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Pensar o Brasil pós-rechaço constitucional no Chile: como a conciliação abriu espaço para a direita

Diana Assunção

André Barbieri

Pensar o Brasil pós-rechaço constitucional no Chile: como a conciliação abriu espaço para a direita

Diana Assunção

André Barbieri

Termina o ciclo político iniciado no Chile pela Rebelião de outubro de 2019. A votação de 62% em rechaço à nova Constituição, apresentada pela Convenção Constituinte, foi um marco definidor desse longo processo. A estrepitosa derrota da política de Boric junto à Convenção altera os sinais políticos do país, que vive um ressurgimento das forças morais da direita dura, de um lado, e da centro-esquerda liberal, que cava seus postos de controle com a mudança ministerial no governo, de outro. Fruto da derrota, Boric girou ainda mais à direita, entregando a condução política da presidência aos ministros da ex-Concertación, com agremiações burguesas como o Partido Socialista de Michelle Bachelet e o Partido pela Democracia, que governaram para os capitalistas junto com os partidos dos “30 anos”. Segundo o presidente do Partido Comunista do Chile, Guillermo Teillier, seu partido não teria agora nenhum problema em negociar com o Partido Republicano, a extrema-direita de José Antonio Kast. Todos concordam que um novo processo constituinte, mais controlado e antidemocrático, deve ser negociado a fim de cumprir a promessa de uma nova constituição, repetindo a política de “unidade nacional” que derrotou a Rebelião.

A interpretação majoritária, em suas variantes, se ocupa com apagar as pistas das lições de estratégia, e desabotoar o nebuloso caminho do “caráter nacional” do povo chileno. A condenação dos extremos, do maximalismo e do “outubrismo” (em referência à Rebelião) seria produto inerente da “natureza nacional”. Escritores liberais apontam que o povo chileno “não está para experimentos ideológicos”, ou que os chilenos configuram uma cidadania “moderada e conservadora por essência”. Nesse banho de essencialismo, há muito espaço para a conciliação. Pablo Iglesias, aposentado líder do Podemos, não conseguiu sequer aprender com a catástrofe que lhe tocou ao se subordinar ao governo imperialista do PSOE, no Estado espanhol. Afirmou que no Chile ficou provado que “não se pode governar sem certo consenso de uma parcela da direita”. Ao tentar “provar” a fórmula pessoalmente, foi ejetado pela extrema direita que se fortaleceu em Madri.

Ao contrário dessas “interpretações”, é necessário entender o curso dos acontecimentos, e não fugir deles, para encarar de frente a realidade: a conciliação de classes sempre fortalece a direita. Isso é verdadeiro no Chile e no mundo, não menos no Brasil.

Como chegamos da Rebelião ao rechaço?

A Rebelião de 2019 foi um dos mais importantes processos de massas na América Latina nas últimas décadas. Tendo como estopim a luta dos estudantes por tarifas mais baratas de transporte, culminou na marcha de mais de 1 milhão de pessoas no 23 de outubro, com 300.000 apenas na capital Santiago. “Não são 30 pesos, são 30 anos” passou a enfeixar o lema da batalha de massas por colocar abaixo a herança pinochetista. A Rebelião de Outubro, apesar da repressão virulenta do Estado, mostrava em seu seio possuir o “impulso massivo” necessário para fazer erodir todo o edifício econômico que moldara o capitalismo chileno, a pérola do neoliberalismo latino-americano, nas décadas que nos separam do golpe genocida de 1973. As circunstâncias exigiam, é certo, condições subjetivas à altura da ebulição objetiva: um partido revolucionário, que dotasse de programa e direção a revolta, e organismos de autodeterminação de tipo soviético, que a pudesse converter em revolução. Mas era possível vencer nas ruas: não apenas derrubar Sebastián Piñera, mas questionar o conjunto das instituições do regime e o próprio Estado para, nos dizeres de Gramsci, abrir caminho a uma “ordem nova” superior ao capitalismo.

