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Rosa Luxemburgo e o Chile

Guillermo Iturbide

Ilustração: Juan Atacho

Rosa Luxemburgo e o Chile

Guillermo Iturbide

A propósito da eclosão de 2019 no Chile e do panfleto de Rosa Luxemburgo, Sobre a Constituinte e o Governo Provisório, com prefácios de Hernán Ouviña e Pierina Ferretti, publicado pelo Escritório do Cone Sul da Fundação Rosa Luxemburgo, Buenos Aires, agosto de 2021.

Este panfleto de 1906 acaba de ser publicado pela primeira vez em espanhol, traduzido do polonês por Anna María Kowalczyk. Os editores e redatores dos prefácios Hernán Ouviña (autor do livro Rosa Luxemburgo y la reinvención de la política. Una mirada desde América Latina, que até o momento resenhamos aqui) e Pierina Ferretti, da Fundação Nodo XXI do Chile, buscam tecer paralelos entre este texto e a experiência em curso da Convenção Constitucional do Chile a partir do processo de revolta e mobilizações iniciado em 18 de outubro de 2019. Também, recentemente, eles fizeram uma apresentação virtual do livro com palestrantes do Chile e da Argentina, incluindo os dois autores do prólogo, onde se aprofundaram nessa busca de paralelos entre as experiências da Polônia-Rússia e do Chile. Neste artigo faremos uma revisão do trabalho de Luxemburgo e, em seguida, também discutiremos essa comparação, tomando os prefácios e a apresentação virtual.

Luxemburgo, a polaca

Sobre a Assembleia Constituinte e o Governo Provisório foi escrito na Polonia durante o período em que Luxemburgo regressou ao seu país (janeiro a julho de 1906) para participar na Revolução Russa iniciada em 1905. Está intimamente relacionado com outras obras importantes escritas na Polonia naqueles meses, como O que nós queremos? Comentário sobre o programa da Social-democracia do Reino da Polonia e da Lituânia (esta última será doravante designada pela sigla em polaco SDKPiL) e “Ante o giro decisivo” [1]. A grande obra que resume toda essa experiência é Greve em massas, partido e sindicatos, escrita na Finlândia em meados de 1906 após sair da prisão, e dirigida a um público alemão com a intenção de explicar os eventos revolucionários em todo o Império Russo, publicado recentemente em uma nova tradução nossa em Socialismo ou barbarie, a antologia de escritos da revolucionária polaca que acabamos de publicar.

Segundo Holger Pollitt [2], Luxemburgo escreve este panfleto na prisão em meados de 1906. Ela considerava que a revolução, após a derrota da insurreição de Moscou de dezembro de 1905, estava passando por uma segunda fase decisiva, onde se decidiria a luta pelo poder. Visto retrospectivamente, isso não era assim, mas era muito difícil saber na época, e por exemplo também os bolcheviques na Grande Rússia (isto é, a parte propriamente russa do Império) tinham as mesmas expectativas. No geral, a perspectiva do SDKPiL e dos apoiadores de Lenin coincidiam em muitos aspectos e, de fato, o período de maior colaboração entre os dois se estenderia de 1906 a 1912. Luxemburgo e Lenin concordaram que a revolução no Império Russo teria imediatamente um caráter burguês, porque as condições não estavam maduras para um desenvolvimento socialista, como poderia acontecer na Europa Ocidental desenvolvida (por exemplo, Alemanha). Para a marxista polaca, para que a revolução triunfasse, era necessário impor um governo provisório dos trabalhadores, que então convocaria uma Assembleia Constituinte com base no sufrágio universal, incluindo todas as classes sociais, que deveria introduzir medidas democráticas revolucionárias [3]. O objetivo da Assembleia Constituinte seria introduzir a igualdade formal, estabelecendo uma república democrática em todo o território do império, para que as classes sociais e a luta entre elas pudessem se desenvolver plenamente. Porém, ao contrário da visão típica dos mencheviques de que a Rússia havia chegado a 1789 (algo que eles entendiam como uma revolução democrática liderada pela burguesia) e que a história se repetia como uma cadeia rígida de elos necessários apesar de ter passado mais de um século, em Greve das massas, partidos e sindicatos, ela argumentava que havia de se considerar a revolução na Rússia "menos como o último elo da velha revolução burguesa e mais como o precursor da nova série de revoluções proletárias no Ocidente". Isso porque a burguesia já ocupava uma posição dominante economicamente na sociedade russa e que a revolução democrático-burguesa também envolvia uma dura luta de classes contra a própria burguesia, que era covarde diante da autocracia. Como diz Luxemburgo na brochura: “Hoje, no Império Russo, a classe trabalhadora não segue mais a direção da burguesia, mas luta por si mesma, em nome de seus próprios interesses” (p. 32). O panorama das visões da revolução à esquerda da socialdemocracia do império foi completado pelo de Trotsky, que considerou que esta contradição que via Luxemburgo levaria a que a revolução, se quisesse triunfar, não poderia parar nos marcos do capitalismo, e as tarefas democráticas deveriam ser combinadas com as socialistas.

