesia. Por essa diferença, ela textualiza, como explica Lajolo, “uma cultura que quase nunca chega ao livro impresso” e assinala “a exclusão, dos pactos e protocolos da cultura, dos cidadãos e cidadãs também excluídos do mundo econômico”, escancarando, assim, a distante relação da massa do povo com a literatura.

Neste marco, o resgate de sua obra e legado tem sido empreendido principalmente pela periferia, seus saraus, por poetas influenciados por ela e por movimentos sociais de mulheres e de negros. Sem dúvida, estes cumprem um papel importantíssimo ao salientar todo o racismo e machismo de que Carolina e sua obra foram vítimas, evidenciando todos os elementos de sua história para comprová-lo. Uma denúncia de nossa sociedade capitalista que, ainda mais no Brasil, é essencial para que possamos combater com cada vez mais força este sistema.

Em consonância com essa preocupação, às vezes identificamos em alguns discursos destes setores um destaque especial e até uma priorização da origem social de Carolina e de sua história de vida ao trazê-la novamente à cena, colocando em segundo plano as próprias características e elementos literários que a autora traz. Mas não é justamente mostrando e estudando a sua obra, a sua literatura, que podemos combater a lógica elitista e racista que a exclui do nosso cotidiano cultural?

Sua riqueza não se deve ao puro fato de falar da realidade do pobre, deve-se, muito mais, ao caráter universal de sua escrita. Ao retratar o mundo dos ricos e dos pobres, Carolina reflete e provoca reflexões sobre os elementos mais profundos do viver desde a perspectiva de quem vive tal realidade, descrevendo-a profundamente. O feminino e a maternidade; a felicidade e a tristeza; a intensa vontade de viver às vezes atacada pelo desespero suicida; o contraste entre as belezas do mundo e das relações humanas e as mais distintas agruras e sofrimentos impostos pelos próprios humanos; o bem e o mal e a indagação de suas existências; a religiosidade e a crença questionada em algo além da vida material; o arbítrio e o seu tolhimento; os desejos confrontados com os obstáculos psicológicos, morais e sociais: todas questões sempre presentes nas obras mais importantes da literatura mundial. Como Clarice Lispector disse à nossa poeta: “Grande escritora é você, porque você escreve a realidade”.

Nos saraus, vemos suas palavras ecoarem e ressoarem com uma profunda força humanizadora nos espaços mais desumanos que o capitalismo construiu. Tal como apresenta em Quarto de Despejo, nesses espaços, os dias se repetem, impondo sempre os mesmos desafios e obstáculos. O dia a dia de Carolina desenha a aparência de uma vida sem passado e sem futuro, emergindo uma aparência sólida e eterna. A ausência do vislumbre de transformação ou de superação atua para ceifar o sonho, a imaginação, a criatividade, a capacidade, ou mesmo a vontade, do ser humano de reinventar a si e ao mundo ao seu redor, constantemente agindo para enfraquecer aquilo que os torna seres humanos. A literatura (e toda arte), em contrapartida, atua na construção da imaginação e da criatividade emotivas e racionais, sendo assim um fator de humanização que muitas vezes devolve nosso papel como sujeito da vida, liberta e incentiva o ânimo para a luta.

E é por isso que, mesmo em meio a tanto sofrimento e dor, é das negras e negros, trabalhadoras e trabalhadores que vemos, em todas as épocas, nascer literatura, música, dança, pintura; obras de arte com uma grande sensibilidade e de intensa qualidade, que transmitem a realidade (nas palavras de Clarice) de forma insuperável. Ao receberem a força da arte de seus pares, como a de Carolina, se enchem de inspiração e vida. E a luta revolucionária, orientada pela ciência do marxismo, pode inspirar e incandescer ainda mais a criatividade. É a partir dela que será possível libertar milhões de pessoas da realidade desumanizadora do capitalismo, esse sistema de escravidão assalariada que acorrenta as mãos e as mentes, liberando inclusive as condições materiais para que todos possam viver plenamente e fazer desabrochar as rosas da expressão humana em toda sua potencialidade. Como disse o revolucionário russo Leon Tróstki em seu Literatura e Revolução:

A construção social e a autoeducação psicofísica vão se tornar duas faces de um só processo. E todas as artes – literatura, teatro, pintura, escultura, música e arquitetura – darão a esse processo uma forma sublime. Mais exatamente, a forma que revestirá o processo de edificação cultural e de autoeducação do ser humano comunista desenvolverá ao mais alto grau os elementos vivos da arte contemporânea.

Instigar essa potencialidade artística é o profundo legado de Carolina, que nos deixou inúmeras páginas de uma literatura riquíssima, comovente e inspiradora. E que têm o potencial de nos mover para a luta pelas rosas da vida, aquelas que nos fazem humanos e sujeitos de nossa realidade.

A ROSA
Eu sou a flor mais formosa
Disse a rosa
Vaidosa!
Sou a musa do poeta.

Por todos su contemplada
E adorada.

A rainha predileta.
Minhas pétalas aveludadas
São perfumadas
E acariciadas.

Que aroma rescendente:
Para que me serve esta essência,
Se a existência
Não me é concernente…

Quando surgem as rajadas
Sou desfolhada
Espalhada
Minha vida é um segundo.
Transitivo é meu viver
De ser…
A flor rainha do mundo.

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Referências bibliográficas

Cinderela Negra: a saga de Carolina Maria de Jesus, 1994, p. 190-196. Disponível também em < http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/24-textos-das-autoras/65-carolina-maria-de-jesus-o-socrates-africano >.

Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo: diário de uma favelada. 10. ed. São Paulo: Ática, 2014.

José Carlos Sebe Bom Meihy, “Carolina Maria de Jesus: emblema do silêncio”. Revista USP. n. 37, São Paulo, mar/mai 1998, p. 82-91. Disponível em <https://www.revistas.usp.br/revusp/...>

“Quarto de Despejo”, poema com título homônimo ao do diário. Carolina Maria de Jesus, em Meu estranho diário. São Paulo: Xamã, 1996, p. 151-153.

José Carlos Sebe Bom Meihy, “Carolina Maria de Jesus: emblema do silêncio”. Revista USP. n. 37, São Paulo, mar/mai 1998, p. 82-91. Disponível em <https://www.revistas.usp.br/revusp/...> .

Carlos Vogt. “Trabalho, pobreza e trabalho intelectual”. em SCHWARZ, Roberto (org.). Os Pobres na Literatura Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 205-213. Disponível em: <https://www.comciencia.br/dossies-1...> .

Marisa Lajolo, “Poesia no quarto de despejo, ou um ramo de rosas para Carolina”, em JESUS, Carolina Maria de. Antologia pessoal. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996, p. 37-61.

Antonio Candido , “O direito à literatura”, em Vários Escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995, p. 235-263.

Carolina Maria de Jesus, em Antologia pessoal. (Organização José Carlos Sebe Bom Meihy). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.

Leon Trótski, Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2007.


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Luciana Vizzotto

Professora da rede estadual de São Paulo
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