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Luta de classes | Potencialidades e problemas estratégicos do levantamento da classe trabalhadora na França

Desde 19 de janeiro deste ano, vem-se desenvolvendo no país europeu a “luta das aposentadorias”: uma prova de força decisiva que diz respeito a todo o proletariado na França. Neste artigo, discutimos suas características, seus limites e as tarefas que se colocam pela frente para que seja possível vencer.

Juan ChingoParis | @JuanChingoFT

terça-feira 14 de fevereiro de 2023 | Edição do dia

O caráter profundo da luta em curso

Se há um elemento que chama a atenção na luta em curso, não é apenas sua massividade, mas sua profundidade. Em relação à primeira característica, nunca um movimento social na França começou tão forte, atingindo já em seu segundo dia de ação, em 31 de janeiro, um recorde histórico desde a década de 1980, com quase 3 milhões de pessoas nas ruas em todo o país segundo a CGT e 1,27 milhão segundo a polícia. Na terça-feira, 7 e no sábado, 11 de fevereiro, essa solidez continuou a se repetir, com um novo recorde no dia 11 de fevereiro em Paris (embora não a nível nacional, em certa medida devido ao início das férias de inverno em uma parte da do país) com mais de 500.000 manifestantes segundo a CGT e 93.000 segundo a polícia.

Mas por trás dessa poderosa demonstração, é a profundidade das razões da mobilização o seu elemento distintivo. Como já dissemos, a contrarreforma da previdência funciona como caixa de ressonância de uma série de outros sofrimentos sociais, ligados às condições de vida e de trabalho. Em particular, o que evidencia é uma forte rejeição à degradação da vida pela exploração capitalista. Um especialista no assunto desde o ponto de vista patronal, Raymond Subie, conselheiro social de Sarkozy em 2010 e arquiteto da última reforma que estendeu a idade legal de aposentadoria, aponta no Le Parisien o seguinte em relação às reformas anteriores:

“O que torna a situação mais difícil hoje do que em 2010, 2014 ou 2019 é que os franceses estão sujeitos a muitos elementos que incomodam: inflação, riscos de escassez de energia, descontentamento com os serviços públicos, problemas na RATP [estatal dos transportes parisienses]… A questão das aposentadorias, que no imaginário social francês é um totem, a própria personificação da proteção social, pode servir como um catalisador da raiva”. [1]

Todos esses elementos, que vão além da questão da aposentadoria, estão travessando a mobilização atual, principalmente os problemas ligados à inflação e o poder de compra dos salários são assuntos que estã na boca de todos os manifestantes.

Assim, além da presença de grande número de servidores públicos (e portanto com maior sindicalização e tradição de luta), uma das razões da forte mobilização das médias e pequenas cidades, em proporções que variam em alguns casos entre um em cada quatro ou um em cada cinco da população total, é a presença das indústrias.

Como diz Jérôme Fourquet, “quem fala de indústria fala da população trabalhadora. E fala de maior sensibilidade a um conjunto de condições precárias como o trabalho noturno, carregamento de materiais pesados ou a exposição a produtos químicos. É o caso na região da Bretanha, onde várias cidades, próximas de grandes fábricas agroalimentares, apresentam números consideráveis [​​de manifestantes] (Quimperlé, Carhaix-Plouguer). Também na Figeac, no Lot, com a terceirizada aeronáutica (Figeac Aero)”.