Salvando as grandes distâncias que implicam em uma revolução como a russa de 1905 e o processo de revolta chilena de 2019, que não conseguiu desencadear uma situação revolucionária aberta, Sobre a Assembleia Constituinte e o governo provisório de Luxemburgo levanta arestas muito sugestivas para iluminar os problemas atuais do processo chileno. Vejamos por exemplo o que diz a revolucionária poloca no início do texto:

Mas o heroísmo e a valentia das massas por si só não são suficientes. Tão importante e necessário para a vitória final sobre o czarismo é (...) que a classe trabalhadora compreenda com total clareza pelo que está lutando, que saiba exatamente o que quer alcançar, que passos tomar para realizar a liberdade política pela qual está lutando. Em todas as revoluções modernas - na França, na Alemanha - as massas trabalhadoras realizaram milagres de bravura quando foi necessário derrubar os antigos governos. Mas assim que a vitória foi conquistada e foi feita uma tentativa de estabelecer uma nova ordem, o povo em sua maioria não sabia como começar a colocar as mãos na obra, e ou bem esperavam passivamente até que outros arrancassem os frutos de sua luta debaixo de seus narizes, ou teve esperanças e imaginações completamente delirantes sobre o que fazer, e o final foi o mesmo a cada vez (pp. 31-32).

Essas palavras logo se confirmariam várias vezes ao longo do século XX, particularmente na Revolução Alemã de 1918-19, que teve Luxemburgo como participante, quando a socialdemocracia alemã arrebatou os frutos da luta dos trabalhadores e alimentou todo o tipo de ilusões.

Mas, voltando à Polônia em 1906, é assim que Luxemburgo imagina o triunfo revolucionário:

Imaginemos por um momento que já houvia outro surto revolucionário geral, um surto violento e simultâneo em todo o Estado, do contrário não podemos pensar na vitória sobre o czarismo. Imaginemos que um levante revolucionário geral sitia o governo por todos os lados (...) [Isso] não é de forma alguma uma bela fantasia, porque (...) já aconteceu separadamente no decorrer da Revolução em diferentes momentos, já foi realidade. O cenário exposto se baseia em reunir e concentrar todos esses momentos em um e é justamente essa concentração que garantirá a vitória da Revolução, e todo o curso dos acontecimentos se encaminha para ela.

A concentração e a reunião de todos esses momentos em um é o objetivo da arte da estratégia no período da luta direta pelo poder, que os bolcheviques conceberam como "a arte da insurreição", a partir da experiência do levante derrotado de Moscou em dezembro de 1905. Luxemburgo tinha uma visão diferente desse problema, que não vamos abordar aqui [4]. O que se segue a esse momento decisivo?:

[N]o momento da vitória, o proletariado em luta deve tomar o poder em suas próprias mãos, não com o propósito de estabelecer um governo regular, mas para estabelecer um chamado Governo Provisório, cujo único papel será manter o poder até a conclusão das tarefas da Revolução e o reinado da nova ordem (p. 35).