Entretanto, esse não foi o curso dos acontecimentos. As mediações reformistas e burocráticas, na arena política e sindical, trabalharam desde o início do processo para que ele não ultrapassasse os umbrais do regime político burguês. No domínio político, a Frente Ampla, de Gabriel Boric, e o Partido Comunista, renunciando explicitamente a qualquer intenção de derrubar Piñera com o método das mobilizações, levaram até as últimas consequências a estratégia de estabilização institucional e salvamento do regime. Amedrontado com a greve geral do 12N, um ponto de inflexão segundo Piñera, o governo propôs, com a aquiescência da direita, do Partido Socialista e da Frente Ampla, um “Acordo pela Paz e a Nova Constituição” a 15 de novembro de 2019, com o objetivo de desativar as mobilizações e canalizá-las às instituições estabelecidas, com a promessa de uma nova Constituição. Apesar de não ter feito parte dos primeiros firmantes, o Partido Comunista de Daniel Jadue e Camila Vallejo irmanou-se com a Frente Ampla de Boric para salvaguardar o governo da queda pelas mobilizações. No domínio sindical, a direção burocrática da CUT, com influência do PC, freou a dinâmica pós-12N e concedeu uma trégua ao governo, impedindo novas paralisações e um plano de luta que preparasse uma verdadeira greve geral, capaz de incluir o setor da mineração, coração da economia chilena.

A correlação de forças é sempre um resultado da luta de classes. Ao ter êxito em bloquear a participação da classe trabalhadora como sujeito independente e hegemônico sobre a população pobre, as burocracias facilitaram a separação da vanguarda “revoltista” nas ruas das massas que observavam apreensivas o aparecimento de um programa que solucionasse disruptivamente seus anseios. Com o fortalecimento da direita, essa relação de força se altera, e modifica o panorama, que não emerge como dado fixo por arte de magia.

Gabriel Boric foi parte orgânica desse desvio restabilizador do equilíbrio capitalista chileno, junto às direções burocráticas do movimento de massas. Seu governo foi o resultado e a continuação da conciliação de classes com a direita, um símbolo do “Acordo pela Paz” realizado às costas e às expensas dos trabalhadores. Boric assumiu no governo a agenda da direita liberal. Conquistou uma baixíssima aprovação (37%) porque não tomou nenhuma medida séria para enfrentar os efeitos da crise econômica e da inflação. Respeitou zelosamente o ajuste fiscal, aplicou um arrocho salarial e militarizou a região de Wallmapu para reprimir o povo mapuche. Não é de se surpreender que Gabriel Boric tenha se tornado o símbolo da deterioração econômica que começou durante a pandemia. O que se pensava em fortalecer dessa maneira, senão nossos mais engajados inimigos de classe?

A nova Carta Magna, associada pela população a Boric, foi rechaçada como verdadeiro voto castigo a essa conciliação com os ajustadores que degradam a economia nacional e a vida das massas. Ao mesmo tempo, a própria direita conseguiu fazer incursões na consciência das massas aproveitando demagogicamente a situação.

Convenção: vitória ou desvio?

O “Acordo pela Paz” foi o primeiro grande capítulo da traição dessas direções, preservando o governo e garantindo uma transição por dentro da institucionalidade. O segundo grande capítulo dessa traição veio com a Convenção Constitucional, nascida do pacto de unidade nacional com a direita.

As massas exigiram nas ruas uma Constituinte que desse resposta ao conjunto das agruras da população, e não uma Convenção tutelada pelos poderes constituídos para permanecer tudo como está. Com uma retórica “de esquerda”, uma vez vinda à luz a Convenção assumiu o manto da submissão institucional. Cumpriu à risca os ritos exigidos pelas instituições estatais tradicionais que a subordinaram.

As características de origem da Convenção eram um espelho de seu caráter antidemocrático. Entre suas prerrogativas, garantia a impunidade de Piñera. Impedia que a juventude chilena, vanguarda que iniciou a explosão social, tivesse direito de votar e ser eleita. Dava quórum de 1/3 dos votos para poder vetar toda iniciativa fundamental; ainda que a direita sequer conseguisse essa representação, pôde com mais facilidade controlar as votações. Desde o gérmen, não era nem livre, nem soberana, já que os poderes constituídos é que supervisionariam e teriam o direito de chancelar, ou não, a proposta de constituição. O Legislativo comandado pelos partidos da direita e da ex-Concertación (centro-esquerda liberal), o Judiciário repleto com os magistrados saídos dos tribunais pinochetistas, e demais instituições herdadas da Constituição da década de 1980 não permitiram que a Convenção atuasse de maneira independente. Os “convencionais” aceitaram pacificamente as ordens enquanto brincavam de ordenar tranquilamente uma nova Carta Magna.