A mesma constatação em Laval, na prefeitura de Mayenne, onde a mobilização foi recorde. Segundo o enviado do Reporterre, na multidão que marchava, encontramos “…muitos trabalhadores da indústria alimentar, um setor muito importante neste departamento: vemos os trabalhadores das gigantes do leite Lactalis, Bel ou Savencia, mas também produtores de carne suína, como o grupo Bigard Charal. ‘Temos horários de trabalho variáveis, cargas pesadas para carregar e tarefas altamente repetitivas. Não aguentamos mais aos 64 anos’, diz Denis, 43, funcionário da Savencia. Mais à frente, outro grupo de grevistas veste os coletes laranja fluorescente do sindicato. Eles são trabalhadores do matadouro Socopa, localizado na cidade de Évron, a 30 km de Laval. ‘Ninguém é capaz de trabalhar até os 64 anos em uma linha de abate’, diz André, 59, treinador de um matadouro. ‘São sempre os mesmos gestos, forçamos muito os pulsos e os ombros. A cada cinco segundos chega um porco na linha, ou seja, 720 porcos para serem abatidos por hora, e você tem que continuar…’. Até porque ‘alguns às vezes começam a chegar às 2h30 da manhã’, diz André”.

Reações semelhantes podem ser vistas em manifestantes em Paris entrevistados pelo Le Monde em 31 de janeiro: “Cerca de trinta trabalhadores da empresa Fedex, com sede no aeroporto de Roissy, vieram se manifestar em Paris pela terceira vez, após uma curta noite. ‘Esta manhã terminei às 5 da manhã, dormi três horas e depois vim para cá, e vou continuar até ao fim’, afirma Zouhaier, 57 anos, agente de triagem para carga e descarga. ’São muitos carregamentos! Se os políticos vissem ver a dureza do nosso trabalho, nos dariam aposentadoria aos 40! Na carga, temos recorde de acidentes de trabalho, jovens de 25 anos que acabam com hérnia de disco, como é que eles vão aguentar? Para isso, temos apenas 3 pontos de insalubridade por ano (são necessários dez para ganhar um trimestre)’”.

A questão da precarização está no centro de muitos depoimentos de manifestantes. Como aconteceu com esses assalariados da construtora Demathieubard, que se manifestam em Paris: “Esta é uma questão completamente ocultada pelo governo”, acredita Olivier Schintu, um cobrador de 47 anos, com capacete de construção na cabeça. “Estamos no trabalho pesado e querem que trabalhemos até os 64 anos! Todo ano estamos ao relento: chuva, neve, calor, cargas pesadas, barulho, envenenamento ao longo dos anos por serragem, sílica, concreto... E nenhum reconhecimento de insalubridade! Temos um governo que está tentando passar tudo através do [artigo contitucional] 49.3 [2], enquanto os franceses, todos as categorias juntas, estão pagando o preço de sua reforma com sangue e sacrifícios!”

Quanto tempo pode durar o “momento Berger”?

Até agora os governos de Macron foram confrontados com movimentos menos massivos e mais radicais. Foi o caso dos Coletes Amarelos que mobilizaram centenas de milhares de pessoas na França no momento mais alto do levantamento, quebrando a rotina sindical. Mas também a greve renovável contra a reforma da previdência do inverno de 2019-2020, cujo início foi imposto pela base dos grevistas da RATP. Ao lado dos ferroviários da SNCF [Estatal ferroviária francesa], estes últimos levaram uma greve contínua por quase dois meses, uma das mais longas da história da França, apesar do isolamento. De forma mais geral, o novo ciclo de luta de classes que se abriu em 2016 no país se caracterizou por uma menor massividade e tendências mais fortes ao transbordamento, marcando o enfraquecimento do controle do aparelho sindical sobre as mobilizações.

Contrariamente a esses movimentos, a mobilização atual é dirigida e enquadrada pela intersindical [unidade burocrática das direções das principais confederações sindicais francesas]. Nela, a CFDT [Confederação Francesa Democrática do Trabalho] e seu dirigente atual, Laurent Berger, são quem marcam o ritmo, sem romper em nenhum momento o acordo com a CGT [Confederação Geral do Trabalho], outro pilar do historicamente dividido sindicalismo francês. Para se ter uma ideia do que significa essa direção sindical, lembremos que o “realismo” defendido pela CFDT a levou a defender uma lógica de conciliação de classe e a fazer um compromisso atrás do outro com os governos federais nas últimas décadas. Desde os anos 1980, durante os quais a CFDT, após o Congresso de Brest, acompanhou o giro de austeridade implementado pelo governo Mitterrand (socialistas); até a reescrita de uma grande parte da lei El Khomri [Reforma Trabalhista] em 2016, que significou o fim da presidência de Hollande e o último capítulo da crise do Partido Socialista; passando pela traição do grande movimento do funcionalismo público em 2003 contra a reforma da previdência de Fillon [primeiro-ministro de Sarkozy], que a CFDT denunciou por um tempo antes de alinharem filas no campo do governo de direita.