A tarefa desse governo seria assumir todo o poder real para, forjando um novo Estado, usá-lo como arma de repressão contra a reação derrotada e evitar que o que resta do antigo regime, por meio de seus representantes, retorne ao poder na primeira pausa no combate. Isso incluirá o desarmamento imediato das tropas e da polícia do regime deposto e do armamento do povo revolucionário. Em seguida, propõe uma série de medidas democráticas a serem introduzidas para superar o que tinha sido o destino das revoluções burguesas até então: "[O] povo trabalhador sempre pôde vencer e nunca pôde desfrutar de sua vitória" (p 36).

Mas tudo isso, naquela época, para Luxemburgo, não significava uma nova ordem política permanente do Estado. Qual seria essa ordem permanente seria algo que só poderia ser dito por uma Assembleia Constituinte convocada e sentada sobre as ruínas do Estado anterior. Para a revolucionária polaca, os revolucionários social-democratas deviam intervir nessa Assembleia Constituinte buscando estabelecer um regime democrático burguês o mais radical possível que deixe nas melhores condições para a preparação política da classe trabalhadora e o desenvolvimento do país para abreviar ao máximo a transição da revolução burguesa para a nova etapa da luta pelo socialismo, para a qual era necessário estabelecer, primeiramente, uma forma de governo com um conteúdo social e econômico diferente daquele do governo provisório dos trabalhadores da revolução burguesa: a ditadura socialista do proletariado. A transição de uma etapa para a outra dependeria, por sua vez, do desenvolvimento da revolução socialista no Ocidente, para a qual a Revolução Russa deveria ser um incentivo.

Voltando à revolução democrática, o governo provisório e o governo constituinte na Rússia, para Luxemburgo a nova ordem democrática revolucionária não seria estabelecida simplesmente "conversando" na Assembleia, mas as massas trabalhadoras teriam que pressionar constantemente seus deputados para não se desviarem nesse caminho e ao mesmo tempo, na retaguarda, essa Assembleia deveria apoiar-se no armamento do proletariado para garantir que as sessões ocorressem sem problemas.

A partir da página 47 da edição deste panfleto começa outro debate a respeito da Constituinte que existia entre os partidos socialistas na Polônia russa naquela época: “[D]everíamos nos esforçar para convocar uma constituição geral para todo o Estado depois da derrubada do absolutismo, ou os trabalhadores poloneses deveriam exigir que se convoque para a Polônia uma Constituinte polaca separada, e outra russa para a Rússia? O que ocupou a primeira posição foi a SDKPiL, embora se deva dizer que, com particular destaque dentro dela, Luxemburgo e Jogiches, enquanto a segunda posição foi a dos setores oriundos do rival Partido Socialista Polonês (PPS). Luxemburgo considerava uma questão de princípio fundamental opor-se à independência da Polônia da Rússia e à refundação de um Estado polonês com as demais áreas que estavam sob o controle da Alemanha e da Áustria, pois considerava que ia em sentido oposto ao desenvolvimento das forças produtivas e dos pré-requisitos para a revolução socialista. Este é um assunto complexo sobre o qual não vamos nos expandir aqui, para o qual nos referimos a este artigo. Tradicionalmente, tem sido aceita a imagem levantada por Rosa Luxemburgo de que a divisão da esquerda na Polônia obedecia, por um lado, a uma postura "internacionalista" (SDKPiL) e, por outro, a uma posição "nacionalista" encarnada no PPS. que embora também falasse de socialismo, na realidade havia se tratado de um partido “social-patriota” que não buscava outra coisa senão criar um estado capitalista polonês. Os prólogos do folheto que comentamos também levam esta imagem como certa, apesar de haver pesquisas mais recentes que dão uma visão um pouco diferente [5] Em primeiro lugar, o PPS em 1906 se dividiu entre uma ala que cada vez mais se dirigia pára uma espécie de nacionalismo pequeno-burguês militarista, liderada por Józef Piłsudski (que notavelmente faria uma trajetória semelhante à de Mussolini mais tarde, do socialismo ao fascismo) e, por outro lado, o “PPS de esquerda”, que combinava a luta pela autodeterminação nacional com o socialismo (da mesma forma que boa parte da socialdemocracia europeia e russa da época fazia com respeito à questão polonesa).