O que o fracasso da Convenção Constitucional mostra é que o “revoltismo” e um processo constituinte no âmbito do regime não são suficientes para resolver as profundas questões que estão por trás da luta para acabar com todo o legado da ditadura.

O PSTU no Chile, que foi parte integrante do desvio da Convenção, tendo uma parlamentar constituinte (María Rivera), considera que essa Convenção foi “um triunfo das massas”. Trata-se da mesma apreciação da Frente Ampla e do PC, e de organizações como o PSOL no Brasil. A Convenção Constitucional, longe de ser um triunfo da mobilização popular e uma expressão genuína do povo mobilizado, foi uma instituição chave para desviar a luta de classes e recompor a governabilidade do regime. Atuou para que o regime ganhasse tempo e, uma vez recomposto, pudesse descartá-la para adotar um processo de reforma constitucional ainda mais antidemocrático, como o que Boric entabulará com as câmaras empresariais que definiram seu gabinete de governo. A experiência chilena não é um exemplo de uma Constituinte que varresse a herança pinochetista, que se exigia nas ruas; e sim o exemplo de como o regime pode se utilizar de bandeiras democráticas para conter e desviar um processo de luta, descolando-se da base dos trabalhadores precários, dos sindicalizados e do povo pobre, deixando a fraude constituinte suspensa no ar. O problema, para o PSTU, se reduziria a que a maior parte da Convenção era composta por reformistas. E o que se imaginava sair de um desvio conciliador como esse, uma fictícia “Convenção revolucionária”? Um balanço totalmente parlamentar e alheio à luta de classes, adequado à atuação oportunista do PSTU no Chile, como explicamos aqui.

Todo balanço que não parta da traição do “Acordo pela Paz” e do desvio consumado pela Convenção Constituinte, derivará em “lágrimas e abraços” piedosos, ou em determinismos sobre o suposto caráter ontologicamente conservador da sociedade chilena. A luta de classes educa, e as distintas frações da classe dominante atuaram incansavelmente para, de um lado, bloquear a auto-organização independente das massas através das direções burocráticas políticas e sindicais, e de outro canalizar a revolta, não para a revolução, mas para as velhas instituições que a devorassem, como Desdêmona devorava as palavras de Otelo.

Houve, portanto, um duplo movimento: um governo que terminou legitimando os argumentos da direita, e o resultado do desvio institucional que implicou um retrocesso da consciência em setores de massas, com o consequente avanço da direita, que conseguiu aproveitar demagogicamente a fragilidade de Boric e semear suas opiniões.

As posições da esquerda no Brasil sobre o governo Boric

Afinal, porque depois de fortes mobilizações e da eleição deste governo, a nova constituição não foi aprovada pela população? Há os “democratas” de plantão que estão saudando Gabriel Boric como um grande “estadista” que estaria dando uma mostra de democracia já que fez um plebiscito e a população mostrou que não quer essa constituição. A conclusão seria de que nem sempre as mobilizações de massas refletem a vontade popular. Há os que saúdam o aprendizado de Boric através do seu fracasso, como Demetrio Magnoli, dizendo que o Brasil precisa aprender que conquistas sociais devem vir de mãos dadas com a defesa da estabilidade do regime. Ambos discursos afeitos para defender a manutenção do status quo da sociedade de classes chilena, que seguirá convivendo com a herança pinochetista.