Essa nova unidade sindical e a presença significativa da CFDT à frente da mobilização atual é a grande novidade do momento. Não é o que se dá desde 2010 quando se deu a reforma da previdência anterior, ou após meses de mobilizações massivas, em seus auges, em que o governo Sarkozy terminou por se impor frente aos sindicatos. Como observa Dan Israel no Mediapart, “Os sindicatos também descobriram que a CFDT poderia mobilizar amplamente sua base, como se evidencia pela composição das manifestações nas grandes e médias cidades. As bandeiras e coletes laranja vêm representando regularmente um terço dos atos, o que pesa na correlação de forças. A CFDT tem muita força. Nós não sabíamos disso e é impressionante. Hoje, é claramente Laurent Berger quem dirige a intersindical e o movimento social. É o momento da CFDT”. Um “momento da CFDT” que pode ser visto no seio das manifestações nas quais nenhuma crítica é feita a Laurent Berger quando ele se junta à frente do ato. Sequer uma único “traidor social”, grito comum na boca dos sindicalistas da CGT em relação à CFDT.

Mas o que marca, acima de tudo, este “momento CFDT” é o fato de que até agora o que prevalece no movimento é uma estratégia de pressão sobre a negociação parlamentar. Uma estratégia feita a partir de uma série de manifestações enérgicas, mas pouco radicais, com o objetivo de simbolizar o descontentamento das massas. O “realismo” desta estratégia se baseia no fato de que, diferentemente de 2010, Macron não tem uma maioria no parlamento e se encontra enfraquecido desde o início de seu segundo mandato. Porém, depois de ter fracassado uma primeira vez em sua reforma da previdência em 2019-20, Macron e seu governo estão apostando a sua credibilidade enquanto presidente e sua capacidade de defender completamente os interesses da burguesia francesa e o status da França no palco das grandes potências imperialistas nessa nova tentativa de reforma. Os riscos são particularmente altos num momento em que a guerra na Ucrânia trouxe à tona as tensões e os conflitos entre grandes potências.

Mas a inflexibilidade do governo demonstra a impotência da estratégia de Laurent Berger, ou seja, de uma burocracia sindical profundamente adaptada ao "diálogo social", mesmo quando se confronta com o completo desprezo do macronismo em relação aos “corpos intermediários” [como são chamados os sindicatos]. Questionado em entrevista ao Les Echos, Berger disse: “Estou preocupado. Temos a impressão de que é como se nada tivesse acontecido desde o início de janeiro, sendo que temos um movimento social de escala muito grande e de forma inédita. As manifestações surpreendem por sua geografia e sua sociologia. Veja o que está acontecendo nas pequenas cidades e em muitos lugares, são os trabalhadores em sua grande diversidade que marcham e manifestam seu repúdio à extensão da idade legal de aposentadoria. O Executivo não tem consciência do que está se passando: está enfrentando uma luta trabalhista pós-pandemia. Um conflito do mundo pós-pandemia que se enfrenta com uma visão governamental que não mudou... A mobilização é massiva. Não há violência. Não pretendemos bloquear o país. E o governo está fazendo ouvidos surdos. Que perspectiva traça o Executivo de um país democrático que não ouve esta expressão pacífica de rejeição a sua reforma?” (Grifo nosso)