Luxemburgo, a chilena

Agora, passemos aos prefácios dos editores e à discussão sobre a atualidade deste folheto em relação ao processo chileno. Hernán Ouviña, em seu prólogo, escreve o seguinte:

Para além dos detalhes e das óbvias diferenças de tempo, este texto inédito de Rosa oferece várias contribuições que consideramos de enorme validade para o Chile de hoje (...) Uma das questões comuns que cercam os esforços emancipatórios desses territórios e está na base da reflexão luxemburguista é como desmantelar regimes profundamente autoritários, baseados em estados monoculturais e monolíngues, que vetam a participação popular e garantem várias formas de exploração, expropriação e precariedade da vida (...) Uma (...) questão é aquela que se refere à combinação da referida mobilização na rua, auto-organização e pressão popular a partir de baixo -construída por fora dos espaços institucionais-, com disputas e lutas em instâncias como a Assembleia Constituinte ou níveis subnacionais de governo (sejam municípios ou conselhos locais). O povo trabalhador não deve se dispersar nem "passará inteiramente da rua para a sala fechada da assembleia", esclarece Rosa. Pelo contrário, “deve permanecer em ordem do combate, com os olhos fixos na Constituinte, pressionar constantemente a burguesia com a sua força, lembrá-la desta força com manifestações, apoiar as demandas dos deputados operários na Constituinte através uma agitação de massas incessante nas ruas”(pp. 12-14).

