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China | Protestos históricos contra a Covid-zero abrem nova situação política na China

A poderosa demonstração de raiva popular contra os lockdowns da Covid-zero em muitas partes do país veio um mês depois de Xi Jinping ter conseguido um terceiro mandato no congresso nacional do Partido Comunista Chinês, tornando-o o líder mais poderoso da China desde Deng Xiaoping.

André Barbieri São Paulo | @AcierAndy

segunda-feira 28 de novembro de 2022 | Edição do dia

Os protestos alteram completamente o cenário de estabilidade que desejava Xi, que chegou a apontar Li Qiang, o chefe do partido de Xangai e implementador de um dos lockdowns mais duros na China, como novo primeiro ministro.

Xi Jinping não se pronunciou sobre o tema, nem o diário governamental Xinhua. Xi havia acabado de retornar da cúpula do G20 em Bali, na Indonésia, em que se encontrou pela primeira vez pessoalmente com Joe Biden.

Em termos de seu escopo nacional e desafio direto à autoridade partidária, o movimento contra a política da Covid-zero, pilar central da diretriz defendida por Xi Jinping no 20º Congresso de outubro, é sem precedentes desde os protestos da Praça Tiananmen de 1989. Ocorrem em meio ao mais importante surto de Covid-19 na China, com dezenas de milhares de infecções reportadas no final de semana.

Três aspectos da atual onda de protestos são categoricamente novos diante das manifestações de insatisfação nas últimas décadas: o componente operário, a abrangência nacional e o alvo político dos protestos.

A greve dos trabalhadores da Foxconn em Zhengzhou, capital da província de Henan, na maior fábrica de iPhones do mundo (chegando a empregar 200 mil trabalhadores) foi o incontestável estopim da raiva popular que se alastrou pela China. No início deste mês, centenas de trabalhadores migrantes fechados no centro fabril de Guangzhou derrubaram barricadas e saquearam as provisões de alimentos.
O caráter operário do rechaço foi evidente para as autoridades, que fizeram de tudo para não paralisar a produção enquanto a Foxconn recuava da fraude salarial.

Como escrevemos aqui, os trabalhadores foram forçados a compartilhar dormitórios com colegas que haviam testado positivo para a Covid-19. Na alta temporada o ritmo da produção é elevado pela patronal para incrementar suas margens de lucro para as festas de fim de ano, e os trabalhadores são obrigados a aderir ao sistema de produção de circuito fechado, uma variante do velho "regime de fábrica-dormitório", um dos horrores fabris mais perversos das décadas de crescimento econômico chinês. Como diz a pesquisadora Jenny Chan, "A partir de meados de outubro, a fábrica da Foxconn opera em regime de ’circuito fechado’, ou seja, uma bolha autocontida, com os trabalhadores apenas se deslocando entre seus dormitórios e as oficinas da fábrica. O sistema fechado "peer-to-peer" é adotado para manter a produção do iPhone e minimizar a propagação do vírus da Covid. Os trabalhadores estão, de fato, isolados ali [...] Quando os trabalhadores não aguentam mais, irrompem protestos e greves."

Essa primeira manifestação operária contra o confinamento autoritário da política da Covid-zero recoloca na cena o sujeito perigoso que o PCCh manteve nas sombras da coerção e da repressão nas últimas décadas com a restauração capitalista na China.

Outro elemento é a abrangência. Embora menos massivas que os protestos de 1989, as manifestações atuais em repúdio aos confinamentos autoritários da Covid-zero são disseminados por várias cidades e regiões, como Pequim, Xian, Nanjing, Chongqing, Chengdu, Wuhan. Nas últimas semanas, protestos haviam já irrompido em Guangdong, Zhengzhou, Lhasa e outras cidades, com os manifestantes exigindo o fim dos lockdowns prolongados e dos testes de Covid, segundo o South China Morning Post. A simultaneidade dos protestos contradiz a tradição das últimas décadas, em que os protestos eram estritamente localizadas e sem coordenação.

Politicamente, a novidade é que o protesto atinge o governo central, nomeadamente Xi Jinping e sua política "insígnia" que foi defendida no 20º Congresso do PCCh. O governo central em Pequim é tradicionalmente blindado pelas administrações provinciais, responsabilizadas por "distorcer" as diretrizes do governo. Agora, Xi Jinping é citado nas consignas de repúdio. Os manifestantes em Xangai chegaram a cantar abertamente para que Xi Jinping e o PCCh "renunciassem".

Outro aspecto ímpar da nova onda de mobilizações é o marcado enfrentamento com a polícia. O conflito com a polícia na fábrica da Foxconn chamou a atenção dos noticiários, com trabalhadores virando viaturas e atirando grades e barras de ferro na polícia. O método foi adotado pela população estafada com as quarentenas repressivas em várias cidades, em especial pela juventude. A gradual perda de legitimidade do aparato repressivo do Estado é um importante componente para a subjetividade que emerge.

Não menos importante é a atração de setores das classes médias aos protestos, a base social sobre a qual se apoia Xi Jinping. Os estudantes, que são violentamente reprimidos quando se aproximam de protestos com participação operária (como na greve da Jasic Technology em 2018), são novamente protagonistas através das mobilizações nos campi universitários.