Enquanto a extrema-direita bolsonarista demonizava as manifestações dizendo que o “Brasil poderia virar o Chile”, a esquerda ensaiava múltiplas formas para advogar a política derrotista do desvio. Com a entrada de Gabriel Boric vimos amplos setores da esquerda decretando o “fim da herança pinochetista” na votação do 4 de setembro de 2020 em que 78% da população pedia uma nova constituição. Como se as bases do selvagem capitalismo chileno estabelecidas por Pinochet tivessem desaparecido como fumaça no ar pelo poder das urnas. Este conteúdo foi defendido amplamente por distintas figuras do PSOL, como Sâmia Bonfim do MES, e Juliano Medeiros, com os quais polemizamos. O que estava por trás dessa posição? Um apoio entusiasmado, em primeiro lugar, ao plebiscito fruto do desvio, e posteriormente ao governo Boric, que sustentou o desvio depois de eleito em dezembro de 2021, desarmando qualquer caminho de mobilização efetivo. Foi a contribuição de setores da esquerda brasileira para embelezar um caminho institucional que era desde o início um beco sem saída.

O outro argumento recorrente, como abordamos em tópico anterior, era a definição de que a Convenção Constituinte seria uma vitória das massas. Não se pode confundir o entusiasmo em ver as massas em luta com o resultado de um processo claramente desviado: como dissemos, as massas não clamavam por uma Convenção Constituinte controlada por cima, e sim uma Constituinte que questionasse os pilares do pinochetismo. Ao manter vigente toda a estrutura anterior, mais uma vez se comprovava que a herança de Pinochet seguia viva, explicitando o caráter de desvio da impostura da Convenção. Dentre a esquerda, foram muitos os setores que definiam como uma vitória, como por exemplo a LIT-PSTU que mencionamos, que se irmanava ao PSOL nessa avaliação.

Com uma dimensão reflexiva maior, vimos também a definição de que no Chile teria ocorrido algo semelhante a um processo de institucionalização da insurreição, como apontou o professor Vladimir Safatle, com quem também já havíamos debatido aqui. Em entrevistas recentes, Safatle, ainda que sempre apontando os limites da experiência e que a própria Frente Ampla segue sendo um “ponto de tensão”, apresenta a definição de uma “via chilena ao socialismo” que seria uma repetição da dinâmica histórica do que foi a chamada “via chilena ao socialismo” no governo de Salvador Allende, que se tratava da "via pacífica" pela via eleitoral e conquistando maioria parlamentar, e não a via insurrecional. Safatle aponta que naquele episódio histórico não se tratou de um embate entre “reforma ou revolução” mas sim uma espécie de insurreição institucional. Como dissemos, acreditamos que aqui se concentra um debate importante. Insurreição e institucionalização são caminhos antagônicos que pode tomar o curso de um determinado processo. Não é plausível a noção de uma insurreição institucional, justamente porque a ideia de insurreição pressupõe a continuação por meios violentos (guerra civil) da luta de classes, ou o enfrentamento decisivo da classe trabalhadora e seus aliados contra o poder do Estado e suas instituições armadas. As circunstâncias chilenas não permitiram que a quebra do equilíbrio de forças entre as classes chegasse até aí. Parece-nos que, ao examinar a fundo a terminologia escolhida, que unifica polos antagônicos no curso de um conflito, termina-se configurando uma concepção tributária de uma estratégia reformista que agora com o resultado do plebiscito apenas se confirma.

Onde estará a parte da “insurreição” nessa álgebra diante da derrota da nova constituição? Mais do que nunca tratar o processo no Chile como uma insurreição não controlada pelo governo não permite ver o movimento pelo qual atuam as instituições de contenção e institucionalização, capazes até agora de impedir o desenvolvimento de um ciclo que culminasse em um processo de “duplo poder” que pudesse colocar em xeque, de fato, a herança pinochetista.

As explicações sobre a atual derrota

É neste cenário, ou seja, de múltiplas posições sobre o governo Boric que vemos se desmanchar frágeis fundamentos e argumentações, em alguns casos pedindo luto e silêncio, para “depois fazer o balanço”. Vimos na esquerda brasileira até mesmo apelos um tanto patéticos para “compreender o momento de dor do povo chileno”, como se o que o povo chileno precisasse fosse de “um minuto de silêncio”, e não de uma profunda avaliação sobre qual programa e qual direção poderiam ter fortalecido o impulso original das massas, preparando-se agora, de maneira séria, para retomar o caminho da mobilização.