Tanto nos prólogos quanto na apresentação virtual do livro, intitulado Pré-textos Constituintes: Rosa Luxemburgo e a reinvenção do Chile, propõe-se uma série de leituras que se poderia dizer que forçam o texto do revolucionário polonês. Em primeiro lugar, o eixo de apropriação do texto força semelhanças entre a atual Convenção Constitucional do Chile e a Assembleia Constituinte que Luxemburgo propõe como parte do programa da revolução de 1905, que, no entanto, devido à derrota daquele processo, nunca chega a ver a luz e, portanto, suas indicações sobre como intervir em uma eventual assembleia desse tipo são hipotéticas. Por outro lado, muitas vezes se esquece que a atual Convenção chilena tem poderes muito limitados e não é, precisamente, revolucionária: não surgiu do triunfo de uma revolução nem foi convocada por um governo revolucionário, mas, em realidade, viu a luz justamente como uma tentativa de desviar a eclosão social de outubro de 2019 pelo regime herdeiro do pinochetismo, a partir da "cozinha parlamentar" entre Piñera e os deputados da Frente Ampla chefiada por Gabriel Boric. Além disso, a decisão de convocar eleições para esta convenção foi tomada ante o perigo de que a agitação social não pudesse ser contida e que as tendências de organização dos trabalhadores sobrecarregassem a burocracia sindical da CUT e desenvolvessem um processo semelhante ao que Rosa Luxemburgo chamava de greve de massas, o que poderia ter levantado uma situação revolucionária e a possibilidade da queda do governo Piñera. É preciso dizer que na palestra-apresentação, dois dos palestrantes do Chile (Claudio Alvarado Lincopi - Porta-voz Plurinacional e referência Mapuche - e Pierina Ferretti, um dos prólogos da brochura) reconheceram ao passar alguns dos limites da Convenção Constitucional. No entanto, o que nunca se levanta é justamente a ideia de desviar a eclosão para conter o protesto nas vias institucionais nem o papel fundamental da esquerda reformista chilena nela (tanto a Frente Ampla quanto o Partido Comunista, que dirige a central sindical, CUT ) Em vez disso, o que perpassa os textos e intervenções é uma ideia de continuidade sem saltos ou mediações do processo chileno, onde a Convenção Constitucional seria “a segunda fase”. Por outro lado, essa visão também tende a confundir as fronteiras entre diferentes formas de desafio social, como revoltas ou surtos (Chile 2019) e uma revolução (Rússia-Polônia 1905). Não se trata de mera preciosidade conceitual ou puro dogmatismo, mas sim de uma avaliação das possibilidades abertas à ação política. Nas revoltas se trata de ações espontâneas que liberam as energias das massas e nas quais podem ocorrer altos níveis de violência, embora seu objetivo seja pressionar a ordem existente para obter concessões. As revoluções, que com elas coincidem em termos de peso da violência, pelo contrário, visam substituir essa ordem. Além disso, não há parede entre as duas. Nas revoltas, os elementos ficam latentes para superar essas ações de resistência ou pressão. Eles podem estar embutidos em um processo mais amplo e conformar-se como elos de uma revolução e abrir esse processo, ou podem ser canalizados dentro do regime por meio de reformas e desvios, a fim de bloquear a abertura do processo revolucionário, que era o objetivo da “cozinha parlamentar chilena” quando decidiu convocar a Convenção Constitucional. Tudo isso está presente na teoria de Rosa Luxemburgo, embora muitas vezes seja erroneamente apresentada como um suposto teórico da pura espontaneidade. O desenvolvimento da revolta em revolução depende, em particular, da possibilidade da classe trabalhadora e do movimento de massas avançarem em sua consciência e organização. Precisamente dependendo do nível alcançado por esta última, para Rosa Luxemburgo era tático participar ou não de um órgão de desvio como a Convenção do Chile. Por isso, dadas as circunstâncias, nossos colegas do Partido dos Trabalhadores Revolucionários (PTR) do Chile decidiram participar apresentando candidaturas. Agora, pulando doze anos, da Polônia em 1906 para a Alemanha em 1918, Pierina Ferretti se refere em seu prólogo à posição de Luxemburgo na Assembleia Constituinte durante a Revolução Alemã [6]:

No Congresso fundacional do Partido, em que Rosa oficializa como uma das principais oradoras, discute-se se participa ou não nas eleições convocadas para eleger uma Assembleia Nacional que teria por objetivo a redação de uma nova Constituição. Rosa defendia a posição de participar e dar uma disputa pelo programa espartaquista dentro da Assembleia. “Queremos implantar um signo vitorioso dentro da Assembleia Nacional, apoiado em ações de fora, queremos fazer voar desde dentro desse bastião”, argumentava. No entanto, sua postura foi derrotada de forma contudente.

Isso é verdade, mas há algumas coisas a serem observadas. Em primeiro lugar, que no início da revolução a posição de Rosa Luxemburgo (e de toda a Liga Spartacus) era contrária à Assembleia Nacional. Por quê? Porque conselhos de trabalhadores e soldados surgiram em todo o país. Os espartaquistas viram neles o embrião de um governo operário revolucionário que substituiria o governo de Friedrich Ebert, que buscava manter a ordem capitalista. Nesse marco, a Assembleia Nacional foi desenhada pelo regime para desviar e canalizar a revolução, e assim bloquear a possibilidade de que o processo revolucionário continuasse a se desenvolver e que a extrema esquerda, onde estavam os espartaquistas, que eram uma corrente muito minoritária, alcançassem a direção. Luxemburgo e os principais líderes espartaquistas concluem que era necessário mudar de tática e participar das eleições para a Assembleia depois que o congresso nacional dos conselhos de trabalhadores e soldados se recusou explicitamente a tomar o poder. A maioria do recém-fundado Partido Comunista não concorda sobre isso com Luxemburgo e outros líderes e por isso é votado para manter a tática de boicote. Por outro lado. Luxemburgo não pensava tanto a intervenção na Assembleia no sentido de lutar pelo programa espartaquista, mas como uma forma de desmascarar os limites desse órgão e mostrar a necessidade de desenvolver os conselhos operários e pontar para um governo baseado neles:

Digo-vos que é precisamente graças à imaturidade das massas, que ainda não compreenderam como levar o sistema de conselhos à vitória, que a contrarrevolução conseguiu estabelecer a Assembleia Nacional contra nós como um baluarte. Agora nosso caminho nos conduz por este baluarte. É meu dever usar todos os motivos para lutar contra ele, entrar na Assembleia Nacional para bater na mesa com o punho, porque a vontade do povo é a lei suprema. (...) Temos que mostrar às massas que não há melhor resposta à decisão contrarrevolucionária de varrer o sistema dos Conselhos de trabalhadores e soldados do que fazer um grande pronunciamento dos eleitores, elegendo pessoas que são contra a Assembleia Nacional e a favor do sistema de Conselhos. Este é o método ativo para redirecionar contra o peito do inimigo a arma que está apontada para nós hoje [7].

Ou seja, desde o início da Revolução Alemã, Rosa Luxemburgo desenvolveu claramente um pensamento a respeito das táticas a adotar diante de instâncias como a Assembleia Constituinte no sentido de levar ao poder os conselhos operários, sem ter qualquer expectativa que uma Assembleia convocada por um governo capitalista implante um programa socialista.

Luxemburgo e o problema do poder

Pierina Ferretti, no vídeo de apresentação, argumenta que Luxemburgo não aspirava a uma esquerda marginal e apenas crítica, mas sim aspirava ao poder, “claro que numa época em que se entendia que o problema do poder era tomar o poder. 100 anos se passaram. O poder não se toma, se constrói. Que não basta tê-lo. Porque você pode ter o governo, mas aí tudo vai para a panela, porque o poder existe em outras áreas da sociedade. ” (1h: 42 ’).

O problema é que precisamente aí está a chave para o pensamento estratégico. A esquerda reformista chilena historicamente "tomou o poder" no sentido de acessar o governo sem desmontar o aparato estatal capitalista, que é o comitê de administração de toda a classe detentora do poder, cuja fonte original está no controle dos meios de produção, controle que esse mesmo Estado sustenta. A experiência da Unidade Popular entre 1970-1973 que levou à derrota da Revolução Chilena atesta esse tipo de falha no uso "instrumental" do Estado capitalista, supostamente para fins estranhos por natureza, como a introdução de socialismo. Nem Rosa Luxemburgo nem o marxismo revolucionário podem ser creditados com esse tipo de "tomada do poder". Esse problema não é resolvido, tampouco, combinando tais governos reformistas com “pressão de baixo” para corrigi-los, como sugerido na apresentação. A centralidade estratégica da classe trabalhadora, que também se dissolve na multidão em geral que interveio na revolta, está intimamente ligada ao problema do poder. Não se trata de fazer, por um lado, nem um culto essencialista e um fetiche da classe operária “de mameluco”, nem, por outro lado, a tentação oposta de dissolvê-la no povo em geral, que é o espelho do o antigo. Trata-se de buscar caminhos para que os trabalhadores rompam o espartilho da burocracia sindical para ir na direção da greve de massas como pensava Rosa Luxemburgo. Este não é um evento específico como uma greve geral como as que conhecemos, mas a revolucionária polaca o vê como um processo que combina diferentes formas de luta que têm como fio condutor afetar o poder dos capitalistas no próprio centro desse poder com o objetivo final de extinguir a burguesia. Ou seja, o poder continua tendo uma base material concreta que deve ser atacada, da qual derivam as relações sociais de dominação com sua teia múltipla de opressões que vão além do econômico. Se o problema do poder estatal não for resolvido, a experiência do Chile mostra (e o reafirma na eleição presidencial de 21 de novembro) que o Estado capitalista é uma máquina constante de produzir personagens como Pinochet quando tem que enfrentar uma revolução ou, como agora, um Kast, que reivindica abertamente o trabalho de Pinochet, quando quer encerrar definitivamente um surto como o de 2019 que ele considera que pode eventualmente se desenvolver perigosamente para seu domínio. O desvio da cozinha parlamentar apoiado pela esquerda reformista não é precisamente "a abertura da segunda parte" da revolta [8] , como os editores do panfleto sugerem a partir de sua leitura de Luxemburgo, mas um elemento-chave que ajudou a burguesia primeiro a ganhar tempo, depois para se recuperar e agora para ter a confiança de seguir à contraofensiva.