Como Dan Israel observa novamente: “Diante da inflexibilidade do governo, verificamos também que a CFDT vem impedindo de toda forma qualquer evolução do modo de mobilização no momento. Manifestações de massas ‘continua sendo a nossa estratégia, controlada pelo movimento sindical’, repetiu no domingo Laurent Berger na France Inter, desejando "que isso seja suficiente“”. Enquanto a falta de perspectivas e de um plano de batalha arriscam esgotar os trabalhadores, as direções sindicais continuam buscando ganhar tempo mantendo sua estratégia de desgaste. Se a reforma finalmente for aprovada, com ou sem a aprovação do Parlamento, os reformistas explicarão que é preciso aceitar a legalidade da República, enquanto a CGT ou os sindicato Solidaires denunciarão a traição para reforçar suas imagens de confederações sindicais contestatórias… mas impotentes.

Antes mesmo do resultado final da luta, Berger já dá garantias incríveis ao governo nesse sentido, afirmando ao Les Echos: “Não serei daqueles que dirão que uma reforma dessa magnitude adotada através do artigo 49.3 seria antidemocrática, mas o governo erraria se dissesse que, uma vez votado o texto, o assunto ficou para trás”. Em outras palavras, Berger se recusará a politizar e radicalizar o conflito, mesmo que o governo opte por forçar, usando ferramentas antidemocráticas e bonapartistas da Constituição da Quinta República, como o 49.3 ou os decretos emitidos pelo artigo 47.1. Claramente, num momento em que a mobilização poderia assumir um caráter mais radical do que o clima pacífico dos primeiros quatro atos, a CFDT não pretende reagir. Porém, é esse cenário que já assusta alguns no governo Macron.

De fato, muitos políticos notam a profundidade da mobilização, como aponta um artigo do Le Figaro: “Como observa o deputado do PS Philippe Brun: ‘É uma mobilização que toca as profundezas do país’. E durante a qual alguns detectam um aumento do antimacronismo. ‘A insatisfação com o governo é óbvia’, suspira Jimmy Pahun. Tanto que um peso pesado do campo de Macron se preocupa: ‘Nos nossos círculos eleitorais, sentimos sinais muito fortes: a opinião pública não está conosco. E se usarmos o 49-3, será violento’”.

Ao mesmo tempo, a própria base da CFDT está ficando impaciente nas manifestações, como relata um depoimento colhido pelo Mediapart: “‘Temos que fazer uma bagunça. Não há nada mais a fazer’ se indignavam dois manifestantes de Nice de 69 e 74 anos. Em Lyon, Fred, 47, trabalhador de um laboratório do setor hospitalar e militante de base da CFDT, pensa como eles: ‘É organizado demais para que possa ser revolucionário. Lá nos divertimos, somos legais e é massa, mas isso não é suficiente’, acredita. ‘Temos que retomar a pressão dos sábados como nos coletes amarelos, dia 11 será um verdadeiro teste. Mas é o único jeito, porque depois de três dias de greve as pessoas estão ficando cansadas’”.

Uma greve de massas é possível

O “momento Berger” não pode durar. Reflete uma situação de impasse na relação de forças. O movimento de massas mostra sua força nos protestos, mas ainda luta para avançar para uma contra-ofensiva que lhe permita derrotar Macron e a ofensiva neoliberal, enquanto o governo, ainda na defensiva e enfraquecido politicamente, espera que as contradições da mobilização de massas e sobretudo o papel da intersindical permitam passar a tempestade.