Trata-se de um momento histórico. Um desafio aberto dessa natureza é raro na China, o que abre perspectivas imprevisíveis para as próximas semanas. A tal ponto que símbolos do comunismo, como o hino da Internacional, vieram sendo utilizados contra a máquina monstruos da burocracia capitalista chinesa, na Universidade de Pequim, mas também em Xangai, Chengdu e outras cidades.

O alastramento dos protestos foram em grande parte provocados por um incêndio residencial em Urumqi, capital da região de Xinjiang, que matou 10 pessoas e feriu outras nove. Xinjiang é a região que abriga a minoria muçulmana do uighures, perseguida pelo governo chinês e que, apesar do cinismo do imperialismo ocidental, sofre sistemática violência estatal. Como diz Dake Kang, jornalista chinês, a população uighur sabe que será brutalmente perseguida pelos protestos, mas os faz assim mesmo.

A tragédia provocou uma fúria generalizada nas redes virtuais na China, pois muitos acreditavam que as restrições da Covid impediam as vítimas de fugir. No dia seguinte, centenas de residentes furiosos foram às ruas de Urumqi exigindo o fim do lockdown que impediu 4 milhões de residentes de sair de suas casas por 100 dias.

Autoridades em Xinjiang anunciaram no sábado que as restrições do coronavírus seriam levantadas "em fases", mas as garantias não conseguiram impedir que os protestos se espalhassem pelas cidades mais prósperas do país e entre os jovens estudantes, sublinhando a crescente impaciência da população.

Os protestos foram nacionais. De acordo com reportagens e vídeos postados no Twitter e outras redes sociais, algumas centenas de estudantes se reuniram na Universidade de Tsinghua, a alma mater de Xi Jinping, no domingo à tarde, cantando "Democracia, Estado de Direito e liberdade de expressão".

Os estudantes da Universidade de Pequim, entoando A Internacional, cantaram consignas como "Queremos liberdade, não lockdowns" e "Diminuição gradual das restrições é uma mentira". Outro vídeo viral mostrou centenas de estudantes da Universidade de Comunicação da China, em Nanjing, segurando folhas de papel branco e cantando "Viva o povo, que os mortos descansem em paz", numa vigília no sábado à noite para as vítimas do incêndio de Xinjiang.

Na rua Wulumuqi, em Xangai, estudantes questionaram a cientificidade dos confinamentos das medidas da Covid-zero. "Queremos que todos ouçam nossa voz [...] Todo o sistema, todo o regime, não está correto", disse um jovem manifestante.

A raiva contra a Covid-zero e a política de lockdowns autoritários pode estarr fermentando uma nova situação política com potenciais coordenadores das frustrações de distintos setores de classe. Uma das debilidades das greves chinesas é seu constante isolamento. A China é atravessada por centenas de greves por ano, desde trabalhadores que protestam por salários não pagos até trabalhadores da economia de plataforma batalhando por direitos. O que impede que estes protestos cheguem à consciência popular é que eles quase sempre permanecem locais, muito em função da proibição do direito de greve pelo PCCh desde 1982. Agora, a raiva operária alimentou o transbordamento da frustração de estudantes e segmentos da classe média empobrecida na China. A articulação desses setores é altamente inflamável para o governo.

Xi Jinping não tem uma resposta fácil para a raiva generalizada. Os censores governamentais se moveram rapidamente para apagar fotos e filmagens de vídeo dos protestos, mas as redes sociais seguem publicando materiais sobre os protestos e enfrentamentos com a polícia. Se Xi aumentar a repressão contra os manifestantes, poderá incendiar ainda mais os protestos. Se levantar abruptamente as restrições, cedendo às demandas, corre o risco de ferir a imagem de autoridade inatacável que construiu, o que seria visto como sinal de fraqueza diante da firme defesa da Covid-zero no 20º Congresso. O conseqüente aumento de infecções, potencialmente mortais entre os mais vulneráveis, também pode se tornar outra fonte de descontentamento.

Portavozes "intelectuais" - se é que podemos chamar assim - do governo chinês no Brasil, como Elias Jabbour, servem-se do cinismo da política imperialista norte-americana para classificar os protestos como "contrarrevolução aberta". Trata-se de uma avaliação deplorável, reacionária no verdadeiro sentido do termo, à luz da angústia de trabalhadores e jovens que não toleram mais o totalitarismo das medidas do governo. O "socialismo" de Jabbour é feito com repressão aos trabalhadores superexplorados pelo capital e aos estudantes que se solidarizam. Não impressiona que tenha defendido os métodos ditatoriais do PCCh para manter a ordem.

Ao contrário dessa avaliação saída dos despachos de Pequim, para a esquerda que se reivindica socialista e revolucionária é um grande alento ver o sopro da luta de classes, dotada de aspectos políticos, no coração do proletariado mundial. O repúdio a qualquer instrumentalização por parte do imperialismo norte-americano não pode ensombrecer a enorme importância da abertura de uma nova situação na China, que envolve a quebra da estabilidade gestada em boa parte dos últimos dez anos da era Xi.

A aliança entre os trabalhadores e a juventude é uma combinação potente para levar adiante um programa que ataque os fundamentos do regime autoritário chinês, e também o sistema capitalista defendido pelo PCCh.




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