Neste bojo, estamos vendo cair as máscaras do reformismo clássico, que não demorou muito tempo para já dizer abertamente que as massas são conservadoras: “culpa delas”. É a mesma opinião de liberais de centroesquerda no Chile, como Pablo Paniagua e Gonzalo May. Até mesmo a ideia de que uma constituição que não tocava nos problemas de fundo do país seria “esquerdista” e por isso não venceu, argumento esgrimido pela patronal chilena para conter qualquer mudança e transmitir a máxima de que é preciso ir gradualmente, aos poucos, bem pouco, para conquistar algumas migalhas. Mas há também os que consideram que é parte da batalha, ou seja, é uma derrota mas “o presidente Boric já disse que vai ter constituição sim, sigamos!” como declarou em um tweet o presidente do PSOL Juliano Medeiros, aplaudindo a estratégia de um governo que coloca repressores dos estudantes e neoliberais em seus ministérios.

Vejamos que depois de conter e desviar o processo de mobilização das massas culpar as massas pela derrota de um plebiscito que iria votar uma constituição da qual as massas não fizeram parte é a expressão máxima da construção de uma derrota anunciada. Ou seja, nenhuma das explicações do balanço de porque foi derrotada a nova constituição dá conta de explicar justamente que o problema principal foi essa política de contenção das lutas e conciliação de classes levada adiante pelo governo Boric. A força que emanou da rebelião de 2019 precisava ter conseguido corpo em uma auto-organização que transcendesse as mobilizações desarticuladas e mostrasse a inteligência em ação das massas coordenadas na luta, com um programa anticapitalista e uma direção revolucionária que ajudassem a desenvolver os elementos de duplo poder para colocar a burguesia contra a parede.

Esse processo foi interrompido, mesmo havendo embriões de organismos de autodeterminação que poderiam apontar o caminho da vitória, como o Comitê de Emergência e Resguardo na região mineira de Antofagasta, exemplo mais avançado em que os trabalhadores se auto-organizaram para tomar em suas mãos as rédeas da luta, cuja expansão foi bloqueada pelas burocracias reformistas.

Revolta e revolução: o poder da auto-organização contido pelas burocracias sindicais

A rebelião de 2019 apresentou a importância estratégica da transição entre revolta e revolução para que o processo não retrocedesse de sua potencialidade. Isso porque é importante definir que as revoltas são constituídas por ações espontâneas que liberam as energias das massas, incluindo episódios significativos de violência; mas, ao contrário das revoluções, elas não visam substituir a ordem existente, mas pressionar por algo enquanto resistem em atos de extrema pressão. A superação desse momento de mera resistência de pressão está inscrita em todas as revoltas, na medida em que abordem o problema das mediações reformistas e burocráticas que atuam no sentido oposto, de desagregação e institucionalização das insurgências populares. Posições estratégicas do movimento operário chileno, como os portuários e os mineiros, se colocadas em ação, teriam sido um fator de inflexão para dar outra ordenação ao sentido inicial da revolta, abrindo caminho para uma situação revolucionária. Essas mediações reformistas como a Frente Ampla e o PC, junto às direções sindicais conciliadoras – mecanismos do “Estado ampliado” nos termos de Gramsci – tiveram êxito em conter a mobilização nos marcos de “protestos cidadãos” que não afetaram decisivamente os centros nevrálgicos do poder da classe dominante.

Não ter conseguido superar as burocracias reformistas e desenvolver a auto-organização pela base mediante a ativação das posições estratégicas dos trabalhadores impediu a possibilidade de derrubar Piñera e instalar o que as ruas exigiam: uma nova Constituinte realmente livre e soberana, que atacasse os problemas sentidos na saúde, educação, pensões e salários dignos, que concedesse liberdade para presos, entre outras demandas. Hoje esse balanço fica mais claro diante da derrota da nova constituição e se trata de uma lição fundamental do processo. Para isso é decisivo compreender o poder da auto-organização para alterar a correlação de forças - que em geral é o argumento reformista para nunca levar a luta adiante - e também o papel de contenção das burocracias reformistas e conciliadoras.