Esta viragem na luta começa a ser sentida nas manifestações, onde cada vez mais manifestantes começam a exigir ou levantar a questão de uma ação mais dura e um bloqueio do país se o governo continuar a não ouvir a massividade dos protestos . Alguns sindicatos, como o intersindical da RATP ou os ferroviários da CGT, convocaram esta semana uma greve renovável a partir de 7 de março. A própria intersindical ameaçou neste sábado, 11 de fevereiro, em um comunicado de imprensa lido por Frédéric Souillot, secretário-geral da Force Ouvrière, de “paralisar a França em todos os setores no dia 7 de março” se o governo e o Parlamento “se mantiverem surdos aos protestos populares”. Uma perspectiva que permanece na fase de ameaça, como apontou Laurent Berger, explicando que o anúncio “de um endurecimento no dia 7 de março deixa um pouco de tempo se quiserem reagir” e denunciando “a posição firme e definitiva do governo” sobre o adiamento da idade legal de 62 para 64 antes de especificar: “não estamos na lógica da greve renovável” e “isto não é uma convocação para greve geral”, descrevendo uma “convocatória de greve de 24 horas, mas não necessariamente mais longa”.

Preso entre a inflexibilidade do governo e a crescente radicalização de alguns dos manifestantes, o próprio Berger foi assim obrigado a endurecer o tom, mas sem ultrapassar certos limites, evitando por todos os meios a perspectiva de uma greve geral política contra o governo. No entanto, o caráter mais político que reivindicativo da atual mobilização mostra que é possível dar um novo passo na luta. Para conseguir este salto no confronto, é preciso aproveitar ativamente as três semanas que antecedem o fim das férias em todas as regiões do país e preparar-nos eficazmente para o combate, ativando todas as forças na luta, mas é importante também olhar para os fracassos estratégicos que a luta sindical vem arrastando há algum tempo.

Em um livro recente sobre o sindicalismo francês, Jean-Marie Pernot explica: “As impressionantes mobilizações que rasgaram o céu durante o grande ciclo de protestos, de 1995 a 2010, não enfraqueceram a determinação dos governos dispostos a enfrentá-las, mesmo durante longas sequências: o poder de manifestação não substitui a demonstração de poder. Os patrões e o governo não ligam, também é uma estratégia da derrota.” Integrando esta dificuldade, durante a luta anterior contra a reforma da previdência em 2019, a base da RATP tinha imposto à sua direção iniciar desde o primeiro dia da batalha pelas aposentadorias uma greve renovável, que depois se estendeu à SNCF e outros setores. Apesar de sua determinação, esses setores permaneceram isolados do resto do movimento de massas e nunca foram capazes de trazer consigo as categorias mais precárias de trabalhadores.

Porém, hoje, a possibilidade de cruzar essa ponte é maior do que nunca, pois a reforma da previdência é rejeitada pelas diversas camadas da classe trabalhadora, em particular pelos setores mais explorados e oprimidos. Também atinge os setores mais altos, como mostra a participação da central sindical de gerentes destacada pelo Le Figaro: “a presença na ‘arena’ de sindicatos pouco habituados a protestar, como a CFDT ou a CFTC, permitiu massificar os atos. Da mesma forma, os gerentes são mais numerosos do que o esperado a se opor ao governo: ‘Vemos um tremor entre eles, é um elemento bastante novo, suas demandas e comportamento estão se aproximando ano após ano dos assalariados que não são da supervisão’, comenta Guy Groux”.

Acima de tudo, como observa um geógrafo: “Em matéria de aposentadorias, não há grandes divisões entre uma França periférica e uma França das metrópoles, ainda que os motivos de mobilização possam diferir de acordo com o território”. Mesmo em grandes redutos do movimento trabalhista, como refinarias, a mobilização de trabalhadores terceirizados – deixados de lado na última luta salarial no outono passado – é um sinal encorajador da possibilidade de que a greve realmente se generalize e ultrapasse o limite de paralisações pontuais.

Qual política para resolver as contradições da situação

Para que isso não fique apenas na imaginação, ou que a situação fique atravancada pela recusa de cada categoria em ser a primeira a entrar em greve indefinida, é imprescindível uma política preparatória. Uma política que deve partir sobretudo de setores que costumam estar na vanguarda, buscando ativamente todas as forças que entraram no movimento de diversas formas e com diferentes ritmos, para dar-lhes confiança, fortalecendo as reivindicações do movimento para que estas respondam a todos os sofrimentos sentidos pelos trabalhadores, a começar pelo aumento urgente dos salários, a fim de construir uma verdadeira frente proletária.