Essa experiência abriu um ciclo de intensa luta de classes com resultado ainda em aberto. A burguesia chilena e a direita têm uma tradição contrarrevolucionária muito dura que emerge a cada momento decisivo e rejeita as ilusões do estilo de evitar o problema do poder estatal e apostar que a herança do pinochetismo pode ser superada pressionando uma convenção constitucional muito limitada. Também está aberta a possibilidade para a classe trabalhadora e movimentos como o dos povos originários, mulheres e migrantes de superar a trágica tradição da esquerda reformista chilena da “via pacífica para o socialismo”. O marxismo de Rosa Luxemburgo faz parte de uma tradição oposta.

tradução: Angelo Delazeri


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FOOTNOTES

[1Este artigo foi escrito em alemão para um jornal SDKPiL voltado para trabalhadores de língua alemã na Polônia.

[2Holger Politt, “Im Licht der Revolution. Zwei Texte Rosa Luxemburgs aus dem Jahre 1906: Zur Konstituante und zur Provisorischen Regierung und Vor dem Wendepunkt”, en Rosa-Luxemburg-Forschungsberichte Heft 12, Rosa-Luxemburg-Stiftung Sachsen, 2015.

[3O programa político com o detalha das medidas democráticas radicais propostas pelo SDKPiL encontra-se no citado documento O que queremos?, traduzido para o alemão em Rosa Luxemburgo, [[Was wollen wir? Kommentar zum Programm der Sozialdemokratie des Königreichs Polen und Litauens

[4Para tanto, nos referimos à parte final do prólogo de Socialismo o barbarie, p. 45

[5Por exemplo, Eric Blanc, Revolutionary Social Democracy: Working-Class Politics Across the Russian Empire (1882-1917), Leiden/Boston, Brill-Historical Materialism Book Series, 2021. Também Holger Pollitt, atual editor e tradutor do alemão e dos textos polacos de Rosa Luxemburgo, tem una visão mais cautelosa a respeito.

[6Em nossa compilação recente, Socialismo o Barbarie, publicamos quase 100 páginas das obras de Rosa Luxemburgo durante a Revolução Alemã de 1918-19.

[7Rosa Luxemburgo, “Sobre la participación del Partido Comunista de Alemania en las elecciones a la Asamblea Nacional” (31/12/1918), en Rosa Luxemburg, Socialismo o barbarie, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2021, pp-533-534.

[8Esta visão que iguala a eclosão de 2019 e uma hipotética Revolução Russa triunfante em 1906 chega ao extremo do forçado nas seguintes passagens: “Colocando as coisas desta forma, o sentido da Constituinte é ordenado na direção de um objetivo maior: a constituição da classe operária. Se para a burguesia, a Assembleia Constituinte é uma desculpa para o desarmamento político do povo, para o proletariado "a Assembleia Constituinte não será o fim da Revolução, mas a abertura da sua segunda parte "[Rosa Luxemburgo, N. de E.] (...) Mais de cem anos se passaram desde que Rosa Luxemburgo publicou seu panfleto sobre o governo constituinte e provisório no contexto da primeira revolução russa e que sua posição para participar das eleições para a Assembleia Nacional na Alemanha foi rejeitada pelas bases de seu partido. O que Rosa não pôde ver materializado – uma Assembleia Constituinte conquistada por uma mobilização arrasadora das massas – o que estamos vivendo hoje no Chile no Chile " (P. Ferretti, p. 25-26).
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