Estamos falando em primeiro lugar do Partido Comunista e da Frente Ampla, que atuaram como mecanismos do Estado integral, organizando a hegemonia da classe dominante no interior do movimento de massas. Essas mediações reformistas estancaram a dinâmica do ciclo de luta aberto naquele então e o institucionalizaram. Mas houve exemplos embrionários que apontavam um caminho distinto. Por exemplo, no centro mineiro de Antofagasta, com 400.000 habitantes, no norte do Chile, surgiu um poderoso organismo de auto-organização de massas, o Comitê de Emergência e Resguardo. O CER foi um espaço de coordenação entre sindicatos, organizações territoriais, profissionais, estudantes e ativistas sociais, que desempenhou um papel fundamental na explosão social de 2019. Foi capaz de impor à burocracia da CUT uma mobilização unitária com mais de 25.000 pessoas no contexto da greve geral do 12N, com um programa que abrangeu as demandas sociais de outubro, a luta pelo "Fora Piñera" e a exigência de uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana. O que teria ocorrido se esse exemplo se estendesse a todo o país? Essa foi uma das principais preocupações da burguesia e das burocracias no Chile. Somente com repressão, prisões e a atuação asfixiante da Mesa de Unidad Social é que se bloqueou essa perspectiva. Além do CER, centenas de assembleias territoriais surgiram, que apesar de não estarem ligadas à classe trabalhadora, foram sintomas, especialmente em um país como o Chile em que frequentemente surgem vanguardas de luta nos processos, e em que existem experiências históricas de auto-organização embrionária.

O problema é que esses fenômenos, muitas vezes, limitam-se ao caminho institucional, o que bloqueia a plena liberação das energias da classe trabalhadora e do povo. Em outras palavras, a “paralisia das forças de transformação social” não é um dado fixo herdado de uma relação de forças alheia à luta de classes. Foi imposto conscientemente, e não sem luta, o que revela que havia possibilidades concretas para um triunfo da rebelião que derrubasse o governo pelos métodos clássicos de um sujeito social muito perigoso.

Chile reafirma a necessidade de uma política de independência de classe

Como dissemos em junho deste ano: “Reconhecer o revés no terreno concreto da luta permite não trabalhar sobre cenários tão imateriais, e preparar melhor o próximo ascenso, que poderá se dar sobre novas bases: a experiência diante do governo reformista de conciliação de Boric. Dentro dessa preparação, sem dúvida a assimilação crítica da experiência do Comitê de Emergência e Resguardo, e o horizonte da ampliação da estratégia de auto-organização dos trabalhadores e oprimidos, como se deu em Antofagasta, é incontornável”. Nos parece que se trata de um ponto de partida importante para pensar como seguir as reflexões diante deste cenário. Mais do que isso permite ver que a necessária experiência das massas com essa política de desvio e institucionalização só pode levar a derrotas que busquem passivizar e conter os processos de luta espontâneos.

A única maneira de enfrentar as direções reformistas e burocráticas é potencializando a auto-organização dos trabalhadores, pra que tenham controle da sua luta impondo os caminhos para as burocracias. Mas isso também exigirá a construção de um partido revolucionário que possa com a experiência histórica da nossa classe e essas lições ajudar a conduzir os processos de rebelião e revolta a verdadeiros processos revolucionários que exigem preparação prévia para enfrentar a repressão estatal e todos os inimigos de classe. Nada disso será feito com conciliações ou atalhos de “governos progressistas”. Ao contrário, tudo isso mostra como essa política volta a abrir espaço pra direita. Trata-se de uma importante lição para o Brasil, que no rechaço frontal ao governo de extrema-direita bolsonarista tem nas direções de massas como o PT a tentativa de mais uma vez canalizar a raiva popular passivizada por seus sindicatos para a via eleitoral rumando a um novo governo Lula-Alckmin junto com empresários, a direita golpista de 2016 e o capital financeiro. Por isso, com as lições do Chile no Brasil é preciso fortalecer a unidade dos trabalhadores, sua auto-organização e batalhar por um caminho de independência de classes.


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Diana Assunção

São Paulo | @dianaassuncaoED

André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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