Para resolver esta tarefa estratégica, que coloca a questão da unificação da classe trabalhadora em sua atual fase de grande fragmentação, podemos nos inspirar em algumas das práticas mais esquecidas de 1995, a última vez que os trabalhadores conseguiram fazer recuar parcialmente uma reforma da previdência. Num artigo recente sobre esta greve no quadro de sua tese, Rémi Azemar destaca o seguinte aspecto: “Por outro lado, na maioria dos relatos, quando uma pessoa fala de sua própria entrada na greve, está se referindo a um ente querido, colega ou amigo que se deu ao trabalho de discutir com ela e convencê-la. A distribuição em massa de folhetos não é garantia de sucesso em comparação com o tempo gasto para discutir com todas as pessoas a sua volta. A este nível, um dos pontos fortes de 1995 foi a visita dos grevistas a locais não grevistas. Representantes sindicais, mas também pessoas que estavam experimentando sua primeira greve (ainda mais eficaz) foram aos locais de trabalho de pessoas que conheciam para convencê-las a entrar em greve. E quando essa visita era coletiva (mais de 5 pessoas), os resultados às vezes eram imediatos”. [3]

Como o próprio autor diz, esse tipo de abordagem é muito mais complicada hoje. Mas os militantes e trabalhadores mais conscientes do movimento atual terão necessariamente que superar esses obstáculos se quiserem construir uma greve geral de massas. Um setor estratégico que pode ser ganho para a batalha é, por exemplo, o dos caminhoneiros. Como Jean-Marie Pernot observou em uma entrevista recente: “… o fato da CFDT ser contra a reforma pode desempenhar um papel importante, especialmente entre os caminhoneiros. Em 1995 e 2003, os caminhoneiros foram muito mobilizados e isso pesou. No entanto, a CFDT é a maioria hoje. Isso não é nada: ao contrário do frete ferroviário, que já não representa grandes coisas, o frete rodoviário é essencial para as empresas. Mas atenção: os poderes públicos aprenderam com essas mobilizações passadas e estão muito atentos a elas, vão tentar evitar o bloqueio das estradas”.

Mas além de ir buscá-los, é preciso convencê-los a lutar para ir até o fim. Isso significa ir além do quadro reivindicatório ultralimitado da intersindical. Questionado pelo Le Parisien sobre o perigo de que “movimentos espontâneos do tipo dos Coletes Amarelos possam eclodir”, no sentido não só de um movimento fora das organizações sindicais, mas também de um movimento que carrega reivindicações mais amplas que visam o regime como um todo, Laurent Berger explicou, por exemplo: “A questão é saber se haverá uma faísca em algum momento que provoque um conflito social arraigado. As aposentadorias podem ser isso. Mas a CFDT nunca foi adepta de palavras de ordem genéricas. Se queremos que o governo nos ouça quanto à idade legal, temos que nos ater a essa reivindicação”. No entanto, como os trabalhadores dos setores mais precários e difíceis poderiam defender a aposentadoria aos 62 anos, quando muitos entre eles não podem mais trabalhar aos 55?


Este programa (ao qual Jean-Luc Mélenchon da La France Insoumise também se juntou em nome da unidade por cima) não pode despertar uma determinação inabalável entre trabalhadores da construção civil, cuidadores, trabalhadores da linha de montagem da indústria automotiva ou alimentícia, trabalhadores 3x8 da indústria química ou siderúrgica, trabalhadores dos transportes, para citar alguns daqueles que sofrem de condições de trabalho particularmente difíceis. Alargar a "lista de reivindicações do movimento operário" implica partir da retirada desta mortífera reforma para reivindicar a aposentadoria aos 60 anos (55 para trabalhos árduos), o reconhecimento da insalubridade de certas profissões ou fábricas, o direito à aposentadoria completa com nenhuma exigência de trimestres de contribuição, bem como uma aposentadoria com valor mínimo ao nível do salário mínimo.

