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Reforma agrária e a luta contra a precarização do trabalho

Os anos de golpe institucional e de governo Bolsonaro significaram um grande avanço dos interesses dos latifundiários e da agroindústria contra os trabalhadores rurais, os camponeses e os povos originários. O governo Lula não vai voltar atrás neste processo, para não romper a aliança que o elegeu e quebrar sua base de apoio do congresso nacional.

Thiago FlaméSão Paulo

quinta-feira 16 de março de 2023 | Edição do dia

Os últimos relatórios da CPT (Comissão Pastoral da Terra, ligada à igreja católica, que publica tradicionalmente o anuário de conflitos rurais) dão conta de uma inversão na dinâmica dos conflitos rurais nas últimas décadas. Nos anos noventa e no início dos primeiro anos de governo Lula o foco dos conflitos era por ocupações de terras, o que mostrava uma forte atividade do MST e de outros movimentos, que pressionavam pela destinação de terras para a reforma agrária. Junto com a pressão tivemos também o maior índice de assentamentos realizados pelo Incra, sob pressão da luta camponesa.

Muito pouco para afetar o nível de concentração de terras do Brasil, que permaneceu estável nas últimas décadas com 1% das propriedades rurais representando mais de 50% da terra cultivável. Mas o suficiente, junto com a cooptação dos movimentos pela terra durante os governos petistas, para deslocar o centro das reivindicações, que passaram da luta pela posse da terra à reivindicações de crédito para o pequeno produtor, garantia de mercado para sua produção e outras reivindicações do tipo. O próprio MST foi crescentemente se ligando também a uma base de pequenos agricultores que cultivam seu pequeno lote e organizando suas próprias cooperativas em assentamentos.

A partir do golpe institucional se dá também uma ofensiva neste terreno, que atinge índices alarmantes durante o governo Bolsonaro. É no campo que o golpe institucional mostrou sua face mais violenta e é no campo que o discurso beligerante da extrema-direita bolsonarista foi mais longe em transformar retórica em realidade. Não é por acaso que apenas nos primeiros meses de 2023 já vimos explodir a crise humanitária dos Yanomamis e uma das maiores operação de libertação de trabalhadores em situação de escravidão já feitas, na colheita das uvas no sul do país.

O número de conflitos agrários explodiu nos últimos anos, ao mesmo tempo em que o número de ocupações de terra e de novos assentamentos chegou nos menores índices. Esses conflitos se dão muito mais pela ofensiva do latifúndio, através da grilagem, da expulsão do pequeno agricultor de suas terras, pela destruição pura e simples da pequena lavoura, uma ação violenta que se multiplicou. E junto com a violência organizada e promovida sistematicamente pelo governo Bolsonaro, o fim de todo o financiamento aos pequenos agricultores, acelerando o processo de endividamento e de venda da terra.

É como se, quase dois séculos depois, a dinâmica da lei de terras de 1850 operasse novamente. Se três décadas antes da abolição a elite escravocrata declarou todas as terras sem dono propriedade do estado e proibiu sua ocupação sem a autorização deste para manter a subordinação do escravizado, agora liberto, ao senhor das terras, hoje avança ferozmente contra a pequena propriedade da terra, contra os povos indígenas, os quilombolas. As formas mais brutais de exploração do trabalho no campo ajuda a criar as condições de trabalho cada vez mais precárias nas cidades.

Em 2018 e nos anos seguintes, toda a verba de apoio para a agricultura familiar, para a reforma agrária ou todos os subsídios para o pequeno agricultor foram simplesmente cortados do orçamento. Enquanto o preço dos alimentos variava sempre acima da inflação, a monocultura da soja e da cana, junto com a mineração, avançou sobre a agricultura familiar e os povos originários. No capitalismo brasileiro no século XXI assistimos o fortalecimento, ou melhor dizendo, a renovação das estruturas mais arcaicas, numa fusão profunda com as formas mais atuais da precarização do trabalho. Erguendo o chicote do latifundiário, transformando o capataz em empresa terceirizada e o jagunço em empresa de segurança, o capital financeiro avançou em todos terrenos contra a classe trabalhadora na cidade e no campo.

Nos pólos mais dinâmicos do complexo agroindustrial, as plantações de soja, é onde se verificou o maior número de casos de trabalho escravo, seguido de perto pela cana, pelo café e pela mineração. Mas a situação analoga à escravidão é o extremo a que chega a enorme precarização da vida no campo nos últimos anos. O poder dos coronéis e seus jagunços se renovou. O que até os anos noventa era chamado de bóia fria, o semi-assalariado que viajava centenas ou milhares de quilômetros desde a sua terra natal para trabalhar na lavoura da época, enquanto mantinha uma pequena lavoura familiar de subsistência segue existindo. Tratado desde sempre como gado, na base do cutelo e do chicote pelos senhores da terra, o bóia fria não deixou de existir, mas agora cada vez mais é o terceirizado do campo, ou até mesmo uberizado, já que começam a se desenvolver apps de fornecimento de mão de obra em algumas colheitas.

A reforma trabalhista ajudou a dar uma cara moderna e a legalizar parte dessas relações tradicionais da exploração no campo. Ao mesmo tempo, a precarização do trabalho urbano se apoia e se beneficia das condições de superexploração do trabalhador rural, do semi assalariado e do camponês nos interiores.
Essa situação atualiza mais uma vez e coloca em novos termos a luta pela terra, que sempre foi uma questão estrutural da realidade brasileira. A demanda de uma reforma agrária radical, da nacionalização da terra e de todas as riquezas naturais, anda de mãos dadas com a luta contra a terceirização e pela revogação da reforma trabalhista, por um salário mínimo que atenda as necessidades de uma família, pela divisão das horas de trabalho para acabar com o desemprego. Do mesmo modo, a luta pela expropriação dos grandes setores do agronegócio é uma questão decisiva para resolver os problemas estruturais do país, como a questão ambiental e da fome. A luta pela terra, contra o grande latifúndio cada vez mais unha e carne do grande capital financeiro, por uma vida digna para o trabalhador rural é a mesma da classe trabalhadora nas cidades por melhores salários e melhores condições de vida.




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