Mas para além da questão das aposentadorias, temos de responder à situação imediata de milhões de trabalhadores, atingidos pela inflação crescente, em particular nos produtos alimentares, bem como pela precariedade laboral. Para isso, devemos defender, como já destacamos: “aumento de salários para todos e sua indexação à inflação. Essa questão é urgente para muitos setores de nossa classe e, em alguns locais de trabalho, os sindicatos optam por economizar esforços na atual batalha pensando na NAO [4] que está por vir: é preciso mostrar que essas questões estão interligadas e podem ser enfrentadas juntamente desde agora. Além disso, estas reivindicações são essenciais para trazer à luta os trabalhadores mais precários, como os trabalhadores dos armazéns das plataformas logísticas, que ainda se encontram à margem da luta. Um programa que também deve levantar a questão da partilha do tempo de trabalho entre todos, para ‘viver e não sobreviver’ aumentando o tempo disponível para a vida social”. Tal “caderno de reivindicações” não é uma elucubração intelectual, mas responde ao caráter mais político do que reivindicativo das próprias mobilizações, como aponta um sindicalista:

“Em Foix, na Ariège, onde mais de 20% da aglomeração estava na rua no dia 19 de janeiro, (…) estava Antoine Loguillard, professor de História e geografia desde 1992. Ele, que manifestou contra a reforma da previdência em 2003 e 2010, afirma: ‘O que me impressiona é que ao contrário dos últimas vezes, quando sentíamos especialmente a força sindical nas manifestações e onde o conflito reivindicativo se concentrava na aposentadoria, novas pessoas estão se manifestando e novos temas estão aparecendo.’”

Só um programa deste tipo pode responder às aspirações crescentes do movimento de massas e gerar a determinação e a vontade de lutar até o fim, e de transformar esta intenção que é entoada em todas as marchas numa força material indestrutível.

Mas para que essa demonstração de força se desenrole até o fim, não basta que os trabalhadores estejam em luta. Devem ser eles que decidam e tomem seu futuro em suas próprias mãos. Como explicamos, a intersindical privou os grevistas de sua melhor ferramenta: a democracia das assembleias. Não haverá greve indefinida sem a presença e discussão da base nas assembleias decisórias. Esta é mais uma lição da última vitória do movimento sindical na França, há mais de trinta anos. Como observa Rémi Azemar: “a força de 1995, para muitos observadores das lutas sociais, está em sua organização original: a realização de assembleias gerais. A CGT, a FSU, a esquerda CFDT e os sindicatos SUD tiveram uma política pró-ativa de chamar essas assembleias gerais. Seus representantes defenderam esse modelo. Não devemos, portanto, nos opor sindicalismo às assembléias que funcionaram juntas durante essas greves. Estes espaços democráticos que davam em nível do serviço, do estabelecimento, da empresa ou da cidade fizeram a vivacidade do movimento de 1995.”

A corrida desenfreada que acompanhou a burocratização e a institucionalização do sindicalismo que anda de mãos dadas com a derrota neoliberal tem afastado cada vez mais as direções, mesmo as intermediárias, das necessidades e pressões da base. Devemos usar a enorme força que foi colocada em movimento para recuperar e ampliar essa tradição democrática, a fim de abrir caminho para mecanismos de representação direta dos explorados e oprimidos.

O que está acontecendo na França é decisivo. A profundidade do processo mostra seu potencial. O peso da mobilização nas cidades médias ou pequenas testemunha uma poderosa manifestação da classe trabalhadora e dos setores populares. Embora isso não seja inédito (já aconteceu em 1995, 2010 e parcialmente em 2016), o fato de acontecer na França política dos últimos anos, onde o Rassemblement National de Marine Le Pen se enraizou em parte do eleitorado trabalhador e popular, é uma boa notícia: milhões de proletários estão se mobilizando em torno das confederações sindicais, que apesar de sua institucionalização e direção burocrática, permanecem organizações da classe trabalhadora. Porém, como já mostramos, a política e orientação dessas direções sindicais arriscam nos levar à derrota, a uma dolorosa repetição da derrota de 2010 após 14 dias de ação entre março e novembro daquele ano.

É por isso que nos concentramos nos problemas estratégicos da classe trabalhadora, cuja resolução é a chave da vitória. A existência de um partido revolucionário com certa influência na classe seria um elemento indispensável para ajudar o proletariado, ou pelo menos sua vanguarda, a tomar medidas sérias para conseguir isso. Infelizmente, a extrema esquerda, que havia dado um salto político após a vitória de 1995, tornou-se uma força marginal. Por um lado, o NPA [Novo Partido Anticapitalista] de Philipe Poutou e Olivier Besancenot demonstrou seu seguidismo a La France Insoumise e seu programa neo-reformista. Por outro lado, a Lutte Ouvrière, embora mais estabelecida na classe trabalhadora, manteve-se totalmente passiva, sem ter a menor iniciativa para quebrar a rotina e o controle dos grandes aparatos sindicais.

Desde o Révolution Permanente, temos feito todos os esforços para criar uma dinâmica de reagrupamento na vanguarda. Além de tudo, o que nossos camaradas estão implementando, nos locais de trabalho, públicos e privados, bem como nos locais de estudo, universidades e escolas secundárias, resultou notavelmente na publicação de uma tribuna assinado por mais de 300 sindicalistas, intelectuais e personalidades dos bairros populares pela defesa da greve indefinida, e pela defesa de um programa hegemônico da classe trabalhadora para levar a cabo todas as reivindicações das massas exploradas e oprimidas. As próximas semanas serão decisivas. A sucessão de dias intermitentes de ação da intersindical, que chama uma nova ação no dia 16 de fevereiro, corre o risco de esgotar os trabalhadores de setores-chave. Mais do que nunca, é importante tomar medidas para endurecer a luta, a fim de oferecer outra perspectiva aos milhões de explorados que se mobilizaram.

Traduzido do original em francês por Lina Hamdan.

[1] Em 2010 a idade legal de aposentadoria foi aumentada de 60 para 62 anos. Em 2014 durante a presidência de Holllande o número de trimestres contribuídos para ter o direito à aposentadoria completa foi estendido para 43 anos, o que implica que muitos trabalhadores ou se aposentam na idade legal mas com aposentadorias de valores menores ou alguns precisam continuar a trabalhar até ao limite dos 67 anos para receber a aposentadoria plena. Em 2019 houve a tentativa falhada de Macron de mudar o sistema de aposentadorias para um sistema de pontos, projeto que foi parcialmente abandonado devido à resistência dos trabalhadores que estiveram em greve durante dois meses na RATP e na SNCF antes do início dos confinamentos devido à pandemia da COVID.

[2] Mecanismo autoritário da constituição francesa que permite ao presidente aprovar reformas legislativas sem passar pelo parlamento.

[3] Podemos ver esta modalidade de “visitas” de grevistas a não grevistas para convencer os mais cautelosos e alentar certas empresas a entrar na greve durante as “greves em marcha” levadas a cabo pelo LKP [Liyannaj Kont Pwofitasyon - Coletivo Contra a Exploração Ultrajante, em português], em Guadalupe, durante o movimento contra a "profytasion", em 2009 ou ainda, em menor escala, durante a greve do setor docente da Academia de Créteil, antes do movimento contra a reforma da previdência de Sarkozy, no início de 2010. Azemar, Rémi, “En grève ! Étincelles et tactiques à l’aune de 1995”, Contretemps, 30/01/2023. 

[4] NAO (Negociação anual obrigatória): negociação nas empresas francesas entre a direção e a representação sindical quanto à política salarial.




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